Foto: Reprodução/Coletivo Juntos

Direito da USP retira homenagem a professor que expôs corpo de mulher negra como curiosidade

Jacinta Maria de Santana morreu em 1900, no centro de São Paulo. Durante décadas, seu corpo embalsamado foi mantido como curiosidade na Faculdade de Direito (FD) da USP

 06/04/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 09/05/2023 as 12:41

Texto: Silvana Salles

Arte: Joyce Tenório

A Faculdade de Direito (FD) da USP decidiu retirar a homenagem ao professor Amâncio de Carvalho, já falecido, dos corredores do prédio do Largo São Francisco, no centro da capital paulista. Amâncio de Carvalho foi catedrático de Medicina Legal de 1891 a 1925 e, até a votação da Congregação, na semana passada, emprestava o nome a uma das salas da FD. Ele é acusado por ter mantido e exposto como curiosidade, durante décadas, o corpo embalsamado de Jacinta Maria de Santana, uma mulher negra falecida nas ruas de São Paulo em 1900.

A mobilização dos estudantes negros da FD foi fundamental para o resultado da votação na Congregação, que aconteceu no dia 30 de março. Na véspera da reunião da Congregação, a Coletiva Negra Angela Davis, a representação discente e o Centro Acadêmico XI de Agosto realizaram um ato por memória e justiça a Jacinta, com o apoio de entidades como a Marcha das Mulheres Negras, as Mães de Maio e o Movimento Negro Unificado. No dia seguinte, enquanto a Congregação se reunia, os estudantes realizaram um novo ato para acompanhar a votação do lado de fora da reunião.

Foto: Arquivo do Centro Acadêmico XI de Agosto

Pouco se conhece sobre a história de Jacinta Maria de Santana. O que se sabe é que, em 1900, ela passou mal na rua, próximo à Estação da Luz, e faleceu no caminho da Santa Casa de São Paulo. Seu corpo, então, foi entregue ao professor Amâncio de Carvalho, que na época testava técnicas para embalsamar cadáveres que seriam utilizados em suas aulas de Medicina Legal. Pelas três décadas seguintes, o corpo embalsamado de Jacinta foi repetidamente exposto no espaço público e em sala de aula, vilipendiado e submetido a humilhações durante trotes promovidos por estudantes.

Esses fatos foram recuperados pela pesquisa da historiadora Suzane Jardim, mestranda em Ciências Sociais na Universidade Federal do ABC (UFABC), e publicados em uma reportagem do site Ponte Jornalismo em 2021. Após a publicação da reportagem, a FD criou uma comissão para apurar o caso narrado por Suzane. O debate, contudo, só avançou a partir do segundo semestre de 2022, quando estudantes que participam do movimento negro passaram a cobrar ativamente um posicionamento da faculdade.

A retirada da homenagem a Amâncio de Carvalho foi aprovada quase por unanimidade, com apenas uma abstenção. Segundo o diretor da FD, o professor Celso Campilongo, a Congregação deliberou pela remoção da placa e do quadro que celebravam o antigo catedrático. Esses materiais foram removidos da sala onde estavam e serão encaminhados para o museu da faculdade. No local onde antes se encontravam, será colocada uma nova placa, contando o que aconteceu na sala, quem foi o catedrático e por que a instituição decidiu retirar a homenagem.

Estudantes negros fizeram campanha por direito à memória

Apesar de o assunto circular pela FD há quase dois anos, a campanha por memória e justiça a Jacinta só começou realmente quando os coletivos negros da faculdade assumiram o protagonismo do debate. Iniciado ainda em 2021, o processo na Congregação teve pareceres de vários professores e quatro pedidos de vistas antes de chegar à votação. Por isso, os estudantes que se engajaram na campanha temiam que o caso fosse abafado e as violências contra Jacinta, novamente esquecidas.

Para evitar um novo apagamento, esses estudantes fizeram rodas de conversa e intervenções visuais, como cartazes e lambe-lambes, e procuraram mapear os votos da Congregação. Segundo Valentina Garcia de Victor, estudante do terceiro ano de Direito e integrante da Coletiva Angela Davis, inicialmente essas ações angariaram pouco apoio do corpo discente. Ela afirma que a campanha, inclusive, encontrou certa resistência dos alunos brancos.

“Eu ia aos eventos, falava sobre isso, todo mundo achava um absurdo [haver uma sala homenageando o catedrático]. Mas ninguém se posicionava muito”, conta Valentina, que também colabora com a Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), na seção São Paulo. Veio, então, a ideia de rodar um abaixo-assinado fora da FD, para demonstrar que muitas pessoas se opunham à manutenção da homenagem.

“Querendo ou não, a Sanfran é majoritariamente branca, então a gente sabia que isso não ia pegar tão forte nos estudantes. E, aí, a gente vem em contato com o movimento negro, vem em contato com a Marcha das Mulheres Negras. Falei com a comissão (da OAB). Falamos com muitos outros movimentos. A Unegro (União de Negros pela Igualdade) foi presente no último ato que teve, as Mães de Maio foram presentes, a Amparar (Associação de amigos e familiares de presos/as)… Então, o movimento negro de base se colocou presente”, diz Valentina.

Histórico eugenista foi decisivo para retirada de homenagem

"Foi enterrada a múmia da Faculdade". Fac-símile do Diário Nacional (1929) - Fonte: Biblioteca Nacional

Celso Campilongo conta que as atitudes de Amâncio de Carvalho foram amplamente condenadas pela Congregação. Contudo, o ponto mais polêmico da reunião foi a discussão sobre a responsabilidade jurídica do catedrático pelos maus tratos ao corpo de Jacinta, uma vez que a documentação histórica aponta que os trotes teriam sido obra dos estudantes da época, sem a anuência do professor.

Um fator que pesou decisivamente na deliberação foi o fato de Carvalho ter sido presidente honorário da Sociedade Eugênica de São Paulo. O movimento eugênico foi uma corrente ideológica que se baseou em premissas racistas e pseudocientíficas para defender políticas de branqueamento da população brasileira. Como a posição do catedrático no movimento eugênico indica que ele foi partidário de uma ideologia que desumanizava pessoas negras, isso por si só foi considerado motivo suficiente para retirar a homenagem da faculdade.

O diretor da FD avalia que a questão ganhou repercussão devido às mudanças recentes na sociedade brasileira e no próprio perfil dos estudantes. “Ano passado formei aqui a primeira turma de cotas étnico-raciais. Eram 35 alunos negros que se formaram; nunca nós tivemos tantos alunos negros se formando. Há dois anos, nós tivemos pela primeira vez uma presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, uma mulher negra. A diretoria atual do Centro Acadêmico XI de Agosto é presidida por uma aluna negra. O líder mais atuante na representação discente é um aluno negro. Os estudantes negros são muito mobilizados, muito articulados. Não tenho dúvida de que isso teve um grande peso nessa discussão”, reflete Campilongo.


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