A pandemia do coronavírus deixou como marca o quantitativo de mais de 705 mil mortos no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, contabilizados até final de setembro de 2023 na plataforma Coronavírus Brasil. Estes dados trazem à tona o questionamento em relação ao monitoramento das famílias marcadas por perdas, abrindo espaço para um campo que ainda é permeado por algumas lacunas: a orfandade ocasionada em decorrência da pandemia de covid-19.
Estima-se a existência de um quantitativo de aproximadamente 113 mil órfãos e órfãs da pandemia de covid-19 no Brasil, segundo denúncia do relatório do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), baseados em um estudo realizado pela Escola de Saúde Global de Harvard. Esses dados foram endossados pela pesquisa conduzida pela Fiocruz e a Universidade Federal de Minas Gerais, e evidenciam um quantitativo de mais de 40 mil crianças e adolescentes órfãos da covid-19. Esta pesquisa foi realizada considerando o recorte dos anos de 2020 e 2021, tendo por metodologia os procedimentos de cruzamento dos dados entre os óbitos e os registros de nascidos vivos.
Vale ressaltar que as dificuldades em obter um diagnóstico preciso para a definição da categoria de orfandade da pandemia ocorre em função da subnotificação dos casos e pela má gestão da pandemia — que colaborou com uma conjuntura de negacionismo e hesitação vacinal — configurando, assim, uma política de “deixar morrer” e de genocídio em especial de pessoas pobres e com menor escolaridade. Esse dado também é revelado pela pesquisa já citada, que registra que morreram mais homens, e com um nível menor de instrução — cerca de 38,8 a cada 10 dez mil mortos, três vezes maior em relação a homens que possuem educação superior. A mortalidade masculina foi 31% maior que a mortalidade feminina.
Isso pode suscitar uma análise interseccional, que é o fato de que pessoas com menor grau de instrução vinham mais a óbito, além das menores perspectivas de mobilidade social direcionadas a elas. Assim, essa análise aglutina um retrato da pandemia: pessoas mais pobres estavam mais vulneráveis e, nesse contexto, a pandemia ampliou as desigualdades já existentes no que tange aos marcadores sociais da diferença.
Antes da pandemia, uma realidade já se apresentava de forma alarmante: a conjuntura dos dados das mães solo antes desse período informam um total de cerca de 11,5 milhões de mulheres nesta situação. Esses dados foram levantados pelo Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE), em 2010, e já estão em defasagem, pois já se passou mais de uma década. Acredita-se, entretanto, que a pandemia pode ter favorecido o aumento deste número, haja vista que mais homens morreram e o fato de mulheres mães solo também terem chegado a óbito. Esse dado alerta para a necessidade de mapeamento destas famílias, no sentido de compreender quais arranjos foram tecidos no que tange às relações de parentesco e de cuidado. Quantas famílias se tornaram órfãs em decorrência da pandemia de covid-19?
São indagações e reflexões que fazem pensar sobre as consequências do coronavírus, sejam elas associadas a um luto social que não pode ser vivenciado em relação aos rituais fúnebres, sejam em relação às famílias que ficaram órfãs de seus parentes. É importante ampliar essa discussão e problematizar a orfandade deixada pela pandemia e como esta pode ser lida sob uma perspectiva das ciências humanas e sociais para além do campo de disputa do debate público, que fica centralizado pelos saberes da área da saúde.
Oficialmente, consideram-se órfãos e órfãs as crianças e adolescentes que ainda não atingiram a maioridade, tendo como marca os dezoito anos. Por isso, trago como reflexão a importância de se pensar a orfandade em termos de significados cotidianos no que se refere às relações de parentesco e conjugalidade, numa linha de pensamento que articula a generificação do cuidado e como este se reorganiza frente a um evento traumático.
Talvez o primeiro exercício de pensar a bricolagem destes pensamentos em ebulição seja a particularidade do tempo: como processamos distintas acepções de tempo, durante a pandemia e por que não pensar que ainda estamos por digerir as consequências desse contínuo tempo que não se encerra, mas compreende ciclos que caminham e voltam em cada espaço-tempo. Articulo neste ponto a complexa combinação entre o tempo cronológico, o tempo de suspensão e o tempo do luto.
Em março de 2020, seguimos as marcas de um tempo cronológico quando este entrou em suspensão: emergia, ali, a sentença de que precisávamos parar, ficar em casa, repensar o fluxo da vida e das emergências cotidianas. Porém, quais foram as pessoas que puderam parar e ficar em casa, enquanto muitas outras que residiam nas periferias deste país sequer possuíam habitações dignas com acesso à água, saneamento básico? Quem teve a possibilidade de parar, diante da emergência mais grave, que era não sucumbir à fome – necessidade esta que antecede o medo da morte.
Penso que ainda estamos por vivenciar o tempo do luto daquelas e daqueles que partiram em decorrência da suspensão da vida, ocasionada pela covid-19, ao longo destes três últimos anos que se passaram pelos significados de construir o tempo presente gerindo as consequências da pandemia. Para tanto, podemos pensar que de alguma forma todas e todos perdemos alguma parte de nós nesse processo e estamos por gerir um luto.
Assim, contagiada por essas reflexões, estou construindo o caminho da pesquisa que irá investigar a orfandade da pandemia de covid-19 e como se dá a reorganização das relações de cuidado e parentesco em famílias negras, na cidade de Fortaleza, no Ceará. O objetivo mais amplo deste trabalho é entender como essa realidade colabora para com a ampliação das desigualdades.
Como o estudo da pandemia de covid-19 não se encerra com o fim da emergência sanitária, o campo das ciências humanas e sociais tem muito a contribuir com reflexões sobre a pandemia a partir de inúmeras perspectivas, tais como pautar políticas públicas no que tange a auxílios e gestão das endemias e tendo como mirada novas emergências sanitárias.
Nesse sentido, sugiro o podcast Ecos Pandêmicos, fruto do projeto de extensão universitária “A pandemia do covid-19 sob perspectiva interseccional em territórios periféricos: diálogos entre Brasil e África do Sul”. Tendo por coordenação Laura Moutinho, professora do Programa de Antropologia Social da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, e vice-coordenação de Márcia Thereza Couto, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, o podcast faz ao longo dos seus episódios importantes análises e reflexões sobre a pandemia de covid-19 numa perspectiva de compreensão de enfrentamentos destes dois países do Sul Global.
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