De redes sociais à sexualidade, estudantes do ensino médio desenvolvem projetos de pesquisa

Alunos de escolas de São Paulo, Santos e Sorocaba fizeram pré-iniciação científica com orientação de pesquisadores da USP, Unifesp e UFSCar

 09/02/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 14/02/2022 as 15:20
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Os estudantes desenvolveram pesquisas em diversas áreas do conhecimento. Para os participantes, a pré-iniciação científica ensinou-os a pensar criticamente sobre o mundo em que vivem – Foto: Unsplash

 

Um projeto desenvolvido pela USP, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) promove a cultura científica e tecnológica em alunos do ensino fundamental e médio a partir do desenvolvimento de pesquisas em diversas áreas do conhecimento, sob orientação dos docentes das universidades. Assim resume, ao Jornal da USP, a professora Vera Paiva, professora do Instituto de Psicologia (IP) da USP, que coordena o Projeto Temático Vulnerabilidades de jovens às IST/HIV e à violência entre parceiros: avaliação de intervenções psicossociais baseadas nos direitos humanos, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Entre os estudos desenvolvidos por um grupo do ensino médio, uma pesquisa se destacou ao levantar um debate sobre a venda on-line de packs por mulheres, forma de pornografia que se popularizou na pandemia, inclusive entre menores de idade.

A iniciativa surgiu como uma forma de adaptar o projeto aos moldes de ensino a distância, devido à pandemia da covid-19. Sem as aulas presenciais, para que pudessem manter as atividades nas nove escolas de São Paulo, Santos e Sorocaba, os estudantes interessados tiveram a oportunidade de integrar os grupos de pesquisa e receber bolsas de pré-iniciação científica.

Professora Vera Paiva – Foto: Arquivo pessoal

Os professores da USP envolvidos no projeto se dividiram entre as cidades para orientar os grupos de pesquisadores-juniores, que ultrapassaram 60 estudantes em 2021. Os participantes foram apresentados às temáticas do projeto, estudaram a ética e a metodologia de pesquisas científicas e realizaram estudos sobre os assuntos que consideraram de maior relevância — além da oportunidade de participar e apoiar outros procedimentos da pesquisa, como questionários, entrevistas e grupos focais. 

Como o contato com as turmas começou antes da pandemia, as pesquisas puderam evoluir junto do projeto temático, com as novas mudanças causadas pelo coronavírus, o que permitiu a realização de estudos de caso aprofundados, afirma Jan Billand, pesquisador do IP e supervisor do projeto. “Os estudantes puderam compreender os princípios da pesquisa científica, a ética envolvida, em particular no contexto em que se encontravam, marcado por importantes movimentos políticos anticiência, representados pelo atual governo federal mas também presentes em suas famílias e escolas”, completa.

Grupo de pesquisa sobre saúde dos jovens e direitos humanos – Foto: Arquivo pessoal


Segundo Billand, estudantes também ressaltaram que aprender a fazer pesquisa científica os ajudou a identificar
fake news, ao aprenderem a filtrar informações, procurar e avaliar a existência e qualidade das fontes e do método utilizado para chegar a uma conclusão. De acordo com esses estudantes, a pré-iniciação científica ensinou-os a pensar criticamente sobre o mundo em que vivem.

Entre os trabalhos, em São Paulo, estudantes investigaram a divulgação de fake news e as práticas de prevenção da covid-19. Em Santos, realizaram oficinas de prevenção baseadas na produção de memes. Em Sorocaba, produziram vídeos curtos destinados a divulgar resultados preliminares de pesquisa sobre educação sexual, racismo e identidades de gênero não binárias.

Pandemia e o mercado de packs

Em Sorocaba, um grupo de estudantes da equipe coordenada por Marcos Garcia, da UFSCar, se interessou por pesquisar as relações afetivas e sexuais na pandemia. O tema foi abordado por meio da leitura de textos relacionados e com palestras de pesquisadoras.

O tema do estudo desenvolvido por esse grupo surgiu pela percepção de uma das alunas sobre a “venda de packs” — tema até então desconhecido pelos professores por não navegarem no Twitter, plataforma digital onde esse tipo de conteúdo sexual se popularizou durante a pandemia. Os packs são álbuns de fotos ou vídeos eróticos ou pornográficos, produzidos e comercializados on-line geralmente pelos próprios modelos. “Para construir as categorias de análise, juntamos um corpus preliminar de entrevistas já publicadas na imprensa com camgirls e outras pessoas vendendo conteúdos em plataformas digitais e discutimos essas leituras com a turma, junto com a leitura de um artigo científico sobre a forma como o trabalho sexual articula-se com a vida cotidiana e afetiva de trabalhadoras sexuais em um contexto mais tradicional”, detalha o orientador. 

Em seguida, as estudantes do ensino médio desse grupo realizaram uma coleta de postagens em redes sociais, com o objetivo de analisarem relatos de experiência das “sw” (sex workers, como se autodenominam) e as opiniões sobre essa prática de quem não está no mercado. O estudo Mulheres que produzem e vendem seus próprios conteúdos sexuais na internet: relatos e debates em mídias on-line acessíveis para adolescentes e jovens foi apresentado no  29º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP (SIICUSP) e se tornou matéria no Fantástico, da Rede Globo, em 9 de janeiro. A pesquisa é inovadora, segundo o pesquisador, pois não há trabalhos publicados sobre o assunto.

“Foi interessante observar que muitas reações recebidas nas redes sociais se davam na forma de apoio, com base na ideia de que as pessoas (principalmente jovens mulheres) vendendo packs seriam pessoas com dificuldades financeiras e/ou precisando de apoio em um empreendimento comercial digno de ser apoiado, misturando-se com a ideia de reconhecer e valorizar a beleza e a diversidade dos corpos femininos e apoiar a ‘autoestima’ das mulheres envolvidas”, afirma Billand. 

Pesquisador Jan Billand – Foto: Arquivo pessoal

Alguns relatos coletados pelas pesquisadoras-juniores evocam situações de precariedade agravada pela pandemia, estigma, assédios, repressão e vazamentos de imagens; outros desses relatos enfatizam ganhos financeiros e benefícios para a autoestima. As estudantes relacionaram essas aparentes desigualdades com a hierarquização do valor dos corpos pelo olhar dos clientes, baseada em padrões de beleza racistas, gordofóbicos e transfóbicos — outra questão abordada nos relatos. As estudantes também observaram a presença de “sw” menores de idade, embora sejam sistematicamente denunciadas pelas outras praticantes.

Na visão do orientador, a missão da escola é formar cidadãos capacitados para lidar com a sociedade em que vivem; portanto, ela deve sim tratar desta temática, no âmbito de uma abordagem de letramento, como alguns programas o fazem em outros países em relação à pornografia tradicional. É necessário criar espaços onde adolescentes possam refletir sem julgamento sobre esses temas, receber informações de qualidade, necessárias para que possam realizar escolhas mais conscientes, e encontrar apoio quando precisarem, e esse seria um papel idealmente exercido no âmbito escolar,  afirma.  

Mais informações: e-mail jsj.billand@gmail.com, com Jan Billand


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