Saudação ao professor Francisco Weffort

Por José Álvaro Moisés, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e colunista da Rádio USP

 02/08/2021 - Publicado há 3 anos

Francisco Corrêa Weffort – Foto: Serviço de Comunicação Social/FFLCH-USP

José Álvaro Moisés - Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Compartilho aqui a saudação que fiz, alguns anos atrás, por ocasião da cerimônia de outorga do título de Professor Emérito, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ao meu amigo Francisco Corrêa Weffort, que nos deixou neste dia 1º de agosto.

Nesta breve saudação que me cabe fazer ao professor Francisco Corrêa Weffort, eu gostaria de enfatizar sobretudo a atualidade de alguns dos aspectos para os quais ele chamou a atenção no debate da questão da democracia nos seus livros Por Que Democracia? e Qual Democracia?. Eu penso que Weffort antecipou em vários anos o debate contemporâneo da ciência política que trabalha com a abordagem da Qualidade da Democracia – hoje um tema central, por exemplo, nos congressos da Associação Internacional de Ciência Política.

1. Ao fazer a comparação entre a natureza e a dinâmica das novas e velhas democracias, Weffort sugeriu que “a ideia de uma tipologia da democracia deveria ser óbvia para nós”. Ele fazia referência, assim, ao panorama que nos mostra a existência de muitas e diferentes experiências democráticas que resultaram das ondas de democratização iniciadas, em todo o mundo, nos anos 70 do século passado. “Em muitos casos”, escreveu ele, “as novas democracias teriam que ser entendidas não só como não consolidadas, mas também como não democráticas”. Tratou, assim, evidentemente, da grande pluralidade de experiências democráticas hoje existentes e que, do ponto de vista do conhecimento, precisa ser devidamente diagnosticada.

Weffort nos fala de uma tipologia da democracia, mas sem recorrer a qualquer definição maximalista, e antes tendo por referência uma definição básica, relativamente consensual na ciência política contemporânea que, segundo ele, envolve: “O império da lei, ao qual se subordinam – ou devem se subordinar – governados e governantes, a liberdade de se organizar para competir de modo pacífico pelo poder, a liberdade de participação do conjunto dos cidadãos, através do voto, nos momentos de constituição do poder, ou seja, os atributos mínimos e essenciais da democracia de qualquer tempo ou de qualquer lugar em que exista ou tenha existido”.

2. Ao propor essa tipologia da democracia, Weffort chama a atenção para três dimensões essenciais que se derivam, na sua concepção, daqueles atributos mínimos:
• as instituições, que no caso de alguns processos recentes de democratização resultaram na formação de regimes mistos;
• as lideranças democráticas, com seu papel fundamental para a construção do novo regime;
• e as condições sociais da democracia.

3. Menciono isso hoje porque eu gostaria de chamar a atenção, especialmente, para dois aspectos dessa elaboração feita pelo nosso homenageado, os quais me parecem extremamente oportunos na nossa conjuntura política atual, ou seja, no momento que estamos vivendo.

No primeiro caso, Weffort nos convida a refletir sobre as implicações do fato de que historicamente os processos de democratização envolveram, em muitos casos, um alto grau de conflito, e até mesmo de violência, para dar lugar à emergência do novo regime político. Ele faz isso para afirmar, junto com Robert Dahl e com Adam Przeworski, entre outros, que a democracia é sempre fruto de uma escolha, na qual os adversários que competem pelo poder consideram que a coexistência pacífica é uma alternativa menos custosa do que a destruição recíproca.

Assim, e agora com Weber e com Engels, Weffort retoma a ideia fundamental segundo a qual a violência que está na origem do Estado moderno tem de ser suprimida para dar lugar ao reconhecimento da legitimidade dos conflitos, ou, por outras palavras, a violência privada, qualquer que seja a sua origem ou forma de expressão – diferente do monopólio legítimo que dela tem o Estado -, tem de ser controlada e efetivamente suprimida se o Estado aspira a ser considerado legítimo pela comunidade política. A premissa aqui é clara: o Estado de Direito é indispensável porque sem ele existe sempre o risco de a sociedade civil se dividir em campos antagônicos com consequências imprevisíveis e terríveis, a mais grave das quais, depois da própria ameaça à sobrevivência dos indivíduos, é o risco da supressão da liberdade.

Eu penso que não é irrelevante retomarmos essa reflexão no momento em que alguns desenvolvimentos recentes do nosso quadro político provocaram o surgimento de tendências de grupos ou segmentos que – no desejo legítimo de participar mais ativamente da vida política – estão, no entanto, apelando para formas de ação direta que, por vezes, têm recusado o diálogo e a negociação, antes adotando a ação que envolve a violência. Oxalá sejam essas expressões meramente episódicas e momentâneas, mas não custa refletir melhor sobre as suas implicações e a contribuição de Weffort para isso é inestimável.

No segundo caso, penso que Weffort nos convida a refletir sobre a importância e o desempenho das lideranças políticas para a construção dos regimes democráticos. Para ele, os líderes democráticos – bem como as instituições correlatas, como partidos, escolas, jornais, sindicados, igrejas, etc. – são absolutamente fundamentais para a consolidação de democracias efetivas; são, na verdade, uma condição dessas.

Ele analisa, com base nos casos do Brasil, do Chile, da Espanha e dos países do Leste Europeu, as situações em que, em graus maiores ou menores de consciência e percepção dos desafios de suas sociedades, os líderes políticos influenciaram os processos de democratização e seguem fazendo isso, chamando a atenção, principalmente, para os casos em que esses líderes, mesmo sendo democráticos, não são suficientemente conscientes do papel estratégico que lhes cabe desempenhar na construção do novo regime político; ou, quando fazem parte, de modo equívoco, apenas de um aglomerado difuso de pessoas que atuam basicamente por meio de jogos pessoais ou setoriais, que pouco ou nada têm a ver com o interesse público. A referência do nosso homenageado aqui é à relação entre democracia e república.

Weffort lembra, aliás, que os processos de democratização fizeram surgir tanto líderes derivados da oposição ou da resistência democrática, como líderes democráticos recém-convertidos, ou seja, líderes antes conhecidos como “homens do sistema”, do sistema autoritário, mas que no processo de transição, por força de suas contradições e de suas incertezas, redefiniram as suas identidades e aderiram ao regime que surgiu das mudanças.

Nos dois casos, no entanto, Weffort se pergunta se as mudanças fundamentais que levaram ao surgimento dessas novas lideranças democráticas fizeram mudar o comportamento das elites dirigentes do país e transformaram a cultura política dominante. São dois fatores decisivos para a emergência de um novo regime.

Aqui, a questão fundamental é bem conhecida, e Weffort reapresentou a pergunta fundamental: além de trabalhar em benefício dos seus legítimos interesses pessoais ou de grupos, os líderes das novas democracias – os estadistas que se espera que eles sejam – estão trabalhando também em benefício dos interesses gerais da população e, dessa forma, ajudando a consolidar a democracia como um regime que legitima e institucionaliza os conflitos, e que torna, assim, possível a convivência entre os muitos segmentos diferentes que formam a sociedade civil?

Parte da resposta a essa pergunta, segundo o nosso homenageado, depende do grau de consciência dos líderes dos desafios coletivos enfrentados pela sociedade, mas também fundamentalmente do seu desprendimento e do seu grau de comprometimento com as exigências dos princípios do regime democrático, em especial, os que se referem ao império da lei, à convivência política pacífica e à proeminência dos interesses públicos sobre os privados.

Eu penso que essa reflexão também tem implicações muito importantes para o momento em que vivemos, particularmente, no que se refere aos sinais de crise de liderança política que assola o País e que, malgrado o crescimento do número de partidos políticos, por vezes não oferecem garantias para a sociedade de que os que pretendem liderar estão efetivamente preparados para dirigir o País na direção e na busca da boa vida de que nos falaram os autores clássicos do pensamento político.


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