A arte de Caio Mourão na joalheria brasileira

Por Ivete Cattani, doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEH) da USP, e Edson Leite, professor titular do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP e do PGEH-USP

 31/08/2020 - Publicado há 4 anos
Ivete Cattani – Foto: Javan Ferreira Alves
Caio Mourão, entusiasta das culturas primitivas, traduziu com maestria e simplicidade o conhecimento impregnado nas artes feitas pelos antepassados. Os mitos e mistérios entranhados na joalheria dos ancestrais foram convertidos em adornos do seu tempo, com interpretações únicas e complementares da personalidade de quem os envergava. Reconhecido apreciador do mundo feminino, ele também foi um militante pelo retorno das joias ao universo masculino. Além das espirituosas alianças quadradas, feitas para casais, a arte de Caio Mourão esteve engajada em diferentes setores da sociedade. A participação de suas obras em leilões beneficentes está entre as singulares contribuições de Mourão. O artista doou suas joias tanto “[…] para ajudar a financiar as primeiras saídas da Banda de Ipanema [nos anos de 1960], da qual foi um dos primeiros fundadores” (CASTRO, 1999), como para socorrer o Museu de Arte Moderna do Rio, na década de 1970, ameaçado de fechar as suas portas por falta de dinheiro (ZÓZIMO, 1970, s/p).

Nascido em São Paulo no dia 11 de outubro de 1933, Caio Mourão evidenciou o gosto pelo desenho desde a mais tenra infância. Em 1952, ele participou da pintura do mural criado por Antonio Bandeira para o piso térreo do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), em São Paulo. Por volta de 1953, Caio Mourão iniciou os estudos em desenho e pintura no atelier de Aldo Bonadei, mestre renomado, artista plástico modernista e também pianista.

Em 1955, aos 21 anos, uma pintura de Mourão foi selecionada para exposição na III Bienal de São Paulo. É incontestável a relevância da seleção de um trabalho artístico para figurar em evento de tamanha envergadura. Tal seleção posicionou a obra do jovem iniciante entre os grandes nomes das artes plásticas contemporâneas mundiais. Mesmo assim, ele escolheu se lançar a novos desafios. A pintura deu lugar ao desejo de desvendar os mistérios dos adornos, do uso do fogo e da observação da reação dos metais diante dele. A partir de 1956, munido de conceitos assentados na história universal e amparado em pesquisa técnica minuciosa, o artista passa a colecionar êxitos na joalheria.

No Brasil, até a década de 1960, as joias disponíveis para o consumo da população eram produzidas pela indústria (ANDRADE, 2004) e estavam orientadas para o emprego dos diferentes tipos de gemas encontrados no solo do país. Por outro lado, os artistas joalheiros, brasileiros e estrangeiros residentes, foram promovendo a ruptura com os antigos valores e conceitos, por meio da exposição das joias artesanais junto a outras obras e objetos de arte como esculturas, gravuras e pinturas. Em 1963, a VII Bienal de São Paulo apresentou a primeira exposição de joias artísticas onde foram exibidas 127 peças de doze artistas nacionais e estrangeiros residentes. O colar Gravetos, de Caio Mourão, recebeu o Prêmio Internacional de Joalheria Maria Helena Martini Ribeiro (CAIO…, 1963). Em prata oxidada, fosca e com texturas, as formas simples do colar Gravetos foram elaboradas nesse material considerado menos nobre pela sociedade brasileira à época.

Num arranjo poético e técnico, com características comumente usadas no período medieval, o colar Gravetos desafiou o estilo vigente na joalheria brasileira. Mourão conseguiu transformar em objeto de desejo uma joia construída com aparente simplicidade, sem os brilhos dourados e as cores exuberantes das gemas brasileiras, em voga até então. O impacto causado pelo conjunto de jóias apresentado por Mourão na Bienal de 1963 foi assim descrito pela crítica de arte Aracy Amaral (1965, s/p) “Em nível, de artesanato, composição, domínio do metal, Caio […] É a presença mais alta. E é fora de discussão que o prêmio seria seu não fossem eles tão ‘imponderáveis’.” O primeiro prêmio foi conferido ao colar em ouro e pedras brasileiras, assinado pelo paisagista Roberto Burle Marx.

Na obra de Mourão não existia qualquer tipo de fronteira e as joias feitas pelo artista conquistaram o gosto dos modernos. Assim, em 1967, não causou surpresa a notícia do lançamento dessas preciosidades na França “[…] como detalhe indispensável à coleção de outono-inverno 68, de Pierre Cardin” (CHATAIGNIER, 1967, s/p) ou o subsequente convite para trabalhar na Maison Cardin, onde as peças de Caio comporiam com as roupas criadas pelo estilista.

Os estudos em Portugal, que possui larga tradição de trabalhos em prata, possibilitaram novas experimentações e, a partir das técnicas aprendidas, novas soluções para a joalheria de Mourão foram viabilizadas (HORTMANN, 2004). Caio desejava “[…] criar um tipo de prata brasileira para objetos […] Faqueiros, talheres de vários tipos, cinzeiros, castiçais, enfim os objetos que entre nós não temos. Uma linha bem desenhada, inclusive artesanal” (CAPPER, 1969, p. 77).

A transformação de técnicas construtivas como a fundição por cera perdida em fundição orgânica, ou mesmo a substituição da solda em favor da primitiva solução de fundir os metais, assim como a inclusão de materiais exóticos nas joias, são outros aspectos presentes na arte joalheira de Mourão. No colar Crista-de-galo (celosia argentea), a técnica de fundição por cera perdida, praticada desde 2.500 a.C. (NERY, 2007), é substituída pela técnica de fundição orgânica, desenvolvida pelo artista.

Caio evidenciava o seu apreço pela realização de cada etapa necessária para a feitura de uma joia (AKIER, 1960, s/p):

O prazer de desenhar uma jóia, de idealizá-la, é tão intenso quanto o de executá-la com as próprias mãos. Sentir a forma sair do papel para a realidade compensa plenamente as horas às vezes gastas num detalhe quase insignificante. Tenho impressão de que, se relegasse a outra pessoa a tarefa de dar vida a alguma coisa saída da minha imaginação, viveria insatisfeito.

As técnicas utilizadas para a produção dos primeiros troféus confeccionados por Caio Mourão podem ser associadas àquelas aplicadas na prataria portuguesa. Entre esses troféus está o Monolito Negro, entregue por José Sanz, crítico de cinema e livreiro, a Arthur C. Clarke, autor da obra 2001 – Uma Odisseia no Espaço, durante sua participação no simpósio de ficção científica ocorrida na Maison de France, em 1969, no Rio de Janeiro (ARTHUR, 1969, s/p).

Em 1963, com 30 anos de idade e aguda perspicácia, Caio Mourão ocupou os holofotes da imprensa brasileira e internacional ao projetar uma tiara para a cosmonauta soviética Valentina Tereshkova.

Mourão protagonizou ações voltadas para a preservação da memória da arte popular do Brasil. Entre os anos de 1992 e 2003, Mourão manteve em seu ateliê de Ipanema, dezoito placas de cimento com a assinatura e as marcas das mãos de personalidades brasileiras, decalcadas desde as décadas de 1960 (FERREIRA, 2001). A ideia da criação das placas da Calçada da Fama surgiu em 1969, no Pizzaiolo, histórico restaurante de Ipanema onde podiam ser encontrados os mais respeitados representantes da cena contemporânea nacional. “A maioria daquelas mãos produziu maravilhas que emocionaram milhões, e muitos de seus donos estão mortos” (CASTRO, 1999, p. 300). As mãos de Caio Mourão foram eternizadas no dia 18 de janeiro de 2004.

Intenso e visceral, Mourão foi um artista plural, generoso e aglutinador. No múltiplo legado deixado pelo artista se encontram desenhos, pinturas, esculturas, troféus e textos, alguns deles editados em livros.

Senhor dos metais mais nobres, do ouro e da prata, íntimo das ágatas e turmalinas, Caio Mourão, grande artista brasileiro, cria um mágico universo de colares, brincos, pulseiras e anéis, os quais, ao contato com a pele das mulheres, ganham vida, movimento e alma, são estrelas, flores, pássaros, poesia (AMADO, 1964, s/p).

A despedida de Caio Mourão aconteceu no dia 13 de março de 2005, em Araruama, no Rio de Janeiro. Em sua homenagem, e atendendo a recomendação do artista, familiares e amigos estiveram reunidos na Toca do Vinícius, em Ipanema (ORSINI, 2005, p. 5), para o chope do sétimo dia.

Referências
AKIER, M. Garotas & Joias & Garotas. O Globo, Rio de Janeiro, 28 out. 1960.
AMADO, J. Dedicatória. 1964. In: ATELIER MOURÃO. Caio Mourão. Documentos do acervo de Caio Mourão. Acesso a partir de: 19 jul. 2018.
AMARAL, A. Por falar em joias. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 2 out. 1965.
ANDRADE, A. O Desenvolvimento do Design de Joias no Brasil – Políticas, Instituições, Ações e Resultados. Documento do autor. Rio de Janeiro, 2004.
ATELIER MOURÃO. Caio Mourão. Documentos do acervo de Caio Mourão. Acesso a partir de: 19 jul. 2018.
CAIO Mourão Premiado. O Globo, Rio de Janeiro, 7 out. 1963.
CAPPER, A. Técnica portuguesa na arte moderna brasileira. Revista Crônica Feminina, Lisboa, n. 666, p. 44, 28 ago. 1969.
CASTRO, R. Ela é carioca. Uma enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 452p.
CHATAIGNIER, G. A Cardin o que é de Caio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 ago. 1967.
FERREIRA, A. No ateliê, o designer guarda tesouro. De cimento. Jornal. O Estado de S. Paulo. 30 jul 2001.
HORTMANN, D. Mestre das Joias. Catálogo da jornalista. Belo Horizonte, 2004.
NERY, M. L. A evolução da Indumentária. Subsídios para criação de figurinos. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007. 304p.
ORSINI, E. No princípio era o Caio. O Globo, Rio de Janeiro, 19 mar. 2005.
ZÓZIMO. Gesto bonito. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 25 jul. 1970.


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