Impactos da Inteligência Artificial e a plataformização da economia: os sindicatos nas mediações das regulamentações globais

Por Caroline Coelho, pesquisadora da Cátedra Oscar Sala no Instituto de Estudos Avançados da USP

 Publicado: 22/07/2024
Caroline Coelho. – Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.

 

 

As grandes corporações multinacionais encontram na individualização das relações laborais o caminho para a precarização e a terceirização com a intenção de redução de custos e eliminação dos direitos trabalhistas, enfraquecendo a resistência organizada e coletiva. Evidências confirmam que monopólios e oligopólios de empresas de aplicativos digitais têm sofisticado suas práticas para fortalecer a identidade corporativa ao invés de fomentar a solidariedade de classe.

É o que revelam os relatórios mais recentes publicados pelo Projeto Fairwork, da Universidade de Oxford. Em um dos casos da região, o Fairwork, com o apoio da Universidade Católica do Uruguai, apresentou uma pesquisa sobre o trabalho de plataformas, em que aponta que as empresas PedidosYa, Rappi, Uber e Cabify não asseguram a liberdade de associação e a expressão da voz coletiva dos trabalhadores.

A plataformização da economia representa tanto uma oportunidade quanto um desafio para os trabalhadores e os sindicatos. Enquanto as plataformas tecnológicas continuam a (re)definir o trabalho, a organização coletiva e a ação sindical são essenciais para garantir que os direitos laborais não sejam sacrificados em nome da “eficiência” e da “flexibilidade”.

A gestão algorítmica do trabalho pode aumentar significativamente o poder da administração sobre os trabalhadores, especialmente quando as normas trabalhistas e os sindicatos não conseguem criar estratégias eficazes para enfrentar essa nova realidade. Essa forma de organização utiliza diversas modalidades contratuais e regulatórias, como contratos de zero hora, falsa autonomia, trabalho por objetivos, micro-tarefas, subcontratação, bancos de horas, além do uso de ferramentas de monitoramento e algoritmos para a vigilância e controle dos processos de trabalho como o gerenciamento de desempenho individual e planejamento de tarefas e horários. Esses métodos frequentemente beneficiam mais os empregadores do que os trabalhadores.

Existem poucos novos direitos trabalhistas identificados para contrabalançar essa tendência, como a garantia de horas de trabalho, a recusa de tarefas não aprovadas e o direito à desconexão digital. Por isso, os Estados devem trabalhar para garantir que o avanço da inteligência artificial no ambiente de trabalho priorize os direitos humanos e trabalhistas acima dos interesses econômicos.

Além dos Estados, é preciso criar mecanismos multidimensionais de proteção que coadunam os instrumentos internacionais às regulações nacionais e às microrregulações como a negociação coletiva. Nestas três dimensões o movimento de trabalhadores deve atuar estrategicamente.

Nesse contexto, a regulamentação da Inteligência Artificial, a contribuição da academia, e políticas públicas de incentivos à pesquisa podem enfrentar os desafios da economia de plataformas. Especialmente no que diz respeito à organização de trabalhadores em múltiplas jurisdições, ao uso da alta tecnologia para estratégias organizativas sindicais e à inovação na ação sindical.

As empresas de plataformas operam globalmente, complicando a tarefa de organização em âmbito local e criando um ambiente de trabalho fragmentado, deslocalizado e despersonalizado. Políticas que harmonizem regulamentações em diferentes jurisdições podem facilitar a aplicação de direitos trabalhistas uniformes. A criação de normas internacionais pode garantir que trabalhadores em diferentes países tenham proteções equivalentes.

Regulações e acordos globais na área de IA em defesa da classe trabalhadora são essenciais para atualizar princípios fundamentais e promover a justiça, a transparência, o uso ético e não discriminatório da IA, tendo em vista a promoção de um ambiente de trabalho mais justo e seguro.

A transparência e a explicabilidade são princípios fundamentais na organização e na gestão algorítmica do trabalho. Os sindicatos e outras organizações de trabalhadores, por meio de confederações continentais e internacionais, devem participar ativamente na formulação e na implementação de políticas globais, garantindo que seus posicionamentos e necessidades sejam levados em conta.

No ano passado, o Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho (OIT) decidiu que haverá, na 113ª Conferência Internacional do Trabalho, que será realizada em 2025, uma sessão de definição de normas internacionais sobre o trabalho decente em plataformas. Pesquisas e levantamentos sobre as regulações já existentes e sobre trabalho de plataformas serão essenciais para embasar propostas que possam defender a garantia dos direitos fundamentais desses trabalhadores.

Com isso, estudos comparativos sobre regulamentações internacionais e melhores práticas podem servir de base de informação para a criação de políticas harmonizadas. A academia pode ser um ator indispensável na promoção de redes globais de pesquisadores e ativistas focados na organização de trabalhadores de plataformas.

Ao analisar a cobertura de direitos observados pelas plataformas digitais com base em cinco critérios (salário, condições de trabalho, contratos, gestão e representação justa), o estudo do Fairwork revelou que apenas uma plataforma das cinco investigadas, chamada SoyDelivery, demonstrou cumprir com o critério de representação ao apresentar documentação de procedimentos para as comunicações com seus trabalhadores, tanto sobre aspectos individuais como coletivos.

O caso ilustra uma dinâmica que afeta trabalhadores em diversos países. A economia global experimentou uma transformação radical com a emergência dessas plataformas tecnológicas que mediatizam quase todos os aspectos da vida diária, como a entrega de alimentos, transporte e diversos serviços profissionais.

Esse fenômeno trouxe consigo novas formas de organização do trabalho e desafios significativos para os direitos dos trabalhadores. A plataformização da economia implica a intermediação de plataformas digitais na prestação de serviços, o que permitiu às empresas se globalizarem e otimizarem suas operações.

No entanto, esse modelo também conduziu os trabalhadores a um processo de reindividualização e atomização. No lugar de serem empregados com contratos que asseguram direitos e benefícios definidos, muitos trabalhadores de plataformas são considerados autônomos por parte das empresas como estratégia para reduzir custos e afastar a incidência da legislação trabalhista.

Essa prática busca erodir as proteções laborais tradicionais e enfraquecer a capacidade dos trabalhadores de se organizarem coletivamente. Nesse contexto, os sindicatos e a organização de trabalhadores são mais importantes do que nunca. Os sindicatos desempenham um papel central na defesa dos direitos laborais, por uma legislação protetora e igualitária, negociando melhores condições de trabalho e lutando contra a precarização.

A capacidade dos trabalhadores de se unir e defender seus interesses coletivos é uma resposta fundamental à tendência atomizadora imposta pela economia de plataformas. Sobre a proteção de direitos, os sindicatos podem negociar convenções coletivas que assegurem salários justos, benefícios adequados e condições laborais seguras.

Em um ambiente em que os trabalhadores de plataformas muitas vezes carecem dessas proteções, a ação sindical organizada é essencial para garantir que seus direitos não sejam ignorados. A atomização dos trabalhadores enfraquece seu poder de negociação. Os sindicatos
oferecem uma voz coletiva que pode enfrentar as grandes corporações e pressionar por mudanças nas políticas laborais. Essa representação é vital para equilibrar o poder entre empregadores e empregados.

Paralelamente, a luta contra a precarização é uma das bases dos sindicatos, assim como as mais diversas formas de organização dos trabalhadores. A plataformização aumentou a instabilidade laboral, com muitos trabalhadores sujeitos a contratos temporários ou sem contrato algum. Os sindicatos podem atuar para transformar essas formas de emprego em relações laborais mais estáveis, com foco no trabalho decente, promovendo a formalização e a segurança no trabalho.

Embora a alta tecnologia seja utilizada e coexista com o trabalho informal, no caso dos sindicatos, a mesma deveria ser empregada para desenvolver estratégias organizativas. Os sindicatos necessitam se adaptar para desenvolver novas estratégias e aglutinar os trabalhadores da economia de plataformas. Para isso, o uso de tecnologias digitais assume um caráter estratégico para conectar os trabalhadores, criar redes de apoio e formar alianças com outros movimentos sociais para transformar e fortalecer os sindicatos para representar e organizar toda a classe trabalhadora, independentemente de seu vínculo laboral ou atividade.

A inovação na ação sindical é fundamental no mundo laboral contemporâneo. As mobilizações tradicionais devem ser complementadas com táticas inovadoras que utilizem as redes sociais e outras plataformas digitais para amplificar as demandas dos trabalhadores. A capacidade de mobilização e de alcançar uma audiência global é uma oportunidade para o movimento sindical que deve ser aproveitada.

Os sindicatos e os movimentos de trabalhadores podem ser decisivos para contrapor a ideologia corporativa multinacional da individualização, promovendo a solidariedade de classe e destacando os benefícios da organização e da negociação coletiva. A educação e a conscientização sobre os direitos laborais são fundamentais para alcançar esses objetivos.

A construção de comunidades também é um elemento central para o movimento sindical. Fomentar a criação de comunidades de trabalhadores que compartilhem experiências e se apoiem mutuamente é chave para resistir à atomização. As iniciativas de base que promovem a solidariedade e o apoio mútuo podem ajudar a reconstruir o tecido social entre os trabalhadores de plataformas.

Nesse cenário, a luta por uma economia mais justa e equitativa é possível, mas requer sindicatos fortes e uma solidariedade renovada entre os trabalhadores, para enfrentar as novas realidades do trabalho digitalizado e atomizado.

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