O assassinato de Mãe Bernadete e os desafios da segurança pública para governos progressistas

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 04/09/2023 - Publicado há 1 ano

O assassinato de Bernadete Pacífico foi um dos principais crimes políticos da história recente do Brasil. Ela morreu por não se sujeitar à tirania armada dos que agem movidos pela busca criminosa por lucro e poder. Assim como ocorreu com Marielle Franco, assassinada em março de 2018, no Rio de Janeiro, os matadores atacaram sobretudo sua figura pública, os valores que ela representa para a sociedade baiana e brasileira, na tentativa de para silenciar as discussões e os debates provocados por sua existência e liderança.

Mãe Bernadete era ialorixá, matriarca de terreiro e mestre de samba de roda. Mantinha vivo o conhecimento que herdou de sua mãe, Maria Alvina do Nascimento, parteira e sambadeira. As ações de Bernadete também eram políticas e estavam voltadas à organização de sua comunidade, localizada numa área de 840 hectares do quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho. Ela ajudou a criar uma associação que permitiu 290 famílias viverem da agricultura familiar. Bernadete representava, pela sua ação, cultura e visão de mundo, a resistência contra a ganância de diferentes grupos que a viam como um obstáculo.

O governo baiano demonstrou agilidade e decretou a prisão de três suspeitos por participação no crime. Um dos executores, segundo as autoridades, teria envolvimento com grupos ligados ao tráfico de drogas e a homicídios na região. As diversas dúvidas sobre a motivação, contudo, revelam o estágio de degradação do quadro político e institucional baiano, que se reproduz em outros estados brasileiros.

Bernadete relatava ameaças de grileiros e de madeireiros, interessados em se apropriar dos recursos e das terras do quilombo que ficam em área de preservação ambiental. As denúncias vinham sendo feitas desde a execução de seu filho, Flavio Gabriel Pacífico, em setembro de 2017, que nunca foi esclarecida pela polícia. Assim como aconteceu com outras mães que perderam seus filhos para a violência nas periferias do Brasil, ela passou a lutar por justiça.

As ameaças tinham se intensificado nos últimos meses. Bernadete, segundo testemunhas, chegou a relatar que um homem estava vendendo lotes na região. Moradores disseram que o vendedor estava ligado a um policial que ganhava com a extração de madeiras. A demora na titulação definitiva do quilombo acabava promovendo pressões de grileiros e de madeireiros sobre os que moram nessa área, situação que se repete em diversas áreas de proteção ambiental nos estados da Amazônia Legal.

No caso de o crime ter sido praticado por pessoas ligadas ao tráfico, três razões estariam por trás da ação. A ialorixá impedia a venda de entorpecentes na área do quilombo, o que atrapalhava o lucro e desafiava o poder dos criminosos, que passaram a fazer parte de uma rede nacional de gangues, mais armada e articulada. Também não está descartada a intolerância religiosa. No Rio de Janeiro, traficantes passaram a atacar terreiros e integrantes de religiões de matrizes africanas influenciados por visões distorcidas do pentecostalismo. Ainda há a possibilidade de o crime ter sido praticado por encomenda.

Diversos tipos de tiranias armadas, formadas por autores de crimes ambientais, traficantes e milicianos, tornaram-se um imenso desafio para a democracia brasileira e para a integridade das lideranças que a representam. Entre 2019 e 2022, 169 defensores de direitos humanos foram assassinados, segundo levantamento feito pelas organizações Terra de Direito e Justiça Global. O Maranhão, estado que foi governador pelo ministro atual ministro da Justiça, Flavio Dino, liderou o ranking, com 26 vítimas. Perto de 70% morreram nas regiões Norte e Nordeste. A maioria é indígena, ligada à defesa de suas terras. Foram 50 assassinados, entre os 89 com raça identificada. Outros 30 eram negros.

A Bahia, há mais de 16 anos governada pelo PT, revelou-se incapaz de pensar em formas mais efetivas para reduzir o drama do aumento dos homicídios, do fortalecimento do mercado de drogas e do descontrole das polícias. Na década de 80, quando foram coletados os primeiros dados de homicídios pelo Ministério da Saúde, os casos no estado variavam entre 3 e 5 por 100 mil habitantes, uma das taxas mais baixas do Brasil. Passou à casa dos dois dígitos somente em 1993, rompendo o patamar de 20 por 100 mil em 2005. O crescimento, a partir de então, acelerou-se e depois se manteve em níveis elevados. Ao longo da década passada até os dias atuais, os homicídios no estado ficaram sempre acima dos 40 homicídios por 100 mil habitantes.

Apesar do crescimento da população prisional e dos investimentos na polícia, o movimento do mercado de drogas se intensificou. Pequenas facções locais passaram a travar disputas violentas no estado, associando-se a grupos criminosos nacionais, penetrando nas pequenas e médias cidades baianas. A reação do governo foi ineficaz, atabalhoada e contraproducente, soltando as rédeas e fechando os olhos para a truculência da polícia. O resultado foi o crescimento da letalidade, que explodiu na última década. Se, em 2014, 278 pessoas haviam sido mortas pela polícia, oito anos depois, em 2022, o total de vítimas foi de 1.464, crescimento de 427%, superando em números absolutos até mesmo as polícias do Rio de Janeiro.

Ao longo das gestões petistas, o que se viu foi a reprodução dos mesmos erros dos partidos populistas, que exploram o medo da população e apostam no patrulhamento ostensivo e truculento nos bairros pobres, reproduzindo a violência contra os grupos mais estigmatizados – basta dizer que 98% das vítimas da violência policial na Bahia são negras. Em vez de garantir o direito e a segurança das pessoas que vivem nesses territórios, as autoridades entraram em guerra contra a própria população. A estratégia acelerou o aprisionamento em massa, fragilizou o controle sobre as polícias, quadro que fortaleceu as facções criminais e as milícias, acirrando a revolta de parte dos moradores e fragilizando a legitimidade das instituições democráticas.

É possível escapar da lógica ineficiente das políticas de segurança e obter bons resultados na redução da violência? Sim. Basta ter vontade política para definir prioridades e bom senso para escolher as melhores ações. A guerra ao crime não pode ser um fim em si mesmo, já que aumenta a desordem e a sensação de insegurança. As autoridades devem focar no controle da violência nos territórios com taxas mais elevadas, na fragilização do poder das tiranias armadas desses bairros e no controle da ação das polícias, sujeitas a serem cooptadas pelo crime.

Existem políticas bem sucedidas no Brasil e ao redor do mundo que já mostraram sua eficácia e que podem ser replicadas por gestores públicos dispostos a liderar essas mudanças. Um primeiro passo para conhecê-las e compreender como funcionam está no livro recém-lançado Manual de segurança pública baseada em evidências, de Alberto Kopittke, um compêndio com mais de 800 páginas que analisa 170 tipos de programas e seus resultados, obtidos ao longo dos últimos 50 anos. Nos próximos meses, iremos discutir alguns deles. (Mais sobre o livro, aqui.)

Kopittke foi diretor do Departamento de Políticas e Projetos na Secretaria Nacional de Segurança Pública durante o governo de Dilma Rousseff. Já havia sido secretário municipal de segurança da cidade de Canoas, quando conseguiu bons resultados na redução de homicídios. Como gestor público, sentiu falta de ter acesso a dados sobre o resultado de programas para a área, já que precisava decidir como investir recursos públicos limitados e tinha diversas possibilidades. Passou sete anos debruçado sobre o tema para ver as que mais funcionam, conforme critérios referendados globalmente. Mesmo não tendo a pretensão de dar respostas definitivas, o livro é um excelente começo para provocar o debate entre os governos progressistas, que têm se omitido ou falhado na busca de garantir a segurança e os direitos da população. O Governo Federal, em vez de liderar o debate e direcionar recursos a políticas bem-sucedidas, por enquanto, vêm lavando as mãos e evitando discutir o tema com os estados, dando espaço para as soluções ultrapassadas pregadas pela direita populista.

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