Peça premiada retrata comunidade popular cearense perseguida no governo Vargas

Vencedora do Shell e do APCA, nova peça do Grupo Clariô, em cartaz no Teatro da USP, traça paralelo entre comunidade religiosa massacrada por tropas militares no século XX e a intolerância religiosa e cultural na periferia paulista de hoje

 17/05/2024 - Publicado há 2 meses
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Cena do espetáculo Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto – Foto: Sergio Fernandes / Divulgação

Em maio, o Grupo Clariô de Teatro chega ao Teatro da USP (Tusp) para uma curtíssima temporada de seu mais novo espetáculo, Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto, peça de 2023 que já recebeu os prêmios Leda Maria Martins na categoria Ancestralidade, o APCA 2023 em dramaturgia e, agora em março, o Prêmio Shell pela direção musical de Naruna Costa. As apresentações são gratuitas e acontecem na sala do Tusp na Rua Maria Antônia, somente aos sábados (20h) e aos domingos (19h), entre 25 de maio e 16 de junho.

Esta mais recente peça do grupo de Taboão da Serra se inspira na história real, pouco difundida no Brasil, sobre a Irmandade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. Uma comunidade popular que ousou construir uma sociedade igualitária, uma vida em comunhão no Cariri cearense nas primeiras décadas do século passado, mas que foi perseguida e destruída por forças oficiais militares mancomunadas com os poderosos daquela região, sob o argumento de fanatismo e o receio de que ali nascesse uma nova Canudos.

Com a estética da cultura popular do reisado cearense, da liturgia do boi e do encantamento, o coletivo de Taboão da Serra narra a saga dessa irmandade, liderada pelo Beato José Lourenço, tecendo um paralelo ficcional com a narrativa de uma comunidade de Boi Bumbá formada na periferia de São Paulo por um sobrevivente do massacre do Caldeirão nos tempos de hoje – e que tem também sua tradição ameaçada e perseguida pelos poderosos detentores do dinheiro e do Estado.

A palavra liturgia vem do grego “ação que vem do povo”

Liderada pelo beato José Lourenço, negro paraibano, nascido em 1870, filho de negros alforriados, que desembocou no Juazeiro do Norte vindo em meio às imensas levas de romeiros, a Irmandade da Santa Cruz do Deserto inicia sua jornada no sítio Baixa D’Anta, Crato/CE.

Ali, criavam um boi zebu chamado de Mansinho e que – dizem – era tratado com ares de divino por sua calma e por ter sido presente de Padre Cícero, dono também das terras do Caldeirão. Esse boi foi morto pelas autoridades numa ação explícita de ataque à identidade simbólica daquele povo. Após este primeiro ataque, a comunidade migra para o sítio Caldeirão, onde ganha mais força e, por fim, maior perseguição. Após dez anos de resistência e luta, com o aval da igreja, o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto é por fim destruído no primeiro bombardeio aéreo voltado a civis realizado pela Força Aérea Brasileira.

Cena do espetáculo Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto – Foto: Sergio Fernandes / Divulgação

Folia é forma de resistência!

No espetáculo, a perseguição à irmandade do Beato Zé Lourenço em meados anos de 1930 recebe um paralelo ficcional na narrativa sobre uma comunidade de Boi Bumbá formada na periferia paulistana de hoje pelo Mestre Joaquim, um dos últimos descendentes do Caldeirão. Esta comunidade também é atacada pelo Estado e impedida de colocar o boi na rua.

Em diálogo entre estes dois tempos e geografias – o Ceará na Era Vargas e a periferia paulista de hoje – a peça aborda temas que muito repercutem em nossa sociedade contemporânea, como democracia, intolerância religiosa, intervenção militar, o direito à moradia e genocídio negro. Apesar de toda tragédia anunciada, o festejo é o fio condutor desta saga delicadamente forjada a partir da riqueza da cultura popular, amparada pelo sagrado e pela força do trabalho. 

O espetáculo se pauta na ousadia e no encantamento para saudar essas histórias que o Brasil colonial ainda quer apagar, mas que correm nas veias de um povo que é plural e místico, e que descende de guerreiros e guerreiras que ousaram formar comunidades solidárias, autônomas e inspiradoras – como tantos quilombos, aldeias e terreiros urbanos Brasil afora. A peça também destaca a existência da Beata Maria de Araújo, a Beata Preta, que inaugurou milagres nas terras de Juazeiro e que foi silenciada e apagada, literalmente, pelo racismo no Brasil.

O Coletivo

O Grupo Clariô de Teatro é um coletivo de teatro periférico, resistente, que busca através da cena e da troca com outros coletivos discutir a arte produzida pela periferia, na periferia e para a periferia. É um grupo que, marcado pela teimosia, há quase vinte anos segue com o objetivo de produzir e pensar o teatro nas bordas da metrópole. 

Suas produções tentam traduzir e questionar inquietações políticas e artísticas que, diante da precariedade de sua realidade financeira, propõem um caminho de estética criativa próprio da “quebrada”. Seu trabalho se concentra em Taboão da Serra, cidade dormitório, periferia da região metropolitana do Estado de São Paulo. Ali se localiza o Espaço Clariô, mantido pelo grupo desde 2005, um local de formação e produção de pensamento junto à comunidade.

Em 2014, o reconhecimento desse trabalho continuado veio com o Prêmio Governador do Estado de São Paulo 2013, na categoria Inclusão Cultural, em função dos projetos Mostra de Teatro do Gueto, Quintasoito e a ocupação Sarau do Binho. O Clariô vem sendo premiado desde 2009, quando foi o maior indicado no 1º Prêmio da Cooperativa Paulista de Teatro (CPT), no qual ganhou os troféus de Melhor Espetáculo do Interior e Litoral, Melhor Ocupação e Melhor Espetáculo em Sala Não-Convencional, por Hospital da Gente. De 2011, Urubu Come Carniça também foi premiado pelo Prêmio CPT, levando o título de Melhor Elenco e, no mesmo ano, também foi considerado, pela revista Mais Cultura, uma das dez melhores peças de teatro do ano em São Paulo.

Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto

De 25/05 a 16/06/2024  | Sábados, 20h; domingos, 19h
Gratuito, ingressos 1h antes de cada sessão


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