Tijolo, bala e a produção da cidade na Casa do Povo

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 16/05/2024 - Publicado há 2 meses

A Casa do Povo é um espaço histórico do Bom Retiro, bairro do centro de São Paulo que recebeu parte das colônias judaica e árabe no século passado. O equipamento foi erguido por migrantes judeus da Europa Oriental para homenagear os mortos nos campos de concentração durante a Segunda Guerra e promover atividades antifascistas. Inaugurada em 1953, cedeu espaço para movimentos artísticos de vanguarda, como as peças do Teatro de Arena, de Plínio Marcos e de Gianfrancesco Guarnieri durante a ditadura militar.

Também ofereceram bolsas de estudos a alunos filhos de perseguidos políticos. A administração do espaço entrou em crise depois dos anos 1980. Quase virou uma igreja evangélica, mas retomou sua vocação de resistência no final dos anos 2000 para abrigar coletivos de artistas, de reciclagem, clínicas abertas de psicanálise, aulas de yoga e treinos de boxe, redações de jornalismo popular, entre outras atividades e grupos.

Quem apresenta a história da Casa do Povo é a professora e urbanista Raquel Rolnik. Estamos em um amplo galpão, com pé-direito alto. A plateia está acomodada em cadeiras de praia, simples, confortáveis e baratas. Nas três horas seguintes, o público permanece atento para ouvir pesquisadores de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Fortaleza discutirem sobre a ascensão de facções e de grupos milicianos no controle territorial e na produção das cidades. Algumas perguntas direcionam a conversa. Existe um novo modo criminoso de governar os territórios urbanos? Por que o poder de tiranias armadas estão se espalhando pelos municípios brasileiros e bairros populares? O que há de novo e de recorrente nesse fenômeno?

Na mesa do seminário, as visões se mostraram diversas e complementares, favorecendo o diálogo e a busca da construção conjunta do conhecimento. O assunto é complexo porque as mudanças estão acontecendo agora, na atualidade, o que dificulta o distanciamento necessário para pensar sobre o tema. Falaram a professora Isadora Guerreiro, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e do LabCidade – Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade; Giovanna Milano, professora de Direito Urbanístico Ambiental no Instituto das Cidades da Unifesp, inaugurado na periferia leste de São Paulo para ajudar a pensar os desafios e as políticas públicas para os municípios; Daniel Hirata e Carolina Grillo, professores da Universidade Federal Fluminense e coordenadores do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), que desenvolvem pesquisas sobre a violência nos bairros do Rio de Janeiro; Valéria Pinheiro, pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará, falou sobre Fortaleza. As sociólogas e professoras Cibele Risek e Vera da Silva Telles contribuíram com perguntas e análises. Fui chamado para comentar os resultados das pesquisas dos meus colegas nessa tarde e noite especiais.

A conversa partiu da produção sociológica que vem ajudando a pensar a vida urbana em São Paulo e brasileira antes e agora. Raquel Rolnik, a mediadora do debate, iniciou sua trajetória intelectual sob a orientação do sociólogo Lucio Kowarick, figura fundamental da sociologia paulista, cujas reflexões serviram de inspiração para lutas políticas concretas no período de abertura e redemocratização brasileira. Kowarick, que faleceu em 2020, foi também meu orientador no mestrado na USP. Estes estudos urbanos, iniciados no final dos anos 1970, são base para as reflexões atuais.

Começaram em tempos em que academia, sindicatos, movimentos socais e igreja se juntavam para pensar juntos os projetos coletivos para reformar o sistema e criar em um futuro menos desigual e mais justo na democracia que renascia. A pedagogia de Paulo Freire e a Teologia da Libertação, entre outras influências, serviam de inspiração para dialogar com as lideranças das periferias emergentes e construir uma consciência crítica, libertadora, mais atenta aos desafios sociais. As comunidades eclesiais de base da Igreja Católica se espalharam pelos bairros periféricos. Caso esse processo de formação funcionasse, quando a democracia viesse, os pobres escolheriam os candidatos que representassem os reais interesses de sua classe e não os dos ricos ou dos políticos clientelistas. Nesse caminho, quem sabe, o Brasil se tornaria uma social-democracia nos moldes das sociedades europeias, padrão de justiça e desenvolvimento humano.

Durante um tempo, as coisas pareciam funcionar. A gramática dos direitos e da cidadania esteve presente em boa parte das páginas da Constituição de 1988. Foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), a educação se expandiu, surgiram políticas de renda inovadoras, entre diversos debates e marcos de políticas públicas. Políticos forjados na Nova República, compromissados com o regime democrático, eram as principais referências na política. Esses avanços, contudo, não foram suficientes para diminuir o peso do dinheiro para a sobrevivência nas cidades. As pequenas cidades rurais, onde viveu parte a maior parte da população brasileira até os anos 1940, apesar da precariedade econômica, ofereciam uma rede de proteção formada pela família, vizinhança e agricultura de subsistência. Nas metrópoles, para onde partiram depois da metade do século passado, era cada um por si, e o dinheiro, assim como oxigênio, se consolidou como elemento vital para a sobrevivência. A capacidade de se inserir e participar do mercado de trabalho e de consumo se impôs na realidade urbana, que exige dinheiro para comer, morar, educar os filhos, não morrer nas filas do hospital, não ser assassinado pela polícia.

O crescimento do número de pessoas dispostas a seguir a carreira criminal foi um dos efeitos desse sistema dinheirista. Uma escolha quase sempre suicida, mas que seduzia principalmente os homens que se recusavam a ser humilhados pelo sistema. Ao se tornarem bandidos, eles subvertiam o papel do oprimido para se tornarem os opressores. Em vez de ser respeitados, muitos preferiam ser temidos. A violência policial e o extermínio de suspeitos eram vistos como um antídoto para lidar com os revoltados do sistema. Esses instrumentos, contudo, em vez de produzirem a ordem e a obediência desejadas, acabaram estimulando novos conflitos, diminuindo a confiança no Estado, gerando uma corrida armamentista e acirrando o caos nos cotidianos periféricos. Como resultado, as taxas de homicídios explodiram em centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, que passaram a encabeçar as listas de cidades mais violentas do mundo.

A situação se transformou nas últimas duas décadas, junto com o aumento da lucratividade no crime em um contexto de redução dos empregos formais e na indústria, que perdeu sua centralidade na economia, ao mesmo tempo que o mundo informal e ilegal seguiu oferecendo oportunidades e brechas para quem precisava enriquecer e respirar. As facções, puxadas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), perceberam que a criação de regras no mercado do crime reduziria conflitos e aumentaria seus lucros. Essa gestão do mundo do crime passou a ser feita a partir das prisões, se estendendo aos territórios e aumentando o bolo de dinheiro de um mercado avesso a crises. O ingresso no atacado da cocaína permitiu aos integrantes do PCC e aos seus simpatizantes criarem uma rede de parceiros que rompeu as fronteiras do Brasil e da América do Sul, passando a distribuir drogas no mundo inteiro.

No Rio, o domínio se deu sobretudo nos territórios pobres, que desde os anos 1980 são disputados por grupos armados com diferentes bandeiras e chefes, desde os financiados pelo tráfico a quadrilhas de policiais, as chamadas milícias, criadas a partir dos anos 2000, que adquiriam suas receitas de extorsões e da gestão de negócios informais e ilegais, como vans, imóveis, gás, gatonet, entre outras.

A ordem armada nos territórios das cidades brasileiras, criada pela dobradinha dinheiro-violência, passou a se legitimar ao criar um ambiente mais propício para o lucro. Facções e milícias passaram a se apropriar da gramática da luta por direitos e de valores religiosos para justificar suas guerras. Bordões como “a luta contra o sistema opressor” ou o uso da “violência na defesa do cidadão de bem” se naturalizaram. Mais rápido do que se imaginava, o modelo violento de controle territorial e armado se espalhou pelo País e se estabeleceu como uma realidade social e política da atualidade brasileira, que é ao mesmo tempo nova e antiga, uma continuidade histórica repleta de transformações, como observou Cibele Rizek no debate na Casa do Povo.

A segurança pública e a violência se tornaram, sobretudo, um problema político, fragilizando a soberania do Estado sobre as cidades, espalhando tiranias localizadas, voltadas ao lucro, em plena democracia. A produção da cidade ganhou uma nova dinâmica, ligada aos interesses desses grupos criminosos, que passaram a exercer influência crescente no Estado, financiando campanhas políticas nos parlamentos, Executivos e Judiciário, penetrando na máquina pública via empresas de fachada que prestam serviços terceirizados, como transporte coletivo, entre outras atividades.

O debate político e as lutas sociais do período de redemocratização, que pretendiam mobilizar as massas com apoio dos partidos de esquerda, dos sindicatos e da educação libertadora, foram sendo relegados a um segundo plano diante do desafio dos moradores das cidades em ganhar dinheiro. As igrejas pentecostais e a Teologia da Prosperidade, que prometiam uma fé voltada ao empoderamento individual, ao espírito empreendedor, ganharam cada vez mais adeptos. A luta por direitos e por políticas públicas capazes de reduzir a injustiça e desigualdade, por meio da ação racional e eficiente do Estado, foi sendo substituída pela luta cotidiana para enriquecer e consumir. A solução para diminuir a miséria, em vez de um projeto coletivo da Nova República, passou a ser liderada por irmandades, tanto criminais como religiosas, que se articularam em torno de valores comuns para vencer os desafios da inclusão no mercado de consumo, abandonando a pretensão de reformar o sistema.

As bandeiras sociais do passado recente, como a luta por moradia, saúde, educação etc., deixaram de mobilizar como antigamente. Na verdade, parecem ainda mobilizar lideranças femininas, que seguem engajadas na luta pela reprodução social da vida, pela valorização da economia do cuidado no cotidiano das periferias, quilombos, pequenas propriedades agrícolas e aldeias indígenas. No debate da Casa do Povo, muitas delas estiveram presentes, dispostas a dialogar para pensar sobre caminhos de retomar a luta política pelo futuro das cidades e do planeta. Precisam conviver e competir, contudo, com um tipo de autoridade que pretende se impor pelo dinheiro e pela violência, formada principalmente com o ethos guerreiro dos homens, amante das armas, que transformaram a política em guerra.

Esses grupos armados passaram a tirar proveito do crescimento econômico das periferias, dos recursos de programas de renda, das bolsas-aluguel, de projetos sociais como Minha Casa Minha Vida ou da regularização de favelas, mediando e regulando a engrenagem comercial e financeira do dinheiro que passou a circular em maior quantidade nesses bairros. É um tipo de extrativismo da renda dos pobres, que beneficia poucos e não transforma a situação social e política do território em que vivem, mantendo a maioria em condições precárias.

Um evento marcante que simboliza esse embate foi o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, em março de 2018. Domingos Brazão e seu irmão Chiquinho Brazão são acusados de serem os mandantes do crime. Eles temiam as ações de Marielle na Câmara Municipal para barrar a expansão nos negócios de grilagem e de loteamento irregular, que garantia votos, dinheiro e poder para a família. Marielle lutava pela atuação do Estado na construção de moradias populares para os sem-casa.

Os desafios dessa realidade social e política foram debatidos na Casa do Povo e os resultados dos estudos em breve serão publicados. Por mais que os problemas pareçam gigantes e insolúveis, encontros como esse ajudam a manter acesa a esperança e o compromisso com a construção de um projeto de futuro que consiga mobilizar o imaginário coletivo, para voltar a engajar as pessoas na luta por reformas que criem um mundo menos desigual, mais justo e viável para a vida no planeta.

_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.