Brasil perde o pioneiro da sociologia do trabalho

Professores da USP comentam o legado de Leôncio Martins Rodrigues, que morreu nesta segunda-feira, dia 3 de maio

 04/05/2021 - Publicado há 3 anos
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Leôncio Martins Rodrigues foi um profundo conhecedor do mundo do trabalho, que analisou de forma crítica e independente – Fotomontagem sobre reprodução Pixabay, Freepix e Wikipedia

“Leôncio Martins Rodrigues foi um dos principais responsáveis pela criação e consolidação da moderna sociologia industrial e do trabalho no Brasil”, informa o professor José Álvaro Moisés, docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e colunista da Rádio USP (93,7 MHz), num texto publicado no site do Departamento de Ciência Política da FFLCH. “Seu falecimento é uma perda para a academia e para o pensamento crítico, mas sobretudo para os seus amigos, com quem tinha uma relação de grande acolhimento, generosidade e alegria.” Leôncio Martins Rodrigues, que morreu nesta segunda-feira passada, dia 3, aos 87 anos, em São Paulo, foi professor titular do Departamento de Ciência Política da FFLCH e também professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Segundo Moisés, amigo pessoal de Leôncio (como o professor era chamado), ele era uma pessoa que mantinha contato muito próximo com seus alunos de graduação e pós-graduação. “Ele estabelecia uma relação pessoal extremamente acolhedora e muito generosa, muito fraterna”, disse Moisés em entrevista ao Jornal da USP. Além disso, destaca, era muito crítico das ortodoxias de qualquer tipo. “Era uma pessoa muito alegre, que vai fazer muita falta. Era um amigo muito especial.”

O professor José Álvaro Moisés – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Leôncio Martins Rodrigues nasceu em 21 de janeiro de 1934, em São Paulo. Ingressou tardiamente na Universidade, segundo ele mesmo, concluindo em 1962 o bacharelado e a licenciatura em Ciências Sociais na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, instituição em que obteve também os títulos de mestre em Sociologia, em 1964, e de doutor em Sociologia, em 1967. Pesquisou principalmente as relações de trabalho, o comportamento das classes trabalhadoras e o sindicalismo. Nas últimas décadas, estudou os partidos políticos, as eleições e a classe política, mais especificamente as fontes sociais do recrutamento partidário. Mais recentemente, trabalhava em pesquisa sobre o Senado Federal.

É autor de vários livros, dentre os quais Conflito Industrial e Sindicalismo no Brasil, Industrialização e Atitudes Operárias, Trabalhadores, Sindicatos e Industrialização, CUT: os Militantes e a Ideologia, Partidos, Ideologia e Composição Social e Mudanças na Classe Política Brasileira. Foi membro da Academia Brasileira de Ciências e recebeu, entre outras honrarias, o Prêmio Florestan Fernandes, da Sociedade Brasileira de Sociologia, e a Ordem Nacional do Mérito Científico. Também foi sócio-fundador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), integrou o conselho deliberativo do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e participou do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Instituto Fernando Henrique Cardoso e do Instituto Fernando Braudel de Economia Mundial, No exterior, foi professor visitante na Universidade de Louvain, na Bélgica, e diretor de estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris.

“Leôncio foi de uma geração formidável de sociólogos que criou a sociologia profissional no Brasil, em particular a sociologia profissional do trabalho, que é um mérito dele, especialmente.”

O professor Ruy Braga, do Departamento de Sociologia da FFLCH, teve a oportunidade de conviver com Leôncio Martins Rodrigues entre os anos 1990 e 2000. “Eu tive aulas com ele na Unicamp, tanto na graduação quanto no mestrado e no doutorado”, relata Braga. E acrescenta: “A última vez que estive pessoalmente com ele foi em 2015, mas às vezes ligava para ele e conversávamos”, diz, informando ainda que esteve por várias vezes em sua casa, quando ele morava numa travessa da rua Pinheiros, em São Paulo, e o entrevistou para publicações e para seus projetos de pesquisa. Braga destaca algumas questões que são atinentes ao professor: “Leôncio foi de uma geração formidável de sociólogos que criou a sociologia profissional no Brasil, em particular a sociologia profissional do trabalho, que é um mérito dele, especialmente”.

Leôncio sempre esteve ligado às questões próximas ou articuladas ao mundo do trabalho no sentido amplo. Ele foi um sociólogo da industrialização tardia no País e da formação da classe trabalhadora, das transformações do movimento sindical”, informa Braga. Ele ainda destaca que o professor fazia pesquisas tanto na porta da fábrica, entrevistando os trabalhadores em piquetes de greve, como dentro da fábrica, falando com os operários, e cita como exemplo seu famoso trabalho na Ford, realizado no final dos anos 60 como parte do seu doutorado, sob orientação do professor Florestan Fernandes – publicada em 1970 pela Editora Brasiliense com o título Industrialização e Atitudes Operárias.

O professor Ruy Braga – Foto: Twitter

“Leôncio Martins Rodrigues vai ficar muito marcado por esses trabalhos de décadas a respeito da industrialização, do movimento operário e, principalmente, do sindicalismo”, diz Braga. E reitera: “Ele foi uma figura central dessa sociologia profissional do trabalho no País, ou seja, aquela orientada pela pesquisa empírica a partir de uma metodologia, que grosso modo, dialogava com aquilo que se fazia de mais moderno nos centros universitários europeus, em especial, nos Estados Unidos”.

Braga também fala sobre a vivência do professor na USP, segundo ele, muito rica. “O Leôncio, no ensino médio, já conheceu a Dona Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso. Depois segue para militância – ele foi militante do PSR (Partido Socialista Revolucionário), organização de natureza trotskista em São Paulo, na qual Florestan Fernandes também militou um pouco antes. Leôncio também fez a transição do PSR para o POR (Partido Operário Revolucionário). Tinha, por assim dizer, um quadro político ainda muito jovem, antes mesmo de entrar na Universidade e encontrar Fernando Henrique e José Arthur Giannotti e fazer parte daquela geração de filósofos e sociólogos que criou, por exemplo, o grupo de estudos sobre O Capital, de Karl Marx, do qual ele participou”, conta.

Assista no link abaixo à entrevista concedida pelo professor Leôncio Martins Rodrigues, em 30 de outubro de 2008, para o projeto Memória das Ciências Sociais no Brasil, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Além disso, Braga destaca a participação de Leôncio Martins Rodrigues no Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (Cesit), um grupo de estudos organizado no âmbito da cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que funcionava na rua Maria Antonia e era financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “O Cesit foi influenciado pela direção de Florestan Fernandes e de Fernando Henrique Cardoso, e criado para pesquisar o processo de modernização da sociedade brasileira com base na industrialização tardia, dos anos 40 a 60”, comenta. “Houve uma integração do Leôncio em um ambiente excepcionalmente rico da história da Universidade, nos anos 50 e início dos anos 60, e da profissionalização dos estudos sociais. Tanto que é assim que ele ainda hoje é considerado um dos principais sociólogos do País”, destaca. Braga ainda lembra da migração de Leôncio para a área da ciência política: “Eu o conheci como professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp, já com assuntos ligados a partidos políticos. Podemos dizer que Leôncio tem alguns deslocamentos em sua trajetória, mas sempre buscando articular três elementos: a classe trabalhadora, o movimento sindical e os partidos políticos”.

“Perco um dos grandes amigos que tive na vida. O Brasil perde um grande intelectual e um cidadão exemplar.” Essa declaração, extraída do Facebook, é do sociólogo e cientista político brasileiro Bolivar Lamounier, que foi o primeiro diretor-presidente do Idesp.

O sociólogo e professor da USP Glauco Arbix também prestou homenagem no Facebook: “Leôncio Martins Rodrigues se foi. Professor de sociologia da USP e da Unicamp. Pioneiro nos estudos da sociologia industrial. Formou gerações de pesquisadores. Orientou meu doutorado. Ensinou o respeito à visão dos outros. Foi generoso como poucos. E esbanjava um humor que abria horizontes. No meio desta pandemia e de tanta tristeza, não posso deixar de derramar uma lágrima especial. Aos filhos Luciana e ao Daniel, meu abraço”.

“Leôncio tem alguns deslocamentos em sua trajetória, mas sempre buscando articular três elementos: a classe trabalhadora, o movimento sindical e os partidos políticos.”

Nas palavras do superintendente de Comunicação Social da USP, Luiz Roberto Serrano, Leôncio Martins Rodrigues “era uma fonte inescapável de análise para nós, jornalistas, que cobríamos economia e trabalho”.

Numa longa entrevista que concedeu à Revista Brasileira de Ciências Sociais, publicada em 2010, Leôncio Martins Rodrigues lembra que “descobriu” as ciências sociais graças à antropóloga Ruth Cardoso, que havia sido sua professora de História no curso colegial do Colégio Fernão Dias Paes, em São Paulo.

Na entrevista, ele afirma: “Por coincidência, eu a reencontrei como técnica num serviço de pesquisas sobre mão de obra da Secretaria do Trabalho, onde eu era funcionário subalterno. Ela me falou sobre o curso de Ciências Sociais. Era exatamente o que queria estudar”. Mas, como tinha abandonado os estudos, precisou cursar dois anos de curso Normal para só então prestar o vestibular de Ciências Sociais: “Desse modo, acabei ficando cerca de seis anos atrasado com relação à idade de entrada habitual na universidade. Em 1958, quando me matriculei, o curso de Ciências Sociais tinha poucos alunos e poucos professores. Na cadeira de Sociologia I, o professor Florestan Fernandes era o regente”, conta, citando ainda Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco e Maria Alice Mencarini Foracchi.

“Os sindicatos são instituições burocráticas com interesses próprios. O sociólogo do trabalho, para fazer uma pesquisa com alguma objetividade, pode ter que revelar aspectos que as chefias sindicais não gostariam de ver divulgadas.”

Diferente de muitos alunos que se politizam ao entrar na universidade, Leôncio Martins Rodrigues já tinha experiência na militância. “Vinha de cerca de seis anos de militância intensa e dedicação total ao partido. Assim, já tinha lido boa parte da literatura marxista e leninista mais difundida (além dos livros de Trotsky, é claro). Passara a ver o marxismo com críticas. Especialmente com relação a O Capital, cada vez mais julgava sua leitura uma perda de tempo para compreender o mundo moderno. Por que estudar o capitalismo do século 19, e não o capitalismo do século 20, ou o socialismo real? Acontece que tinha começado a ler Raymond Aron, Ralf Dahrendorf, Galbraith, James Burham e outros autores ‘de direita’ que pareciam capazes de abrir outras pistas para explicar melhor as sociedades industriais da segunda metade do século 20”, analisa Rodrigues.

O professor também fala, na mesma entrevista, sobre algumas de suas pesquisas que resultaram em livros, como a antologia Sindicalismo e Sociedade (1968), que tinha como objetivo ”difundir alguns artigos com análises mais sociológicas e menos ideológicas sobre o sindicalismo e a classe operária”, CUT: os Militantes e a Ideologia (1990), que causou repercussão negativa em parte de alguns dirigentes, e Força Sindical: Uma Análise Sócio-Política (1993), “uma das últimas pesquisas empíricas que realizei na área da sociologia do trabalho”, como informa. Há ainda outras pesquisas sobre partidos e a classe política: Quem é Quem na Constituinte (Oesp-Maltese, 1987), Partidos, Ideologia e composição Social (Edusp, 2002) e Mudanças na Classe Política Brasileira (Publifolha, 2006).

Foi quando começou a migrar para a sociologia política que Rodrigues se deparou com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), resultando em um ensaio intitulado O PCB: a Ideologia e os Militantes. 1930-1964, publicado no volume X de História Geral da Civilização Brasileira (1981), dirigido por Boris Fausto. E, como ele mesmo conta, foi a partir da preocupação em focalizar as características sociais dos atores políticos, além da sua atuação e ideologia, que veio a ideia de um levantamento da composição das cúpulas do Partido dos Trabalhadores (PT). “Eu suspeitava que o espaço ocupado pelas classes trabalhadoras no novo partido não era tão grande e que a figura do Lula, a presença de sindicalistas e o nome do partido tendiam a ocultar o espaço majoritário ocupado por segmentos das classes médias assalariadas de escolaridade elevada.”

O professor Leôncio Martins Rodrigues – Foto: Reprodução/Jornal da Gazeta via Youtube

Para Leôncio Martins Rodrigues, há uma diferença entre o intelectual e o sociólogo do trabalho, como ele conta na entrevista: “Ao contrário do intelectual, o sociólogo é, ou deveria ser, um profissional que pretende analisar um objeto, um sindicato, um grupo de trabalhadores, geralmente. Não deveria querer doutrinar os trabalhadores. Portanto, em princípio, teria menos atritos com as chefias dos sindicatos. Mas, mesmo se limitando ao seu trabalho de pesquisa, pode ter atritos com lideranças sindicais. Os sindicatos são instituições burocráticas com interesses próprios. Quase sempre estão divididos em facções. O sociólogo do trabalho, para fazer uma pesquisa com alguma objetividade, pode ter que revelar aspectos que as chefias sindicais não gostariam de ver divulgadas. Assim, mesmo não sendo um militante revolucionário que pretenda influenciar os associados, um pesquisador ‘neutro’ pode se ver também em situações delicadas que o levariam a atritar com as cúpulas sindicais”. Leia a íntegra da entrevista de Leôncio Martins Rodrigues à Revista Brasileira de Ciências Sociais neste link.


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