Às portas da Biblioteca de Babel

Por Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio e Rogério de Almeida, professores da Faculdade de Educação da USP

 09/02/2023 - Publicado há 1 ano
Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio – Foto: Arquivo pessoal

 

Rogério de Almeida – Foto: Victória Tambara
Falar é incorrer em tautologias.
J. L. Borges
  La Biblioteca de Babel” é um conto escrito por Jorge Luis Borges que descreve uma biblioteca infinita que contém todos os livros possíveis e imagináveis. A narrativa é uma metáfora para a busca humana por conhecimento e sentido na vida, e reflexiona sobre a natureza da realidade, a relatividade do conhecimento e a impossibilidade de alcançar a verdade absoluta. É uma obra rica em simbolismo e significado, que inspira reflexões filosóficas sobre a existência humana.

O trecho acima não foi escrito por nós, mas pelo GPT3 ou ChatGPT (https://chat.openai.com/chat) a partir de um comando simples solicitando uma síntese deste conto de Borges. Indistinguível de um texto humano, as linhas produzidas pela inteligência artificial nos indicam que o sentido de um texto, assim como do próprio mundo, é resultado de uma combinação entre outras tantas possíveis. E qual o impacto disso para a produção de conhecimento na academia, principalmente na área das ciências humanas, que tem o texto como elemento central de sua atividade?

“O Universo (que outros chamam Biblioteca)”: Borges já nos ensinara que os dois termos são homólogos, ambos indicando o infinito ou, ao menos, o indeterminado. Aquilo que podemos dizer das galerias hexagonais da biblioteca, que se sucedem a perder de vista, obedecendo à ordem de conter sempre 20 prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, com 32 livros de formato idêntico, dizemos também do mundo, conjunto inapreensível, afinal, embora constituído de elementos conhecidos ou mesmo triviais, que se alternam e repetem. A simplicidade dos itens não nos causa impressão; ela é familiar e cotidiana. O vertiginoso está em olharmos subitamente para o mundo (ou para a biblioteca) e encarar, na tentativa de compreender a ordem que une o simples ao complexo, a monstruosidade da combinação de elementos e símbolos, coisas e signos.

Combinação: no conto, são 25 os sinais ortográficos utilizados em todos os livros de todas as prateleiras e galerias. Também não são muitos ou, ao menos, não são inumeráveis os elementos deste nosso mundo, que também obedece a certa arte combinatória. O resultado da conjunção ultrapassa o humanamente pensável: nos resta apenas, diríamos, a visão de algumas galerias próximas, de algumas prateleiras e de alguns livros (que são obrigatoriamente lidos um por vez: não é possível ler, seja no conto, seja no mundo, mais que um livro em cada instante). Aparentemente, o Universo, que alguns chamam de Biblioteca, se estende sem limites.

A arte combinatória dos sinais ortográficos permitiu a criação de livros e de livros sobre livros (ou de livros sobre as coisas, que são sinais de outro tipo), mas essa criação sempre foi definida pela relativa escassez dos livros ou dos signos que nos cercavam. No mundo acadêmico, existem ainda os que lembram da espera ansiosa por um volume mandado trazer do estrangeiro, da alegria de ter em mãos, finalmente, a cópia de um artigo obtido a muito custo, ou do encanto febril de se entrar, finalmente, em uma sonhada biblioteca.

A World Wide Web e a internet ampliaram o alcance de nosso olhar e, logo, víamos bem mais longe do que antes: bibliotecas distantes, geográfica ou temporalmente, de repente estavam ao alcance dos dedos. É certo que, então, os livros com que lidávamos não tinham mais lombada (ou eram, todos eles, a prefiguração anunciada do grande livro circular de lombada contínua dos místicos, do qual nos lembra o conto), mas seus signos, e a arte combinatória que os regia eram assemelhados: líamos na tela a novidade que outros seres humanos haviam escrito, partindo dos livros e textos que leram, e que eram mais ou menos distantes de nós e dos livros que nos cercavam. E da leitura desses novos livros e textos – expressões novas de uma gramática compartilhada e profunda – novos livros nasciam.

O computador nos ajudou na tarefa combinatória: ele era capaz de encontrar, em um instante, o que teria exigido horas de trabalho aborrecido, e provocou o final abrupto e definitivo de certo tipo de exercício acadêmico, o que esquadrinhava, por exemplo, quantas vezes tal palavra aparecia em tal obra, ou que cotejava textos em busca de padrões, que agora surgiam quase que imediatamente. A máquina facilitou nosso trânsito entre as prateleiras da biblioteca, e a leitura que fazíamos ganhou em velocidade e precisão.

Agora, porém, a máquina resolveu responder diretamente às perguntas, não se contentando mais em trazer, selecionados, os excertos de que precisávamos. Afinal, a separação entre a atividade de seleção (que corta e separa) e a de combinação (que une e articula) não parece especialmente difícil de se ultrapassar: o procedimento que busca, identifica e destaca (feito pelo computador, mas que nós sempre fizemos, embora em velocidade muito menor) tem em si mesmo, embutida, a pergunta que buscamos responder pelo resultado da compilação: nossas investigações foram sempre demandas à arte de combinar palavras e signos e, dada qualquer combinação, podemos obter, seguindo em ordem inversa, uma pergunta (talvez não a única) que lhe deu origem.

A recente comoção causada pela mais nova versão do chamado Generative Pre-Training Transformer, ou Transformador generativo pré-treinado (GPT3), modelo de linguagem que cria respostas e textos praticamente indistinguíveis daqueles que um ser humano criaria, demonstra o quanto nos espanta que uma máquina seja capaz não somente de responder a uma pergunta, combinando sinais de certa forma, mas que a combinação não seja determinada, ou ao menos prevista por nós.

De fato, a IA já nos é bem conhecida: lidamos com ela ao ligarmos para marcar algum exame médico, ou fazer uma solicitação de serviço, e uma voz, aparentemente humana, agradece nossa ligação, diz o quanto ela é importante e avisa que já tem em mãos (mãos?) nosso cadastro etc. Ou então, continuando com os telefones, faz tempo que a IA nos sugere palavras para completar nossas mensagens de texto, moldando-se ao nosso vocabulário e estilo. O que nos surpreendeu, no entanto, foi a estranha sugestão de que, por detrás, ou dentro da máquina, existe uma vontade, livre das leis da necessidade.

Porque o comando “busque o termo X” é bem diferente do comando “disserte sobre X”, do mesmo modo que selecionar textos em uma biblioteca é diferente de escrever novos livros para suas galerias e estantes. A criação de combinações originais ou inesperadas exige uma recursividade não linear que, ingenuamente, muitos pensaram ser privilégio humano. A partir de agora teremos de admitir, definitivamente, que o processo estocástico que permite aos humanos criar poemas e teorias não pertence somente a nós. E, com isso, não afirmamos que a máquina seja livre: nós é que somos determinados pelas mesmas possibilidades e limites da arte combinatória que ela vem aprendendo a usar.

Talvez ainda seja cedo para dimensionar com precisão os impactos que essa tecnologia trará para o futuro, pois os usos que dela serão feitos ainda são incertos. Perguntamos ao GPT3 sobre isso e ele nos respondeu: “O ChatGPT e outros modelos de linguagem de grande escala treinados por inteligência artificial têm o potencial de impactar significativamente a produção de conhecimento no futuro. Eles podem ser usados para responder rapidamente a perguntas complexas, traduzir idiomas, gerar conteúdo de forma automatizada e ajudar na solução de problemas em muitas outras áreas. No entanto, é importante notar que esses modelos só são tão precisos quanto o treinamento de dados que recebem, e ainda há uma necessidade crítica de supervisão humana e ética na utilização dessas tecnologias”.

O que nos parece evidente é que vai ficando cada vez mais difícil distinguir o humano da máquina (neste artigo, isto só foi possível por conta das aspas). Não porque sejam polos em disputa, mas porque estão associados no propósito de gerar novas combinações possíveis entre os elementos do universo (que outros chamam de biblioteca).

Ao final do conto, o narrador afirma que, sim, a biblioteca é infinita, mas periódica: sendo limitados os sinais da linguagem e o número de suas combinações, em algum momento voltarão a aparecer, em outras estantes, livros que já haviam sido escritos. As mesmas respostas, em tempos e lugares diferentes, equivalem a respostas novas: nesse processo, o modelo de causa e efeito perde espaço para a lógica da recursividade, pois cada vez mais seremos influenciados pela inteligência artificial, que por sua vez continuará aprendendo com a nossa inteligência, a tal ponto que uma e outra serão, na prática, indiscerníveis. Assim como a calculadora e o computador nos superaram na habilidade de calcular, a inteligência artificial nos superará na capacidade de produzir textos e, portanto, conhecimento. Nossa grande tarefa será a de mantê-la dependente da vontade humana, bem como de sua capacidade inventiva, disruptiva, contestatória e (até agora) imprevisível.

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