Pichações, jornalismo e história – fragmentações, protagonismos

Ricardo Alexino Ferreira – ECA

 03/10/2016 - Publicado há 8 anos
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Ricardo Alexino Ferreira é professor da ECA e idealizador e apresentador do programa "Diversidade em Ciência", da Rádio USP - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Ricardo Alexino Ferreira é professor da ECA e idealizador e apresentador do programa Diversidade em Ciência da Rádio USP – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Com as pichações na semana passada do Monumento às Bandeiras e da estátua de Borba Gato, os dois localizados na zona sul da cidade de São Paulo, a imprensa e a população mostraram-se indignadas. Não restam dúvidas que foram atos de vandalismo, mas a principal questão a ser abordada é o que está nas entrelinhas e o que se pode extrair do ocorrido.

Os dois monumentos são homenagens aos bandeirantes. Um deles, o Monumento às Bandeiras, é uma obra de 50 metros de comprimento e 16 metros de altura, criada por Victor Brecheret e inaugurada em 1954, em homenagem aos 400 anos da cidade de São Paulo e localizada em frente ao Parque do Ibirapuera e à Assembleia Legislativa.

No monumento são destacadas figuras humanas, de composições étnicas diversas, empurrando uma canoa. As figuras imponentes e a cavalo são os bandeirantes, os demais, indígenas e negros escravizados. No entanto, alguns especialistas afirmam que Brecheret inseriu várias figuras históricas importantes na obra.

A outra estátua, a de Borba Gato, localizada em Santo Amaro, é obra de Júlio Guerra e foi inaugurada em 1963, em comemoração aos 400 anos de Santo Amaro. É uma homenagem ao bandeirante que liderou expedições rumo a Minas Gerais, em busca de esmeraldas. A obra é um mosaico tridimensional com cerca de 13 metros de altura e 20 toneladas.

Os bandeirantes eram descendentes de portugueses, muitos deles saídos de São Paulo, e entre os séculos 17 e 18 se embrenharam no interior do País caçando escravos, o que provocou significativos genocídios de indígenas e de negros. Também foram os bandeirantes que massacraram, no século 17, o Quilombo dos Palmares, tendo à frente Domingos Jorge Velho.

Por essas razões, as homenagens a eles são motivos de divergências. Muitos os consideram genocidas e não merecem referências heroicas, mas de assassinos sanguinários. Esta, pelo menos, é a percepção de indígenas que, em 2013, jogaram tintas vermelhas no Monumento às Bandeiras e também na Rodovia Bandeirantes, em alusão ao “holocausto” indígena provocado por eles.

Esses aparentes atos de vandalismo podem trazer em sua essência uma crítica às narrativas dominantes que sistematicamente contam a história dos dominantes, principalmente pelo jornalismo e pela história.

A outra estátua, a de Borba Gato, localizada em Santo Amaro, é obra de Júlio Guerra e foi inaugurada em 1963, em comemoração aos 400 anos de Santo Amaro. É uma homenagem ao bandeirante que liderou expedições rumo a Minas Gerais, em busca de esmeraldas. A obra é um mosaico tridimensional com cerca de 13 metros de altura e 20 toneladas.

Assim é possível entender que jornalismo e história têm essências muito próximas, pois envolvem narradores e narrativas. Equivocadamente, acredita-se que as matérias-primas delas sejam a verdade, a objetividade e a imparcialidade.

Ledo engano, pois esses elementos constituem a utopia humana de que as diferentes realidades podem ser narradas das mesmas matérias de que são constituídas e, por isso, seriam as expressões da verdade. Algo impossível e inatingível.

Jornalismo e história criam muito mais ficções do que verdades, mesmo porque a verdade é um substrato que é produzido pelo narrador. Dentro dessa perspectiva, algumas questões devem ser consideradas. Os nazistas, por exemplo, foram tidos como criminosos de guerra pelo hediondo crime que promoveram.

No entanto, o governo norte-americano que, através do Projeto Manhattan, implementou a bomba atômica lançada sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em 1945, matando mais de 240 mil pessoas, não foi considerado criminoso de guerra. Ao contrário, o ato foi considerado imprescindível para o término da Segunda Guerra Mundial.

Portanto, a narrativa vai ser referendada por aquele que possui o controle do discurso, o poder econômico, o protagonismo impositivo e é assim que se pode ter o perigo da história única, bem colocada pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, no TED Ideas worth spreading.

“É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra da tribo Igbo que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é nkali. É um substantivo que livremente se traduz: ‘ser maior do que o outro’. Como nossos mundos econômico e político, histórias também são definidas pelo princípio do nkali. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa, o jeito mais simples é contar sua história, e começar com ‘em segundo lugar’. Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem uma história totalmente diferente.”

(Adichie, Chimamanda, 2009)[1]

Ao revisitar a segunda metade do século 19 é possível encontrar muitas chaves que irão explicar a sociedade brasileira contemporânea e como as relações de poder são persistentes.  Naquele momento, o Brasil vivia o impasse de continuar monárquico ou proclamar a República. No meio do caminho, o sistema escravocrata.

A segunda metade do século XIX constituiu-se em um período de efervescência social, cultural, política e econômica no Brasil. Nesse período, o Brasil aspira a se tornar uma nação com ideais “civilizatórios” e eurocêntricos e vai, através dos jornais, expressar tais sentimentos. Para isso, busca no Positivismo e no Darwinismo Social – os dois grandes paradigmas vigentes na época – as suas grandes pautas e temáticas jornalísticas, expressas nas Seções Scienticas dos jornais.[2]

Jornalismo e história criam muito mais ficções do que verdades, mesmo porque a verdade é um substrato que é produzido pelo narrador. Dentro dessa perspectiva, algumas questões devem ser consideradas. Os nazistas, por exemplo, foram tidos como criminosos de guerra pelo hediondo crime que promoveram.

Os jornais daquela época vão frequentemente narrar a história das elites e desumanizar os escravizados ou até mesmo os recém-libertos nos primeiros momentos republicanos. Na matéria do jornal Correio Paulistano de 19 de julho de 1892, fica evidente esse tipo de abordagem: “O negro só sabia ser sensual, idiota, sem a menor ideia de religião, de outra vida moral e nem sequer de justiça humana. Dançar no domingo, embriagar-se era sua única atividade”.

O princípio é o da objetificação do outro e, nessas narrativas formuladas pela elite, a cultura popular é considerada algo marginal em contraponto à “alta cultura”, considerada como ideais civilizatórios.

Essa história do “Eu” (empoderado pela elite) e o “outro” (que transita no campo popular, do ex-escravizado) vai ser marcada até mesmo pela arquitetura. As edificações dos segmentos da elite eram construídas com materiais mais resistentes e de alta qualidade, vindos muitas vezes da Europa. Prédios que vão conseguir vencer o tempo, ao contrário de edificações populares feitas com materiais mais perecíveis. Com isso, a história da elite vai se perpetuando e tornando-se a história dos vencedores.

Porém, é na criminalização dos movimentos sociais que se tem a abordagem mais marcante do processo de dominação e das narrativas impositivas das elites através dos jornais e dos documentos históricos.

É importante observar que os movimentos sociais são considerados nas narrativas como revoltas, rebeliões ou inconfidências. No Brasil colonial, houve muitos movimentos sociais. Os principais são os sistemas quilombolas, o maior foi o Quilombo dos Palmares, que fez frente à Coroa portuguesa, criando um governo paralelo a Portugal.

Pode-se também resgatar a “Revolta” dos Beckman (1684, no século 17). Os irmãos Beckman lideraram manifestações para que houvesse melhorias na administração colonial. Portugal reprimiu exemplarmente o movimento.

A “Revolta” de Filipe dos Santos (1720), líder do movimento que protestava contra a cobrança do quinto e a instalação das Casas de Fundição, em Vila Rica. Filipe dos Santos foi condenado à morte pela Coroa portuguesa. A “Inconfidência” Mineira (1789), que tinha como propósito ser um movimento separatista. O movimento teve como desfecho a morte e esquartejamento do líder Tiradentes.

A “Conjuração” Baiana ou “Conspiração” dos Alfaiates (1798), ocorrida na Bahia por homens mulatos, que propunham acabar com a escravidão e a separação do Brasil de Portugal. A “Revolta” do Vintém (1889) contra o aumento das passagens de bonde no Rio de Janeiro.

Essa história do “Eu” (empoderado pela elite) e o “outro” (que transita no campo popular, do ex-escravizado) vai ser marcada até mesmo pela arquitetura. As edificações dos segmentos da elite eram construídas com materiais mais resistentes e de alta qualidade, vindos muitas vezes da Europa. Prédios que vão conseguir vencer o tempo, ao contrário de edificações populares feitas com materiais mais perecíveis. Com isso, a história da elite vai se perpetuando e tornando-se a história dos vencedores.

A “Revolta” da Chibata (1910), movimento liderado por João Cândido Felisberto, envolvendo os homens da Marinha do Brasil, que se rebelaram contra os castigos físicos (chibatadas) e as péssimas condições de trabalho e alimentação. Muitos outros movimentos sociais históricos, tratados como revoltas, conjurações ou outros tipos de ações criminosas, poderiam ilustrar este argumento.

A criminalização de qualquer forma de manifestação contra o status quo tem sido legitimada, inúmeras vezes, pela imprensa e pela história. Na contemporaneidade, a imprensa, ao abordar greves ou quaisquer outras manifestações, parte do princípio de que a priori as suas naturezas são de transtornos à população.

Assim, por exemplo, em uma greve de motoristas de ônibus as manchetes serão: “Milhões a pé por causa da greve de motoristas de ônibus”. Pouquíssimas manchetes dirão: “Motoristas fazem greve por melhores salários”. É como se os narradores tentassem proteger as estruturas econômico-sociais e os seus detentores.

No campo da ciência, é possível perceber que o eurocentrismo é colocado como paradigma hegemônico. Ao analisar as referências bibliográficas dos cursos da USP, em todas as áreas do conhecimento, se percebe a prevalência de autores europeus e norte-americanos sobre um número ínfimo de autores dos continentes africano e asiático e até mesmo de autores latino-americanos de língua espanhola.

Mesmo o conhecimento milenar dos indígenas amazônidas não é considerado. O mais interessante é que no processo de biopirataria, o conhecimento desses povos é estudado; as matérias-primas tais como ervas e outras substâncias utilizadas para tratamento de picadas por animais peçonhentos e doenças são levadas para laboratórios europeus e norte-americanos e extraídos os seus princípios ativos, transformados em medicamentos e vendidos ao Brasil por preços altíssimos; os indígenas, detentores do conhecimento, sequer podem usufruir do produto final.

Outro exemplo é o do conhecimento intelectual produzido por povos originários da África. Para 2017, a Fuvest incluiu pela primeira vez entre os livros obrigatórios um de origem africana. Assim, para o próximo exame, os vestibulandos terão contato de forma inédita com o romance Mayombe, do escritor Pepetela, que é o pseudônimo do angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em 29 de outubro de 1941, na cidade de Benguela, no litoral de Angola.

Pouco se sabe hoje ou se dá importância à produção intelectual de africanos. Em 2012, com financiamento da Fapesp e da USP, iniciei uma longa pesquisa sobre o resgate da intelectualidade africana, iniciando pelos países de língua portuguesa, como Cabo Verde.

Mesmo no Brasil, a Caixa Econômica Federal, em comemoração aos seus 150 anos, em 2011, colocou como personagem o escritor Machado de Assis. Porém, o ator que interpretava o papel era branco. Com as manifestações contrárias do movimento negro, a Caixa gravou outro comercial com um ator negro interpretando o escritor. Isso demonstra que, no imaginário brasileiro, a história ainda está marcada por personagens brancos ou o embranquecimento dos grandes nomes não-brancos.

Filmei e entrevistei 34 intelectuais naquele país e, na sequência, resgatei os conhecimentos de intelectuais em São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique.

A história única, eurocêntrica e por extensão branca ainda é a que tem narrado os acontecimentos e colocado pontos de vista direcionados. Até mesmo os mitos dessas narrativas são iguais aos seus narradores, não importando de onde esses mitos foram extraídos. Jesus Cristo é um deles. Sempre ressignificado com o fenótipo europeu, assim como os outros arquétipos que orbitam nessas narrativas.

Mesmo no Brasil, a Caixa Econômica Federal, em comemoração aos seus 150 anos, em 2011, colocou como personagem o escritor Machado de Assis. Porém, o ator que interpretava o papel era branco. Com as manifestações contrárias do movimento negro, a Caixa gravou outro comercial com um ator negro interpretando o escritor. Isso demonstra que, no imaginário brasileiro, a história ainda está marcada por personagens brancos ou o embranquecimento dos grandes nomes não-brancos.

Os novos narradores

Na contemporaneidade, para reversão dessa história única ou da ênfase no eurocentrismo, torna-se necessário que jornalistas com visões mais contemporâneas e educadores possam resgatar novos protagonistas históricos.

Esse tipo de resgate tem acontecido, principalmente, em documentários e filmes. O cineasta Eduardo Coutinho, morto em 2014, foi um deles. Com mais de 20 produções, resgatou em muitas das suas obras a história de pessoas comuns em enredos bastante interessantes.

Um documentário, de 2002, conta a história de moradores do edifício Master, um prédio de 12 andares, 276 apartamentos conjugados e em média 500 moradores no prédio inteiro, localizado em Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro.

Durante 110 minutos, Coutinho conta a história de 37 moradores. O seu trabalho é a antítese do jornalismo e da história tradicionais, demonstrando que o protagonismo pode também vir de outros personagens que não somente aqueles detentores dos modos de produção.

[1] Adichie, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. TED Ideas worth spreading https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt-br. 2009.

[2] Ferreira, Ricardo Alexino.  A gênese do jornalismo científico nos jornais da segunda metade do

século XIX.   http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontros-nacionais/6o-encontro-2008-1/A%20genese%20do%20jornalismo%20cientifico%20nos%20jornais%20da%20segunda%20metade%20do.pdf


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