China e Nancy Pelosi

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 22/08/2022 - Publicado há 2 anos

Não se deve cutucar a onça com a vara curta.

Os ditados sinalizam um perigo à vista. Epidemia mundial, guerra na Ucrânia e fome: o mundo está vivendo uma conjuntura difícil.

A diplomacia, na maior parte das vezes, possui informações muito além daquelas conhecidas pelo comum dos mortais. O fato não nos impede de olhar de fora do furacão e perguntar: por que, agora, Nancy Pelosi optou por criar mais uma frente de conflito?

Afinal nem sempre os mais fortes, ricos e grandes, territorialmente, têm razão.

Muitas vezes os pequenos fazem coisas incríveis, tanto no âmbito das bondades como maldades. A condição de fraco exige o uso de muitas faculdades, da razão, da emoção e especialmente da prudência na medida certa. Os frágeis, com consciência de sua fragilidade, são estimulados a encontrar soluções pouco convencionais para os desafios. As vezes acertam na estratégia política. Vou exemplificar com a história de Macau (China).

Sou historiadora do período colonial. Minha maior curiosidade, ao longo de anos de pesquisa, foi compreender por que, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, os conquistadores e religiosos conseguiram expandir os ideais e a cultura do Ocidente, na América espanhola, e não conseguiram, igualmente, expandir seus ideais e cultura no Oriente, na China e no Japão.

Para responder à questão consegui uma bolsa de pesquisa. Em 1995, fui para Macau, China, onde vivi durante um ano tentando compreender, um pouco, tanto os chineses como os portugueses.

Chegando à cidade logo descobri ser a língua portuguesa quase “um código de guerra” em Macau. Depois de 441 anos, poucos falavam português na cidade. Quando se ultrapassava as fronteiras, dos bairros onde vivia a elite macaense, a língua era apenas o chinês. Na ilha de Taipa, ao lado da cidade de Macau, onde eu morava, só língua chinesa. O inglês não era falado ou falado de forma quase incompreensível. A comunicação era em chinês ou na base da mímica. As experiências, do tipo dificuldades, foram significativas. Tive sede, perdida na rua. Tentei pedir água. Longe da área de turismo, as dificuldades foram significativas. Com sede e com muita mímica consegui obter, gentilmente, água quente. Sem outra alternativa, bebi.

Em Macau contei com o apoio de dois portugueses. O primeiro deles era fluente em chinês. Uma das pessoas mais incríveis que conheci ao longo da vida. Era poeta e dirigia uma empresa de seguros em Macau. Jovem, tinha sobrevivido à guerra de Angola e, após a independência do país, manteve contatos de amizade com os angolanos revolucionários. Acompanhei suas façanhas pela África com mais entusiasmo do que assistindo a seriados de TV.

Sem o apoio do poeta Alberto Estima de Oliveira (1934-2008), teria sido impossível penetrar no universo chinês profundo. Em sua companhia eu podia ir a qualquer lugar e não poucas vezes presenciei chineses, com receita médica na mão, perguntando: “Tomo?”. Alberto Estima era tradutor civilizacional, explicador do cotidiano miúdo, amoroso, econômico e político dos chineses. Ele me alertou, entre outras descobertas maravilhosas, para a impossibilidade de tradução exata de palavras genéricas como “humanidade”, “cidadania” e “eu”. Mostrou os perigos da tradução quando se discutia direitos humanos, a cidadania e perspectivas humanistas em geral. Dizia ele ser necessário lembrar, cotidianamente, o fato de não se estar vivendo de acordo com as tradições ocidentais, greco-romana e cristãs, bem como suas transcendências. Lá descobri serem as minhas raízes mais profundas, o trigo, o milho e a transcendência.

Também contei com o apoio do brilhante historiador português António Manuel Hespanha (1945-2019), professor em Macau na Faculdade de Direito. Naquela época, ele se dedicava aos estudos sobre legislação mista e sobre Portugal no Antigo Regime. Suas análises permitiam aproximar a organização política e jurídica da monarquia portuguesa com os problemas da modernidade. Sua competência e brilho colocavam em questão propostas anteriores da historiografia, especialmente a brasileira. A leitura dos trabalhos de Hespanha reconfigurou minha cabeça de historiadora para sempre.

Para além dos dois mestres, também enfrentei o “viver em colônia”. Em 1995 Macau era considerada, pelos chineses, território chinês sob administração portuguesa e, pelos portugueses, uma região teoricamente e administrativamente submetida a Portugal. A minha segunda descoberta em Macau (depois da experiência da sede) foi a existência de duas histórias sobre a região, a história portuguesa e a história chinesa.

A história portuguesa era fácil de compreender: tratava-se de uma cidade integrada ao sistema colonial português. Na chinesa tratava-se, apenas, de uma cidade administrada por portugueses. Uma cidade regida pelo direito à moda portuguesa, mas em solo chinês.

“Vivendo em colônia” compreendi a arte da política tecida ao longo de séculos, por Portugal, para sobreviver ao lado dos chineses naquela península, por séculos. Ouvi os chineses dizerem que se Portugal criasse problemas a solução seria simples: bastava fechar a água do outro lado das Portas do Cerco. Fui conferir o equilíbrio de poder político português no “Leal Senado”, que correspondia às Câmaras Municipais portuguesas.

Conclusão: quem mandava, de fato, eram os chineses. Mas, ao mesmo tempo, os negócios econômicos com o Ocidente cresciam dia a dia e o Banco Nacional Ultramarino (BNC) garantia a moeda, a pataca macaense, e parte das transações financeiras.

O professor Hespanha explicou nos seus admiráveis livros como o imenso império ultramarino português conseguiu se manter íntegro por tanto tempo. Um desafio gigantesco para Portugal. O problema é complexo e não cabe aqui explicar. Mas “o pulo do gato português” foi a flexibilidade do poder, um direito capaz de responder, se amoldar, às circunstâncias.

Para ilustrar conto uma pequena história.

Em 1573 surge em Macau uma muralha para separar o lugar onde os chineses autorizaram aos portugueses viverem. Separando uns dos outros, tinha uma porta que se abria uma vez por semana. Abria pela manhã e fechava à noite. O ato era presidido por um mandarim que colocava e retirava da parede seis papéis selados. Sobre a porta estava escrito:  “TEMEI A NOSSA GRANDEZA E RESPEITAI A NOSSA VIRTUDE”.

Os portugueses, habitantes de um pequeno território, leram a frase e foram prudentes, de diferentes maneiras, durante séculos. Os chineses mantiveram os contratos com Portugal, até 1999. Evidentemente foram inúmeros os conflitos ao longo de séculos. Mas, observe-se, sobreviveu a presença portuguesa em Macau.

Os chineses sempre tiveram uma maneira peculiar de compreender os desafios nacionais e internacionais. Sem pressa, avaliando matematicamente recursos bélicos, número de homens em armas e comércio. É difícil superá-los nas contas. Sabem muito bem quando devem enfrentar o inimigo e quando não devem. Sua concepção do tempo, na política, é planetária, diferentemente dos ocidentais, com uma concepção de tempo humanizada. Para se ter uma ideia das diferenças nas concepções políticas de uns e outros, basta lembrar de um evento esclarecedor ocorrido na década de 70 do século passado.

Em 1974, Mário Soares, perante a Assembleia das Nações Unidas, comprometeu-se a iniciar negociações em direção à autodeterminação dos povos. Consta que em seguida ao seu pronunciamento, Mário Soares recebeu um convite do embaixador da China junto à ONU para uma conversa. Tratava-se apenas de relembrar para os portugueses o fato de a China ter-se oposto, junto à Comissão de Descolonização, que Macau fosse considerado território a ser descolonizado. Descolonização não era um tema para os chineses. O território de Macau já era chinês (de acordo com os chineses) e a guerra colonial só tinha gerado perdas, matematicamente falando ao modo dos chineses.

A China, ao contrário do que se poderia pensar no Ocidente, preferiu avaliar, à sua maneira, como deveria administrar a passagem, a entrega administrativa de Macau para a China. Menos ideologia e mais realismo era o lema. A China tinha clareza da necessidade de separar as suas políticas dos ideais ocidentais da descolonização. Ela sabia o custo improdutivo das guerras coloniais. Nesta época os dirigentes chineses estavam obtendo muitos sucessos com as zonas econômicas especiais. E do ponto de vista político, segundo a sua lógica, a soberania, vinculada ao território, já existia.

Era possível visualizar, naquela época (1995) a importância histórica para a China da unificação de Hong Kong (1997), Macau (1999) e Taiwan. Tratava-se de conformar uma Grande China, sustentada por uma bem ordenada economia de mercado mundial, vinculando-a à centralização política, considerada indispensável num país, na época, com mais de bilhão de pessoas (1.211.210.000).

Escrevi um artigo publicado na revista Tempo Brasileiro, em 1996, recém-chegada da China, e coloquei no final do texto algumas perguntas que me inquietavam:

  1. Qual será a capacidade de negociação do Ocidente com o Oriente?
  2. Qual será o novo papel da China? Mercador com armas nucleares?
  3. Qual o papel da América do Sul? Negociador sem armas nucleares?
  4. E quem serão os árbitros que vão reger a economia globalizada?

Fui reler meus escritos para procurar entender o que representa a viagem de Nancy Pelosi para o equilíbrio mundial, hoje. Naquela época os analistas internacionais se voltavam para as fronteiras sangrentas do mundo muçulmano (Samuel P. Huntington) e deixavam a China de lado na problemática. Alberto Estima de Oliveira e eu, nas nossas longas conversas, tomando sopas de fitas em Macau, ainda sob administração portuguesa, dizíamos um para o outro: somos sobreviventes. Ele, Alberto Estima, da guerra colonial, e eu, da ditadura. E partilhávamos da dúvida: sobreviveremos ao capitalismo sem culpa (cristã) da China? É melhor estar vivo ou morto? Estima respondia: “Vamos escrever poesia. Vivi em Benguela (Angola), Guiné-Bissau, regressei a Portugal. Conheci a guerra, dirigi a Companhia de Seguros de Macau. Conheço o capitalismo e a guerra.”

Alberto Estima de Oliveira tinha raízes na África, na China e em Portugal. Era um homem de várias pátrias. Seu projeto poético e de vida era um projeto humano, como escreveu Tereza Sena, na Revista Macau. Estima viveu 20 anos em Macau. Faleceu em Lisboa em 1º de maio de 2008.

Aprendi muito com ele sobre a China e os chineses. Os poetas, assim como os diplomatas, sabem das coisas. Aprendi sobre fogos de artifício, sobre o fogo e sobre a guerra.

A frase dita pelos chineses, sobre a visita de Nancy Pelosi a Taiwan, merece ser lida com a mesma atenção daquela outra frase escrita em 1573, e respeitada, na justa medida, pelos portugueses:

Em 1573: “Temei a nossa grandeza e respeitai a nossa virtude”.

Em 2022: “Quem brinca com fogo acaba se queimando”.


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