Turquia e Síria: amor, pesquisa e devoção

Por Francirosy Campos Barbosa, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP

 16/02/2023 - Publicado há 1 ano
Francirosy Campos Barbosa – Foto: Arquivo pessoal

 

O trabalho de campo é sempre uma mistura de aprendizado, amor e, no meu caso, com o passar dos anos, de devoção. Sempre que me perguntam quando me reverti, me vem à mente os dias que passei na Turquia em 2012. Era algo que já sentia, mas não tinha a dimensão exata do que era, apenas conseguia identificar que ouvir o Azan (chamado para oração) me dava uma emoção imensa de encher os olhos de lágrimas; sentia que estar entre eles ouvindo os ensinamentos religiosos e as histórias de vida era mais que estar diante dos sujeitos da pesquisa e ser afetada, era um elo que não sabia explicar… foi acontecendo simplesmente, racionalmente, 15 anos após o início da minha pesquisa com comunidades muçulmanas no Brasil. A resposta que tinha dado a um Sheikh em 2004 tinha finalmente um sentido: essa pesquisa está sendo boa para você como pessoa ou apenas para pesquisadora?, questionou ele. Naquele momento respondi que não se separa a pesquisadora da pessoa.

Estamos a quase um mês do Ramadan, que deve começar em 23 de março, e é nesse mês que sou transportada para Turquia, para usar uma categoria do dramaturgo/antropólogo Richard Schechner (transportado/transformado). Para lá retorno em pensamento, para lembrar das orações na madrugada, das orações durante o dia, das quebras de jejum, dos sorrisos, do acolhimento dos irmãos turcos. Tem pessoas que enxergam as belezas construídas pelos homens em Istambul, Konia; eu sempre admiro a beleza que estão nos homens e nas mulheres turcos(as) a servir o chá para que a conversa prossiga.

Essas idas à Turquia resultaram em vários cadernos de campo e fotografias, mas que foram roubadas em Ribeirão Preto, quando chegava em casa. Isso em 2016, logo depois que voltei de viagem, uma pessoa com arma em punho saltava da moto e levava minha mochila, com as coisas que eram mais importantes a um(a) antropólogo(a) – seus/meus cadernos de campo, suas/minhas anotações, até um minidicionário de palavras em turco que eu tinha feito para facilitar do português-inglês-turco, que uma jovem turca passou um tempo construindo comigo em 2012.

Na madrugada da segunda-feira, dia 6 de fevereiro, antes de abrir a primeira matéria sobre o terremoto na Turquia, liguei para Luís Henrique, um dos pesquisadores do GRACIAS que reside em Konia, uma das cidade mais linda que conheci, a cidade onde está enterrado Rumi (místico sufi tão conhecido no ocidente). Luis é muçulmano, e o considero um dos meus filhos por esse mundo; depois que ouvi seu relato, pude ler as matérias e, a cada reportagem, a dimensão da dor se ampliava. Meu olhar era de espanto, tristeza, e repetia SubhanAllah (Deus seja louvado) a cada parte que lia, quando me deparei com a situação da Síria devastada por 12 anos de guerra, entendi que a dimensão da tragédia humana era muito maior do que podíamos calcular. Li que os abalos sísmicos tinham chegado em outras regiões, países, e assim, ao saber desses lugares, fui enviando mensagens para os amigos que estavam nessas regiões.

Infelizmente, por causa da guerra na Síria, a ajuda humanitária demorou a conseguir chegar no país devido as questões de embargo com EUA . O que lastimo tão profundamente, porque o sonho de conhecer a Síria, as cidades de Aleppo e Damasco é algo muito presente na minha vida como pesquisadora, mas cada vez mais distante. Mas lá estiveram outros amigos que escreveram muito sobre o país, como Paulo Hilu e Gisele Fonseca Chagas, antropólogos e docentes da UFF (Universidade Federal Fluminense).

Vivemos em um mundo que algumas guerras não importam, algumas pessoas não importam. A dor seletiva de alguns chega a assustar. Seria normal que, quando acontecesse algo que diz respeito às pessoas que conhecemos, trabalhamos e com as quais produzimos conhecimentos, nos solidarizássemos, mas talvez a quantidade de tragédias tenha deixado as pessoas insensíveis a dor do(s) outro(s), ou a dor de quem está próximo aos seus interlocutores de pesquisa.

O GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes, que coordeno há 12 anos, tem ligação direta com os turcos, seja porque tem tese produzida como a de Flávia Pasqualin , que também esteve na Turquia algumas vezes, assim como trabalhos de outras pesquisadoras que participaram do GRACIAS: Luana Baumman, Isabel Munõz Forero que passaram 15 dias na Turquia para conhecer a história de Said Nursi e apresentaram seus trabalhos. E hoje tem Luis Henrique Souza da Silva, historiador, que reside em Konia, e é um dos pesquisadores do nosso novo projeto de pesquisa “Islam & as Coisas”. Outro pesquisador é Átila Kus, doutorando em Ciências da Religião na PUC, nascido na Turquia e com vasto conhecimento sobre a cultura daquele país. O que está acontecendo com a população turca e síria em especial tem afetado a todos nós que estamos atentos ao universo cultural-religioso desses grupos.

O profeta Muhammad dizia: “De fato os assuntos de um crente são surpreendentes! Todos são para seu benefício. Se lhe for concedida facilidade é agradecido e é bom para ele. E se for afligido com dificuldade e persevera, é bom para ele”. Isso para dizer que os muçulmanos têm formas diferentes e “estranhas” muitas vezes para quem não conhece a religião e não conhece a forma como lidam com o sofrimento. Dizem Alhamadulillah (Graças a Deus) para qualquer situação. Foi assim que observei uma senhora que, para sair de debaixo dos destroços, pediu um lenço (hijab). Sim, ela poderia sair sem ele, mas está tão acostumada a usá-lo que não permitiu que sua imagem fosse vista assim por homens que ela não conhecia. O lenço é uma devoção a Deus, mas diante do sofrimento ela não esquece isso. Do mesmo modo uma menina, com menos de dez anos, que, mesmo sentindo dor, falava que não tinha rezado, que havia perdido suas orações. A devoção é algo sério para muitos muçulmanos, não é algo que esteja fora do seu dia a dia, a salat (oração) é como comer, dormir, beber, algo essencial para vida, na verdade, para o crente, a salat é mais importante que tudo.

Nos últimos dias venho conversando com muitas pessoas e percebendo a tristeza de alguns. Nesses momentos sempre digo a eles vamos recitar a surata Al Fatiha para acalmar os corações e para aqueles que partiram.

1. Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.
2. Louvado seja Deus, Senhor do Universo,
3. Clemente, o Misericordioso,
4. Soberano do Dia do Juízo.
5. Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda!
6. Guia-nos à senda reta,
7. À senda dos que agraciaste, não à dos abominados, nem à dos extraviados.

No Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, há muitas passagens de orientações aos crentes:

Certamente que vos poremos à prova mediante o temor, a fome, a perda dos bens, das vidas e dos frutos. Mas tu (ó Mensageiro), anuncia (a bem-aventurança) aos perseverantes. (Alcorão 2:155).

Se Deus vos secundar, ninguém poderá vencer-vos; por outra, se Ele vos esquecer, quem, em vez d’Ele, vos ajudará? Que os crentes se encomendem a Deus! (Alcorão 3:160).

Muitos vão encontrar no Alcorão respostas para suas dores, mas é importante ressaltar que as marcas deixadas por essa tragédia na vida de turcos e sírios requer muito mais cuidado, atendimento psicológico, psico-social, reinserção na sociedade, medidas de ordem pública: casa, comida, roupas, atendimento médico. Ainda estão resgatando vidas, mas após sete dias sabemos que é quase impossível encontrar sobreviventes.

Por fim, é importante dizer que não foi o terremoto que matou essas pessoas e sim a falta de estrutura para evitar um desastre nessa proporção (até o momento mais de 40 mil mortos). O descaso de políticos que não se preocuparam com o cumprimento da lei da construção no país resultou nesse montante de mortos e desabrigados. Os governantes turcos nada aprenderam com o terremoto de 1999 na cidade de Izmit, que a partir desse ano elaborou regulamentos de segurança rígido, no entanto, nada foi considerado na região mais propensa abalos sísmicos. Após o incidente, o governo vem prendendo diretores de construtoras/empreiteiras, mas isso, deveria ter sido parte da fiscalização muito antes do problema ocorrido.

Na Síria, após 12 anos de guerra, o sentimento é de completo abandono à população atingida, não só pelo terremoto, mas muito antes, pois se trata de uma região com muitos refugiados, pessoas já empobrecidas pelos anos longos da guerra e por não receberem do governo a assistência necessária. Não adianta culpar a temperatura, a neve, pelas mortes, mas sim, a falta de assistência dos governos/governantes. A tragédia poderia ter sido amenizada se existissem pessoas com comprometimento para se fazer o certo na assistência humanitária e cuidado com a população. O embargo americano foi um grande entrave para chegada da ajuda humanitária, mas há muito mais a ser discutido quando se trata de Síria, por isso, recomendo ouvir os especialistas em Síria citados neste texto.

Mas diante do descaso dos homens que tôm poder, nos resta os últimos versículos da surata 99: 7-8, que por “coincidência” se chama O terremoto:

[…] Quem tiver feito o bem, quer seja do peso de um átomo, vê-lo-á, Quem tiver feito o mal, quer seja do peso de um átomo, vê-lo-á.

Um pai turco que perdeu os filhos diz: eles não são minha propriedade, Allah deu eles para mim, e Allah resolveu levá-los agora, e eu sou grato a Allah por todo tempo que viveram comigo. Compreender e respeitar o lugar da religião na vida dessas pessoas é ser empático. Há necessidade de acolhimento de suas falas e de suas dores, sabendo sempre que o refúgio para eles será sempre a devoção a Deus.

(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.