Vou estruturar minha fala em duas partes. Uma primeira, a partir de reflexões pessoais. Uma segunda, calcado nas reflexões de um cientista que conheceu Odum e que participou de um importante debate acerca de críticas que foram feitas a ele.
Parte I – Reflexões próprias
Notem o que foi escrito do professor Odum: “Em sua busca incansável por conhecimento e entendimento”. Desde o início de sua carreira, ele não ficou preso a uma área de conhecimento específica, nem a uma ou outra teoria, muito menos a este ou aquele método: seu objetivo sempre foi a busca da compreensão do mundo, em todas suas escalas e nuances. Portanto, ele não encontrou limite em suas ideias, proposições e métodos.
Ao dizer isso, porém, não estou sugerindo que ele não seguiu rigorosamente os preceitos e a ética das mais diferentes ciências e arcabouços teóricos, muito pelo contrário, ele sempre teve preocupação com o rigorismo científico, ainda que o seu pensamento não tenha ficado restrito aos formalismos impostos pelas diferentes vertentes da academia formal.
Essa não-restrição, não-subjugação a um recorte específico da ciência moderna é o que, em minha modesta concepção, nos permite considerá-lo um pensador, um filósofo, portanto, não apenas um cientista nos moldes do Positivismo ortodoxo, ao qual talvez todos nós estejamos, conscientes ou não, submetidos.
Minha primeira proposta é que considero o professor H. T. Odum – tanto pela sua lógica, pela sua ética e pela sua estética – um pensador, um verdadeiro filósofo.
E vejam que já usei as concepções filosóficas para fundamentar minha proposição:
1) a vertente lógica, pela racionalidade que é a base da sua obra;
2) pela vertente ética, que não é tão explícita à primeira vista, mas que se torna óbvia à medida que compreendemos a preocupação dele para com todos os entes do Cosmos, sejam eles viventes ou não; e
3) pela vertente estética, pela beleza que é intrínseca à sua concepção de mundo e a forma como ele o representa, seja oralmente, seja por meio da matemática, seja por meio de diagramas e esquemas gráficos.
A filosofia ocidental surge na Grécia Antiga há, aproximadamente, 2.600 anos. E surge exatamente com a preocupação de se compreender a natureza como um todo e não o homem em si, como talvez sejam predominantemente as principais escolas filosóficas hoje.
Os filósofos pré-socráticos, que foram aqueles primeiros, tinham uma preocupação central em comum, que era a busca por um princípio de tudo que existe no Cosmos. Eles chamavam esse princípio de “arché” (αρχέ). Os principais nomes e seus respectivos princípios propostos eram: Tales de Mileto: a água; Anaximandro: o infinito (ápeiron); Anaxímenes: o ar; Xenófanes: a terra; Heráclito de Éfeso: o fogo; Pitágoras: o número; Demócrito: o átomo. Eu tomo a liberdade de inserir Odum: a energia.
Talvez uma das contribuições fundamentais de Odum é ter proposto uma entidade que está em tudo e que, portanto, pode ser a unidade de análise comum para todos os fenômenos do cosmos.
Essa unidade era a energia.
Este “denominador comum” tem possibilitado muitos avanços ao permitir a avaliação científica, inclusive a mensuração, sob diferentes enfoques teóricos e metodológicos. Mais ainda, tem possibilitado o diálogo entre duas vertentes epistemológicas que parecem que vieram se distanciando ao longo da história, especialmente a partir da Modernidade (lembrando que a Modernidade para a História começa por volta dos anos 1500 com o Racionalismo). Eu me refiro ao paradoxo filosófico entre a “phýsis” e o “nomos”.
A primeira remete ao princípio, ao primordial, à natureza original do mundo: à natureza em si. A segunda remete à criação humana, à convenção humana, à lei. Essa é divisão que acabou separando as ciências em “naturais” e “humanas”, cujos enfoques acabam se diferenciando tanto, muitas vezes a ponto de não permitir o diálogo entre ambas, ou de dificultar o desenvolvimento de uma ciência multidisciplinar e transdisciplinar.
Cientistas da natureza parecem desconsiderar o evidente efeito do homem sobre ela. Cientistas das humanidades, por sua vez, parecem desconsiderar o evidente efeito da natureza sobre a ação humana, ou seja, desconsideram a base física a qual estamos todos imersos. Na academia, são dois mundos bem apartados.
O pensamento de Odum traz um alento nesse sentido, vide, por exemplo, que – juntamente com Nicholas Georgesco Roegen – ele é considerado o “Pai da Economia Ecológica”, uma vertente dissidente da Economia que cada vez ganha mais espaço na sociedade.
Odum começa trabalhando com o ciclo biogeoquímico do estrôncio, em sua tese de doutorado, defendida em 1950, e termina – 50 anos depois –, em 2001, com a publicação do seu último livro em vida, O declínio próspero, no qual apresenta uma proposta de organização para o futuro da espécie humana, considerando, portanto, diversos aspectos da nossa vida, desde a saúde, a educação, a alimentação, o lazer, até chegar à arte e à religião.
Minha segunda proposta, portanto, é de que Odum não é apenas um filósofo, mas é um filósofo completo, universal, holístico, polímata, daqueles poucos que se preocuparam com praticamente todas as áreas da Filosofia. E, se essa proposição puder ser aceita, nós o colocaríamos ao lado de seletos pensadores, como Aristóteles, Da Vinci, Descartes, Espinosa, Kant e Nietzsche. Reconheço a ousadia da minha proposta, mas não temo estar errado. E se estiver, apoio-me na essência da Filosofia, que é exatamente a liberdade de pensamento, independentemente de qualquer consequência que isso venha a ter.
Minha terceira e última reflexão, nesta primeira parte, é prospectiva. Quero dizer: vou provocá-los, no melhor dos sentidos possível, para pensarmos nos próximos 100 anos. E como vou tentar fazer isso? Como não poderia deixar de ser, a partir da Filosofia.
Eu procurei trazer algumas das questões mais fundamentais e profundas da Filosofia para que talvez elas possam inspirar nossas agendas de pesquisa. Ou seja, talvez em um processo inverso ao que o Prof. Odum fez. Ele olhou para a natureza e criou seu pensamento, sua filosofia. Minha modesta proposta agora é olharmos para a filosofia e ver se algo nela inspira nossas curiosidades, nossos laboratórios, nossos projetos e nossos jovens estudantes, de modo a que possamos seguir na aplicação e desenvolvimento do pensamento de Odum da forma mais ampla e promissora possível.
São elas as questões propostas:
1) Qual a natureza da realidade? (metafísica ou ontologia)
a. O que existe?
b. Qual a natureza dos objetos, dos eventos?
c. Quais suas propriedades?
2) O que nós podemos conhecer? (epistemologia)
a. O que é conhecimento?
b. Como nós o obtemos?
c. Quais são os limites da nossa compreensão?
3) Quais as coisas corretas a serem feitas? (ética)
a. O que é moralidade?
b. Como nós devemos viver nossas vidas?
c. Quais são nossas obrigações para com os outros?
4) Qual a natureza do belo? (estética)
a. O que é arte?
b. O que faz algo ser belo?
c. Como nós experenciamos e julgamos a beleza?
5) Qual a natureza de uma boa sociedade? (política)
a. O que é justiça?
b. Qual a melhor forma de governo?
c. Quais os direitos e deveres de um cidadão?
6) Qual a natureza da nossa mente? (psicologia)
a. O que é consciência?
b. Como estados mentais se relacionam com estados físicos?
c. Qual a natureza da identidade pessoal?
7) Qual o significado da vida? (existencialismo)
a. Por que estamos aqui?
b. Qual o propósito da existência?
c. Como podemos encontrar um sentido para a vida?
Essas são algumas das mais importantes questões da Filosofia. Para mim, são muito inspiradoras.
Agora eu passo para a segunda parte. Após a minha reflexão, eu me questionei se ela fazia sentido, então procurei uma outra perspectiva para contrapor a minha.
Parte II – Reflexões de Bernard Charles Patten
Patten é Professor Emérito do Departamento de Zoologia, do Instituto de Ecologia da Universidade da Geórgia, EUA.
Em 1993 ele publicou o artigo intitulado Toward a more holistic ecology, and science: the contribution of H.T. Odum, em resposta às críticas apresentadas por Mansson e McGlade, naquele mesmo ano, em Ecology, thermodynamics and H.T. Odum’s conjectures.
Segundo Patten, Odum é um cientista extremamente intuitivo. “Ele literalmente caminha sobre o desconhecido, e o segredo do seu apelo é que isso desencadeia a paixão pela mística e pelo mito que todos os humanos possuem como uma resposta dada ao que é desconhecido. Isso o torna um professor excepcional, mentor e fonte de inspiração para outras pessoas” (tradução nossa).
Continua Patten: “Poucos indivíduos conseguem criar um paradigma completo em sua vida. A maioria de nós, na ciência, segue os passos de outros. Howard T. Odum é um dos que criaram sua própria visão de mundo e um tipo de ciência para acompanhá-la – uma teoria sistêmica da ecologia inteiramente nova e original” (tradução nossa).
Destaco esta passagem, a qual fiz questão de manter na sua versão original:
No living person in the world, in my opinion, understands the inner workings of large, complex systems so well as this man (Patten).
Patten completa afirmando que a visão de Odum “é profundamente intuitiva, muito pessoal, e essas próprias qualidades são muitas vezes um barreira à comunicação com os outros” (tradução nossa).
No trecho seguinte, Patten menciona explicitamente o esforço filosófico de Odum:
H.T. Odum created his own picture language, ‘energy-circuit language’, to try to communicate scientifically what had heretofore been restricted to philosophy (Patten).
É interessante como Patten associa o pensamento de Odum à intuição, à arte e, até mesmo, à religião. Vejamos o seguinte trecho:
He can evoke anything from humor to pensive contemplation and shared insight, depending on his own mood and intent. And his audiences always respond, because he touches them with science where only “the arts” are supposed to penetrate – in feelings (Patten).
A conotação artística sugerida por Patten relaciona-se ao que falávamos sobre estética, deixando clara a beleza, literalmente, do pensamento de Odum. A estética de Odum estaria não apenas no visual, mas na forma como ele toca o emocional dos leitores e interlocutores. O seguinte trecho explicita isso:
This man has the power to infuse others with his own dynamic enthusiasm for his subject; he often leaves more upset than calm in his wake, I think, because he constantly challenges established beliefs (Patten).
Na sequência do texto de Patten, ele começa a rebater as críticas de Mansson e McGlade. Para nossos propósitos aqui, vou me deter em algumas delas apenas.
A primeira delas se refere ao fato de que Odum teria sugerido que a seleção natural de Darwin estaria subjugada à sua teoria de sistemas, o que parece ter incomodado vários de seus críticos darwinistas. Patten assim explica:
A ciência é reducionista na sua premissa abrangente de que as partes determinam o todo (parte -> determinação do todo), e mecanicista no reconhecimento do poder explicativo dos detalhes internos (parte -> determinação da parte). Somente a ciência de sistemas está preocupada principalmente com questões holísticas de determinação (todo -> determinação da parte). O holismo está subjacente à seleção natural porque os ecossistemas, o nível primário de Odum de investigação e fonte de pressões seletivas, sempre antecedem seus constituintes contemporâneos. Os organismos ganham vida em ecossistemas já constituídos formados por meio de episódios anteriores de seleção de partes por todos ancestrais. Portanto, a determinação holística é parte integrante e uma pré-condição necessária do darwinismo (tradução nossa).
Uma segunda crítica rebatida refere-se à essência do pensamento de Odum, que é a organização natural dos sistemas e não os fluxos energéticos em si. E este é um ponto que merece nossa total atenção, porque Patten nos ajuda a compreender a real essência do pensamento de Odum, normalmente atribuído à energia. Afirma o autor:
Embora ele (H.T. Odum) não admitiria, a energia não é uma parte tão essencial de sua teoria como ele pensa. A teoria diz respeito, em primeiro lugar, à organização dos sistemas naturais, e apenas secundariamente (mesmo incidentalmente) sua organização energética. A energia foi a estratégia que ele encontrou para tornar empírico (mensurável) seu pensamento, mas ela não é o princípio básico (tradução nossa).
…all energy considerations can be removed from Odum’s theory, and an underlying theory of ecosystem organization will still remain (Patten).
Outra frase marcante nesse mesmo sentido é:
Odum’s essential theory of ecosystem organization transcends the energy idiom in which he has chosen to express it (Patten).
Uma terceira crítica rebatida pode ser considerada como aquela que se apega em pequenos detalhes formais para invalidar um pensamento holístico como um todo. Isso parece ser o caso das minúcias matemáticas da Termodinâmica.
Those who know Odum well know him as a creative “systems thinker”, an astute observer of nature, a field and laboratory ecologist who knows how to gather real data. They know he is not a rigorous technician, mathematician, or system theorist (Patten).
Em outras palavras, eventuais simplificações ou mesmo pequenos equívocos na formalização teórica da Termodinâmica ou da Ciência de Sistemas não são capazes de invalidar o pensamento de Odum.
Uma quarta crítica rebatida refere-se à organização hierárquica. E aqui, mais uma vez, percebemos claramente o caráter filosófico do pensamento de Odum, mais especificamente por tangenciar a metafísica ou a ontologia.
Segundo Patten, “a maioria dos cientistas concorda sobre a organização hierárquica da natureza. Se isso é epistêmico ou ontológico é discutível para propósitos presentes. Contudo, se a organização hierárquica é necessária para maximizar a potência, ou o processamento de energia útil, ou fluxos de recursos mais gerais, é uma questão ecologicamente interessante” (tradução nossa).
Odum’s vision of taxonomic categories as a manifestation of energetics is interesting, though highly speculative, an example of the kinds of unique ideas he is capable of generating (Patten).
Aqui eu abro espaço para uma breve nota sobre epistemologia e a ontologia.
A relação entre epistemologia e ontologia é fundamental na filosofia, especialmente no contexto da pesquisa científica e da compreensão do conhecimento.
Ontologia é o estudo da natureza da realidade, da existência, dos entes. Em outras palavras, a ontologia se preocupa com a essência e as propriedades dos seres e do mundo ao nosso redor.
Epistemologia, por outro lado, é o estudo do conhecimento. Ela se concentra em como adquirimos, justificamos e validamos nossas crenças e teorias. Já vimos essas duas vertentes da filosofia na primeira parte.
Neste ponto, mais uma vez, observamos o caráter filosófico – além do científico – do pensamento de H. T. Odum, quando falamos de intuição e de especulação. São elas que abrem novas ideias e concepções de mundo, abrindo caminho para as ciências tradicionais. Vejamos mais este trecho de Patten:
Never to recognize a possibility is never to open up the area for exploration, out of which something useful could come if not verification of the original idea (Patten).
Finalmente, faço das palavras conclusivas do professor Bernard Patten as minhas:
Odum talvez não tenha fornecido uma teoria definitiva para fazer isso: ninguém o fez até agora. Mas ele nos deu uma mistura intrigante de “ciência”, “arte” e “religião” que se destaca como um dos legados singulares da ecologia do século 20, apontando o caminho para uma nova ecologia da complexidade que deve, penso eu, em função da necessidade, surgir plenamente no século 21. Ele esteve à frente do seu tempo” (tradução nossa).
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