Escola Novinsky: o legado de Anita

Por Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 26/07/2021 - Publicado há 3 anos
Em 2001, Anita Novinski reencontra a primeira geração de orientandos. Da esquerda para a direita: Norma Marinovic Doro, Yara Nogueira Monteiro, Maurício e Anita Novinsky, Maria Luiza Tucci Carneiro, Benair Ribeiro e Rachel Mizrahi – Foto: Reprodução
Maria Luiza Tucci Carneiro – Foto: Cecília Bastos/USP Imagem

No último dia 20 de julho, perdemos Anita Waingort Novinsky, Z’L., cuja cerimônia de sepultamento ocorreu no Cemitério Israelita do Butantã. Foi-se Anita, mas seu legado permanece extrapolando as fronteiras da academia, para o além-mar, além-céu e além-terra. As ideias herdadas de Anita Novinsky não se esgotam nas páginas de seus livros nem na sua folha de serviços prestados à Universidade de São Paulo desde que Lourival Gomes Machado, no fim dos anos de 1940, a incentivou a ingressar na carreira acadêmica de docente e pesquisadora. A partir deste momento, a então jovem Anita destacou-se por seu perfil de mulher lutadora, sedutora por sua coragem, sabedoria e cultura.

Anita Novinsky nasceu em Stachow, Polônia, em 22 de novembro de 1922 e emigrou com a família para o Brasil quando tinha apenas um ano de idade. Após graduar-se em Filosofia pela USP em 1956, frequentou dois anos em Psicologia. Doutorou-se em História Social em 1970 e fez uma outra especialização na França em 1983, com o professor Robert Mandrou, secretário de Lucian Fèbvre e da revista Annales, que estava dando um curso sobre História das Mentalidades na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Após participar de seminários, foi convidada por ele para fazer a Tese de Estado naquela instituição sob a sua direção. Mandrou, impressionado com os relatos de Novinsky sobre os prisioneiros e da Inquisição, e extasiado com a riqueza das informações e das fontes documentais até então desconhecidas, solicitou uma bolsa no CNRS (Centre National de La Recherce Scientifique) para que ela preparasse a Tese de Estado.

Creio que este foi um dos momentos mais importantes na formação da jovem Anita, que aproveitou sua estadia em Paris para assistir aos cursos oferecidos por Foucault, Lacan, Kristevá, Roland Barthes e outros. Ao participar dos seminários do professor Leon Poliakov na EHESS sobre racismo, foi nomeada chercheur confirmée do seu curso. Entusiasmada e dominando esta nova historiografia, Novinsky introduziu estes autores em sua disciplina de pós-graduação junto ao Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Atualmente vejo estes autores espelhados em nossas teses, dissertações e publicações mais recentes.

Retornou várias vezes a Paris, a convite de Katia Matoso e Adeline Daumart, vindo a proferir conferências na Sorbonne. Como filósofa e historiadora identificada com a Escola dos Annales, Novinsky projetou-se como uma pesquisadora plena, em todos os sentidos, reveladora de verdades históricas que mudaram os caminhos da historiografia luso-brasileira. Irreverente e metódica, adentrou o mundo secreto dos marranos, revelando através de suas pesquisas vários outros mundos, alguns bastante amargos para a história do povo judeu e do judaísmo em terras ibéricas e brasileiras. Expôs, sem maquiagem, a ideologia genocida do Tribunal do Santo Ofício, que, aliado aos interesses do império absolutista de Portugal e Espanha, assassinou milhares de cristãos-novos na fogueira e nos cárceres inquisitoriais.

As novas facetas do marranismo e do racismo

A cada descoberta nos arquivos da Torre do Tombo de Portugal, Novinsky revelava novas facetas do marranismo, fenômeno social e político, ora sob o viés da intolerância, ora dos direitos humanos. Sob este prisma criou um modelo teórico multidisciplinar cujos parâmetros possibilitam a reavaliação do papel de algumas instituições seculares, como a Igreja Católica e o Estado absolutista, que em nome da fé, da purificação da sociedade cristã e da segurança nacional, promoveram o ódio e a violência sem limites. Seus conhecimentos nos ensinaram, durante as aulas de graduação, pós-graduação e encontros acadêmicos, a pensar a barbárie como um dos “mecanismos que fazem dos homens monstros”. Barbárie esta analisada em seus textos como produto de uma mentalidade racista que, sem limites, deixou rastros de morte e destruição de centenas de comunidades judaicas espalhadas pelo mundo.

Do mundo moderno ao contemporâneo, as teorias sustentadas por Anita Novinsky – em suas dimensões históricas, políticas, econômicas, religiosas e culturais – permitem adentrarmos aos regimes absolutistas e totalitários que destituíram os direitos dos homens e das mulheres como um todo. Ao mesmo tempo, em particular, denunciou as mazelas dos inquisidores e dos nazistas que, à luz do mito da pureza de sangue, planejaram e executaram – em diferentes momentos da história – planos genocidas que culminaram com a morte de milhões de judeus. Suas pesquisas, assim como todas as teses e dissertações que orientou junto ao Programa de História Social da FFLCH, desmitificaram a aparência contraditória das ações desinteressadas dos inquisidores que, nas suas entranhas, carregavam a semente da barbárie que iria desembocar no Holocausto.

Seus inventários dos bens confiscados aos cristãos-novos radicados no Brasil Colonial comprovam que os inquisidores e os reis católicos, acobertados pelo slogan “em nome da fé católica e da segurança nacional”, rechearam seus cofres, da mesma forma que os nacional-socialistas durante a Era Nazista apropriaram-se das propriedades, objetos de arte e outros tantos bens culturais dos judeus alemães, ganância estendida para os territórios ocupados.

A tarefa de educadora

Assim, através de suas aulas, Anita Novinsky nos instigou a pensar novas formas de investir contra as malignidades do mundo e as injustiças que colocam em risco a democracia e os direitos humanos. Repetia sempre, ao se referir aos horrores e à violência sem limites praticados pela Inquisição e pelo nazismo: “Vocês, meus alunos, não têm o direito de não querer saber”. Têm que adentrar ao desconforto produzido pela leitura de certos documentos, para dar aos seus escritos uma dimensão válida de cientificidade, mas sem deixar de lado a emoção que os torna “seres mais humanos”. Desta forma, nossa mestra cumpriu com uma das tarefas mais nobres da humanidade: a de educadora. Este é, a meu ver, o seu contributo maior que colocou em questão o sentido da vida articulado à educação. Demonstrou que através da produção de saberes e da educação tínhamos possibilidades de contribuir para um mundo melhor.

Recordo-me que, em várias de suas aulas de Brasil Colonial, disciplina que frequentei em 1970, Anita nos introduziu ao mundo dividido dos criptojudeus, homens e mulheres de linhagem hebreia, perseguidos pelo “sangue que lhes corria nas veias”. A partir daqueles momentos, passávamos a conviver com personagens inesquecíveis como Branca Dias, Catarina Gomes da Silva, Antônio José da Silva, Miguel Teles da Costa e outros tantos cristãos-novos e meio-cristãos, gente rotulada de “sem linhagem”, “infectados pelo sangue israelita”, uma espécie de enfermidade a ser extirpada. Suas pesquisas instigaram seus discípulos a analisar centenas de processos inquisitoriais, sermões de autos-de-fé, obras de arte e romances, que deram nomes aos cristãos-novos, até então personagens desconhecidos na história do Brasil colonial. Creio que, a partir deste momento, configurou-se o perfil acadêmico da “Escola Novinsky” que formou importantes historiadores dentre os quais: Lina Gorestein, Luiz Mott, Yara Nogueira Monteiro, Carlos Eduardo Calaça, Fernanda Mayer Lustosa, Suzana Servers, Norma Marinovic Doro, Rachel Mizrahi, Claudeteane Rodrigues, Daniela Levi, Benair Alcaraz Ribeiro, Ronado Vaifas, Lana Lage da Gama Lima, Laura de Mello e Souza, Adalberto Gonçalves Araujo, Luiz Nazário, Bruno Fleiler, Lana Lage, Eneida Beraldi, Miriam Bettina Oelsner, Marcos Guterman, Zilda Gricoli Yokoy, Benair Ribeiro, Renata Rozental Sancovsky, Paulo Valadares e Guilherme Faiguemboim, dentre outros.

Novas frentes de atuação

A partir de 1986, Anita Novinsky abriu novas frentes de divulgação dos estudos sobre cristãos-novos ao organizar o I Congresso Internacional sobre Inquisição, realizado em Lisboa e São Paulo. Na abertura, a exposição iconográfica Teatro da Fé: Iconografia da Inquisição, com curadoria de Boris Kossoy e pesquisa de Tucci Carneiro, sendo as palestras publicadas em 1992 na coletânea Inquisição: Ensaios sobre Mentalidade, Heresia e Arte (Expressão e Cultura), organizada por Novinsky e Tucci Carneiro. Inovou novamente ao introduzir, no Centenário da Abolição, o debate sobre os cristãos-novos, Inquisição e escravidão, superando-se nos eventos comemorativos dos 500 anos da conquista da América quando liderou comissões e grupos de estudos, além de envolver agências de fomento, Itamaraty, Unesco e o empresariado paulista. Parecia que nada conseguia parar Anita Novinsky, que conseguiu publicar nove volumes da coleção América 92: Raízes e Trajetórias (Expressão e Cultura; Edusp).

Em 1997, Novinsky integrou o programa mobilizador Direitos Humanos no Limiar do Século XXI, coordenado por Renato Janine Ribeiro, ao assumir um seminário que discutia as similaridades entre inquisição e o nazismo. Lotou o anfiteatro da Maria Antonia, da USP, ao trazer o americano Daniel Goldhagen, autor do polêmico livro Carrascos voluntários de Hitler.

Inquieta, sempre com novos projetos, Anita presidiu, entre 2002 e 2006, o LEI – Laboratório de Estudos sobre Intolerância, junto ao Departamento de História da FFLCH, reunindo seus discípulos, estudiosos dos processos do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição e colegas de distintas áreas do conhecimento: Rifka Berezin, Diana Vidal, Ilana Novinsky, Andréa Lombardi, Olgária Chaim Mattos, Mario Miranda Filho, Renato da Silva Queiroz. Até 2006 dirigi, ao lado da professora Anita, vários projetos de pesquisa, publicações e eventos, ano que me desliguei do LEI para criar o LEER (Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação). Mesmo assim, nos mantivemos unidas com o objetivo de implementar o projeto de um museu sediado na USP: o Museu da Tolerância.

Museu da Tolerância, um projeto em aberto

Creio que, até os seus últimos dias de vida, Anita Novinsky acreditou na ideia de a USP abrigar um Museu da Tolerância, um órgão mundial vinculado a outros já existentes ou em construção em Los Angeles, Nova York, Jerusalém, Washington etc. Como idealizadora, apresentou o projeto a iminentes autoridades do mundo da cultura e da academia, insistindo sempre que este seria o primeiro no gênero na América Latina. A ideia nasceu da sensibilidade e da conscientização que Anita tinha que a aberrante doutrinação do ódio e a exclusão do “outro” ameaçavam (e ainda ameaçam) a sobrevivência da própria humanidade. Insistia ser imperativo que “se construa uma sociedade que priorize o respeito à dignidade humana e que nos unamos com companheiros de todo o mundo, num ideal comum, de luta pela paz e pelos direitos humanos, na defesa de uma convivência pacífica entre os povos”.

De imediato recebeu o apoio do reitor Adolpho Melphi e a definição do local de implantação, em uma área localizada na Avenida Prof. Lineu Prestes, próxima à Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, na Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, em São Paulo. Em 29 de setembro de 2004, ocorreu junto ao Conselho Universitário da USP o ato oficial da fundação do Museu da Tolerância, uma instituição voltada para a cultura da Paz. Segundo Novinsky, “o conhecimento crítico deverá ser a pedra fundamental que norteará toda a ação educativa voltada para a reversão das práticas de intolerância e violência”. Recordo-me que passamos muitas e muitas horas, até tarde da noite, discutindo sobre o logotipo, a comissão de honra, as sessões permanentes, interativas em linguagem virtual e multimídia.

O museu, na acepção contemporânea de Novinsky, deveria ser “um espaço em que se guarda, estuda, expõe um patrimônio e que debate exemplos de amor e de desamor ao diverso, devendo refletir criticamente as múltiplas formas de preconceito e estimular a convivência”. Deveria ser “um espaço vivo, uma obra aberta que se constrói no próprio ato; uma obra onde pensamentos e ideias são debatidos continuamente; um espaço de aprendizagem, enfim um museu-escola”. Em parceria com o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) São Paulo, com o apoio da B’nai B’rith, realizamos o concurso nacional de projetos, prêmio anunciado em 24 de setembro de 2005, aos vencedores: Juliana Corradini e José Alves, ex-alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, com a proposta de um museu que representasse um “monumento à liberdade e à ousadia”. Creio que este projeto deve ser retomado com um tributo a Anita Novinsky, que, além das suas ideias, deixa uma biblioteca e acervo únicos, fruto da sua ousadia acadêmica e da sua sensibilidade.

O legado de Anita Novinsky

Enfim, com Anita Novinsky aprendemos o significado de ser judeu ou judia de quatro costados, em tempos inquisitoriais ou em tempos de nazismo, e mesmo nos dias atuais. Aprendemos a ler nas linhas e entrelinhas dos processos inquisitoriais dos séculos XVI ao XIX e dos documentos diplomáticos do século XX, os discursos de ódio, os processos de demonizações vinculados aos preconceitos seculares e os mitos políticos. Através da história das mentalidades, adentramos nos fanatismos fóbicos tentando desvendar os interesses econômicos e políticos, os conflitos de classe, os compromissos do Estado com a vida dos cidadãos, e a reciclagem do ódio secular aos judeus e a Israel, maquiado de antissionismo. Foi então que adentramos no mundo do ódio, analisando os sermões inquisitoriais, as procissões e as imagens dos autos-de-fé, enquanto espetáculos de massa que, anos depois, seriam reeditados na Era Nazista.

Como Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, título que lhe foi outorgado em 2015, Anita Waingort Novinsky tornou-se um exemplo de pesquisadora incansável, colega, amiga e mãe acadêmica. No entanto, Anita é muito mais: sua formação e trajetória acadêmica identificam-se com um conjunto de valores tão caros ao ser humano: justiça, ética e direitos humanos. Contestadora da intolerância e do antissemitismo em particular, transformou seus estudos sobre Inquisição, marranismo e racismo em libelos defensores do direito à vida e da liberdade de expressão como direitos fundamentais do homem e da mulher.


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