A situação de insegurança alimentar nas famílias brasileiras e as diferenças no consumo de alimentos

Por Alexsandro Macedo Silva, pós-doutorando da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP*

 01/02/2023 - Publicado há 1 ano

Alexsandro Macedo Silva – Foto: Arquivo pessoal

 

A alimentação é um direito humano fundamental, logo, a fome não é um fenômeno aceitável e tampouco natural ou inevitável. Uma forma de avaliar se este direito está assegurado é estudar a segurança alimentar. Conforme a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação), em uma definição estabelecida na Conferência Mundial da Alimentação (CMA) de Roma em 1996, a segurança alimentar ocorre quando todas as pessoas têm acesso físico, social e econômico permanente a alimentos seguros, nutritivos e em quantidade suficiente para satisfazer suas necessidades nutricionais e preferências alimentares, tendo assim uma vida ativa e saudável. Esse estado é alterado quando ocorre algum problema relacionado à disponibilidade, ao acesso, ao consumo ou à produção de alimentos. No Brasil, comumente usa-se a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), uma escala psicométrica que avalia a percepção e experiência com a fome, e permite a classificação dos domicílios em quatro categorias: segurança alimentar, insegurança alimentar leve, moderada ou grave. A última classificação (grave) refere-se à redução de consumo de alimentos entre as crianças bem como nos demais membros da família, indicando que a fome é vivenciada no domicílio.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), realizou o levantamento da segurança alimentar e do consumo individual em amostra representativa da população brasileira, durante os anos 2017 e 2018. Utilizando estes dados foi realizado o trabalho, no âmbito do Grupo de Trabalho Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome, para responder à pergunta “que diferença existe no perfil de consumo de grupos de alimentos pela população em segurança alimentar e insegurança alimentar grave?”.

As famílias em segurança alimentar apresentam um padrão alimentar mais diversificado que aquelas em insegurança alimentar. O grupo carne tem baixo consumo pelas famílias em insegurança alimentar, sendo os embutidos e carne de frango as principais fontes de proteínas de origem animal. Os grupos de cereais, predominantemente compostos de arroz e de leguminosas, representado especialmente pelo feijão, foram mais frequentes nas famílias em insegurança alimentar grave. Depois desses dois grupos, o grupo de raízes e tubérculos, sendo a mandioca o principal alimento desse grupo, foi o mais consumido. Os resultados do trabalho mostram que o padrão de consumo evidenciado nas famílias com insegurança alimentar é menos diverso, constituído por alimentos ricos em amiláceos e pobres em fibras e com menor participação de alimentos importantes para a saúde, como as frutas, verduras e legumes, ao mesmo tempo que embutidos, mais baratos e marcadores de alimentação não saudável, são mais frequentes. A renda familiar parece ser um fator importante nesse contexto, em função do alto custo dos alimentos nutritivos, bem como da dificuldade em seu acesso. Uma alimentação saudável deve ser diversa, baseada em alimentos in natura, com pouca ou nenhuma participação de alimentos ultraprocessados.

O estudo do consumo de alimentos sob a ótica da segurança alimentar desnuda padrões que se vinculam com o que se convencionou chamar de Sindemia Global da obesidade, desnutrição e das mudanças climáticas, que apresenta uma visão sistêmica sobre a alimentação e seus impactos na saúde e no ambiente. Ou seja, diferentes problemas atuam concomitantemente, gerando um quadro de deterioração da condição social, ambiental e econômica da população. Por exemplo, a atual cadeia de alimentos sofre uma forte influência do sistema industrial global, controlado por um número pequeno de empresas, que estimula a padronização da produção e do consumo de alimentos, provocando malefícios à saúde humana e ao ambiente. Isso pode ocorrer por meio de oferta de alimentos baratos e de baixa qualidade nutricional à população. Tal situação melhorará quando se vença a estagnação política em minimizar a influência das grandes incorporações do setor alimentício por meio de políticas públicas, redistribuição de riqueza e combate à corrupção nos governos federal, estadual e municipal. O combate à insegurança alimentar e à fome é uma tarefa complexa por envolver diversas áreas do conhecimento e diversos setores da sociedade, contudo, não é impossível.

Recente relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) relata que o mundo está retrocedendo em seus esforços para acabar com a fome, a insegurança alimentar e a desnutrição em todas as suas formas. A menos de oito anos de 2030, a distância para alcançar a meta do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2 (ODS 2), a “fome zero”, está aumentando a cada ano. No Brasil, a perversa combinação da pandemia e o desmonte de políticas públicas de apoio social fez a situação de fome retroceder à década de 1990.

É necessário apoiar políticas públicas que atendam à emergência que ora defrontamos, com 33 milhões de famintos, mas também ter políticas públicas que ajam nas causas estruturantes deste flagelo, fomentando mudanças socioambientais, em nível coletivo, para favorecer as escolhas saudáveis, passando necessariamente pela construção de uma sociedade menos desigual, mais justa e solidária, na qual todas as pessoas tenham a garantia de acesso à alimentação, que respeitem e valorizem as práticas alimentares culturalmente aceitas, com custo acessível e que sejam promotoras de saúde.


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