Entre os 37.447 professores que atuam em escolas municipais de São Paulo, apenas 18 são pessoas com deficiência — número que corresponde a 0,05% do total. Os dados são do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), correspondem ao ano de 2018 e foram explorados por Talita Delfino em sua pesquisa de mestrado, desenvolvida na Faculdade de Educação (FE) da USP.
Intitulada Ser professor da rede municipal de São Paulo e ter uma deficiência: caminhos (nada suaves) da trajetória profissional, a dissertação se dedicou a investigar as possibilidades, os dilemas e as armadilhas da inclusão na rede municipal de São Paulo. Além de analisar os dados do Inep, ela entrevistou três professores com deficiência.
Talita é uma pessoa com deficiência física e usuária de cadeira de rodas. Ela é bióloga, professora de ciências e coordenadora pedagógica da prefeitura de São Paulo. “Desde a graduação, era uma inquietação minha: como professores com deficiência dariam aula? Eu fazia aulas de didática ou de fundamentos e os professores diziam ‘é importante que você coloque os conceitos na lousa’. E eu sempre questionava ‘mas como eu vou pôr na lousa?’. Eu não tenho altura. E aí, meu professor disse ‘olha, eu não tenho as respostas, mas você pode procurar’. Isso virou uma iniciação científica, meu TCC e a dissertação de mestrado”, relata a pesquisadora.
Dados e políticas públicas
A princípio, Talita pretendia caracterizar o perfil dos professores com deficiência que atuam na rede municipal. “Eu optei pela rede municipal porque eu estava dentro dela. Eu pensei que conseguiria os dados mais facilmente, o que não foi verdadeiro. Foi muito difícil achar esses professores com deficiência, quase não temos”, diz ela.
Para a pesquisadora, a escassez de dados se deve ao fato de que “dados precisam gerar políticas públicas. Há também a questão da invisibilidade, não há interesse em saber. Tem esses dois lados: não procuro porque não quero saber e, se eu souber, vou ter que fazer alguma coisa sobre isso”.
A busca pelos dados dos professores para compor a pesquisa foi iniciada no Portal de Dados Abertos da Cidade de São Paulo, que reúne informações de todas as secretarias, subprefeituras e empresas municipais. Entretanto, a base mostrava professores sem deficiência como PCDs, enquanto docentes com deficiência não estavam caracterizados como tal ou sequer constavam como funcionários da rede.
Talita também entrou em contato com os sindicatos dos especialistas de educação do ensino público municipal de São Paulo (Sinesp), dos professores e funcionários municipais da educação (Aprofem) e dos profissionais em educação no ensino municipal de São Paulo (SINPEEM). Nenhum deles soube informar quantos professores com deficiência atuam na rede municipal.
Os dados sobre os 18 docentes com deficiência atuando na rede foram obtidos após uma filtragem dos microdados fornecidos pelo site do Inep, levantados na sinopse estatística da educação básica do ano de 2018. “Eu usei dados de 2018, porque depois esses dados passaram a ficar indisponíveis para a população, por uma questão de [mudança no] Governo Federal”, explica Talita.
Entre os professores com deficiência, 15 eram mulheres que trabalham, em sua maioria, em escolas de educação infantil/creches, enquanto os três homens lecionam para turmas do ensino fundamental II. Em relação à autodeclaração sobre raça/etnia, constam 11 pessoas brancas, três pardas, uma amarela e três sem declaração. Nenhum dos professores com deficiência se autodeclarou indígena ou preto.
A pesquisadora também coletou dados relativos ao tipo de deficiência e a qual DRE pertencia cada professor.
Talita articula as informações apresentadas pelo Inep, utilizadas oficialmente para traçar os panoramas da educação e projetar políticas públicas, com o recorte feito sobre os professores na capital paulista. São Paulo, além de capital financeira do País e sede de importantes universidades, é tida como referência em políticas públicas de ensino para inúmeros municípios brasileiros.
Armadilhas de inclusão e invisibilidade
As políticas de inclusão instituídas por lei são recentes e há poucas pesquisas sobre a vivência de PCDs como professores. Talita se apoia nos estudos do sociólogo francês Robert Castel para explorar o que define como armadilhas de inclusão: “Quando eu digo que estou colocando todos numa mesma sala de aula e dando oportunidade para todos, as pessoas muitas vezes não param para pensar: se eu preciso incluir, eu parto do princípio de que aquela pessoa não deveria estar ali. Então, seria uma benesse. Essa já é a primeira armadilha”.
“Eu não tenho muita adesão ao termo inclusão. Eu faço voz aos teóricos que dizem que a educação já é para todo mundo. A educação inclusiva é um pleonasmo, mas que precisa ser reforçado porque ainda não acontece”, diz Talita
A professora constata uma insuficiência de abordagens diversas e inclusivas nos currículos da rede, ainda que existam indicações para tal. “Enquanto educação pública, a gente trabalha pouquíssimo a questão das mulheres, dos migrantes ou das pessoas com deficiência. Por exemplo, quais são as imagens de PCDs que temos nos materiais didáticos? Quais são as PCDs referência nos diferentes componentes curriculares? Então, ter o adulto com deficiência na escola também é ter uma outra referência”, diz.
Talita trabalhou durante um ano e meio em uma escola regular e por quase sete anos em uma sala de recursos multifuncionais em uma Escola Municipal de Educação Infantil (Emei). Ela relata que entre adolescentes, pré-adolescentes, crianças e crianças pequenas, as relações, conexões e questões levantadas são muito diferentes.
“Com os [alunos] de quatro anos, às vezes, tinha uma preocupação deles me empurrarem e atropelarem os colegas. Os pequenininhos faziam muita relação. Quando eles me viam, eles automaticamente faziam referência ao colega que usava cadeira de rodas também. ‘Você é a mãe do colega, né?’ Não, não sou a mãe do colega. ‘Então você é tia!’ Também não sou. Mas, como fiquei lá por seis anos, depois de um tempo isso já não acontecia mais. Eles me reconheciam ali naquela comunidade. E aí, as perguntas eram: então quando a Maria for grande ela também pode ser professora se ela quiser? Mas eu já tive aluno que tentou me derrubar da cadeira; sempre aqueles terríveis, adolescentes!”, conta a professora.
Para ela, atribuir às licenciaturas a capacitação dos profissionais para lidar com os sujeitos múltiplos que podem estar nas escolas é algo muito complexo. “Eu não sei nem como isso é possível, porque é muito individual. Para fazer isso, os cursos de licenciatura teriam que ter um ano só de psicologia, um ano só de antropologia”, observa.
“A escola, principalmente a escola básica, tem que fazer seu papel. Porque se as pessoas, de modo geral, entenderem cada uma a sua singularidade e respeitarem a do outro, fica menos pesado para os cursos de licenciatura esse olhar do profissional para com o estudante, de um colega para o outro que é professor com deficiência, da família que vê aquele professor com insegurança. Não existe fórmula, não existe mágica. É uma coisa que quem está na educação tem discutido muito sobre como trabalhar”, pondera Talita.
Pessoa com deficiênciaPessoas com deficiência (PCDs) são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interações diversas, podem obstruir a participação plena e efetiva dessas pessoas na sociedade em igualdade de condições com as demais. O termo compreende a noção de que as pessoas, antes de suas deficiências, são agentes ativos de suas próprias escolhas e vivências. |
*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles