A importância da inclusão de mulheres diversas na pós-graduação em contabilidade

Por Lais Barbosa Vieira e Janaina da Silva Ramos, doutorandas na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, e Juh Círico, pós-doutoranda na FEA-USP

 16/09/2024 - Publicado há 2 meses
Lais Barbosa Vieira – Foto: Arquivo pessoal
Janaina da Silva Ramos – Foto: Arquivo pessoal
Juh Círico – Foto: Arquivo pessoal
Historicamente, uma visão limitada foi construída sobre a contabilidade enquanto uma área voltada do homem para o homem, cisgênero, branco e sem deficiência, invisibilizando pessoas que não correspondem a este “padrão” contábil da área, como é o caso de mulheres diversas que resistem para existir na contabilidade, tanto na graduação e pós-graduação, bem como nos ambientes contábeis empresariais.

Diante desse contexto, com o objetivo de contribuir para a mudança desse cenário, por uma contabilidade inclusiva, humana e respeitosa, desenvolvemos o estudo intitulado Identidades Femininas em Resistência na Pós-Graduação em Ciências Contábeis: Uma Trietnografia Reflexiva e Interseccional, que foi apresentado e premiado como melhor artigo da área de diversidade nas organizações na 24ª USP International Conference on Accounting, realizada no período de 24 a 26 de julho de 2024 na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP.

Essa é uma pesquisa que nós, três pesquisadoras com características diversas, construímos para refletir sobre a pós-graduação em contabilidade a partir das nossas experiências e vivências, em paralelo à literatura. Para isso, utilizamos a reflexividade ao discutirmos e registrarmos as nossas vivências, analisando como o ambiente contábil acadêmico pode ser opressor a depender dos nossos marcadores sociais da diferença. Além disso, utilizamos como suporte teórico a interseccionalidade que contribui como ferramenta analítica de análise das estruturas de opressão e poder, levando em conta as várias formas de identidades, como exemplos, a identidade de gênero, raça, classe social, orientação afetivo-sexual, entre outras, e como essas características diferentes se cruzam e influenciam as experiências de cada pessoa.

Neste artigo, discutimos as experiências e vivências, individuais e coletivas, de três mulheres diversas em um curso de doutorado em Ciências Contábeis, levando em consideração as dimensões de nossas identidades: gênero, raça, orientação afetivo-sexual, além de atravessamentos pela classe socioeconômica. Reconhecemos a importância de uma abordagem reflexiva e interseccional para compreender os desafios que enfrentamos no contexto de um curso de pós-graduação em contabilidade no Brasil, em uma área que reproduz a visão do “padrão contábil ideal”, que é masculino, masculinizante, branco, cisgênero e sem deficiência.

Existem diversos estudos que corroboram que a presença de mulheres na pós-graduação é menor que a dos homens, sendo majoritariamente estudos sobre pessoas cisgêneras e binárias. Não sendo apenas uma realidade de estudantes de pós-graduação, se estendendo para o corpo docente, onde há mais homens brancos cisgêneros e sem deficiência do que pessoas com características diversas. Até a atualidade, nunca houve uma mulher trans-travesti professora de contabilidade no Brasil, por exemplo.

Essa é uma realidade que atravessa grupos minorizados e que estão em condições de desvantagem social, como as pessoas negras, pessoas com deficiências, indígenas, mulheres trans, travestis, homens trans, transmasculinidades e pessoas não binárias. Observamos que a pós-graduação em ciências contábeis, no contexto brasileiro, é um espaço predominantemente masculinizado e com pouca diversidade e que, cotidianamente, esse “padrão” nada diverso é reproduzido nesse ambiente.

Nos questionamos sobre a representatividade na pós-graduação em ciências contábeis e constatamos que, apesar de alguns avanços, ainda há uma falta de diversidade significativa. A falta de representatividade de pessoas trans e travestis nas instituições de ensino superior ainda é uma realidade no Brasil. O cenário do ensino superior brasileiro é opressor e excludente contra estudantes não cisgêneros, onde há práticas transfóbicas e processos burocráticos que, ao invés de incluir pessoas trans na instituição, as expulsam, lançando-as para as margens da sociedade.

Dessa forma, é necessário que as instituições promovam a efetiva acessibilidade dos grupos minorizados, investindo em profissionais qualificados, com competências, letramento e habilidades para ensinar, de forma inclusiva, para pessoas diversas, além das instituições e programas fornecerem apoio psicológico para estudantes terem acesso, além de ampliar vagas afirmativas, criar políticas de inclusão de mulheres diversas, ações voltadas para mães solo e implementar uma comissão para o atendimento das demandas da diversidade, incluindo um canal de denúncias.

Nesse cenário desafiador, nossa existência, resistência e permanência na pós-graduação foram sustentadas por nosso apoio mútuo e pela sororidade. A solidariedade entre nós foi crucial para enfrentarmos as adversidades na pós-graduação em contabilidade. A importância de ter uma rede de apoio se reflete em nossa experiência e é fundamental para a sobrevivência de corpos dissidentes em ambientes pouco ou nada diversos. Além das dificuldades, também tivemos momentos de aprendizado e troca de experiências, que foram enriquecedores tanto para nosso desenvolvimento profissional-acadêmico, quanto pessoal.

Nossas experiências revelam que, por sermos mulheres e apresentarmos características diferentes do “padrão contábil” masculino, branco, cisgênero e sem deficiência, enfrentamos opressão na pós-graduação em ciências contábeis que foram praticadas principalmente por homens cisgêneros, alunos e professores. Para permanecer no doutorado, tivemos que adotar estratégias de resistência, fortalecendo nossa rede de apoio e praticando constantemente a sororidade e a “dororidade”, apoiando-nos mutuamente em todas as disciplinas cursadas.

Refletir sobre nossas experiências e sobre as diferentes formas de opressão que enfrentamos nos ajudou a entender melhor os desafios que vivemos, tanto individualmente, quanto em grupo, em um ambiente contábil que muitas vezes se revela como um espaço de dor, opressão e violências, por meio de preconceitos como machismo, cissexismo, racismo e transfobia. Esperamos que o nosso estudo motive mais mulheres a compartilharem suas histórias e experiências na contabilidade. Queremos ser protagonistas de nossas vidas e carreiras, sem ter que sofrer por sermos quem nós somos: identidades femininas e diversas.

Desejamos que os ambientes acadêmicos e de trabalho na contabilidade sejam espaços onde todas nós, mulheres diversas, possamos entrar, permanecer, ser representadas e nos sentirmos pertencentes aos ambientes da contabilidade. Para isso, sugerimos que os programas de pós-graduação adotem ações e comportamentos que permitam incluir diferentes identidades. Como, por exemplo, ampliar vagas afirmativas incluindo pessoas trans, criando políticas de inclusão para mulheres diversas, com ações voltadas para mães solo, além de uma Comissão de Diversidade, Equidade, Inclusão e Pertencimento (DEIP) e um canal de denúncias.

Sobre as autoras:

Lais Barbosa Vieira
Sou uma mulher cisgênera, branca, magra, heterossexual, solteira, de 31 anos, mineira, do interior. Dentre minhas principais características, meu gênero e minha origem são meus principais atravessamentos interseccionais. Venho de família pobre, do interior de Minas Gerais. Meu sonho sempre foi estudar e esse sempre foi meu maior desafio. Por ser uma mulher pobre, diversas vezes fui invalidada, mas continuei resistindo. Por mais que os mesmos olhares de estranheza que atravessam minhas colegas não sejam direcionados a mim, ser mulher na pós-graduação em Contabilidade continua sendo um desafio.

Janaina da Silva Ramos
Sou uma mulher cisgênera, preta, gorda, de 32 anos de idade, solteira, natural do interior do estado do Mato Grosso. Venho de uma família da agricultura familiar de subsistência, por causa disso, desde criança ajudava nos trabalhos da roça. Até os 14 anos estudei em escola do campo. Em 2009, passei no vestibular para o curso de Ciências Contábeis em uma universidade pública do estado, a primeira mulher da família a fazer graduação. Queria muito cursar o mestrado, mas em Mato Grosso não existia curso na área e eu não tinha condição econômico-financeira para mudar de estado. A alternativa foi cursar um mestrado em outra área, então mudei do interior para a capital. Iniciei o mestrado em Economia no ano de 2018 e concluí em 2020. Em 2022, finalmente ingressei no doutorado em Ciências Contábeis, atualmente estou no meu terceiro ano de doutorado.

Juh Círico
Sou uma mulher travesti, branca, pansexual, de 30 anos de idade, casada com outra pessoa transgênero, natural de uma cidade com 35 mil habitantes, do interior do estado do Paraná e filha de uma mãe solo. Em uma sociedade brasileira estruturalmente racista, meu privilégio é ser branca e meus atravessamentos interseccionais são: gênero, modalidade de gênero, orientação afetivo-sexual e classe, por ser mulher, trans, não heterossexual e pobre. Concluí o doutorado em 2024 e me tornei a primeira trans doutora em Contabilidade no Brasil. Atualmente sou pós-doutoranda em Contabilidade na FEA-USP, a primeira trans no pós-doutorado em 75 anos de FEA. O foco é abrir portas para que outras pessoas trans e travestis possam acessar e permanecer em pós-graduações na Contabilidade e demais cursos da área de negócios.

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