O que o serviço de denúncias Disque 100 revela sobre violência contra travestis e transexuais

Família e serviços de saúde/educação/segurança são contextos onde há maior número de ocorrências, mas situações de exploração sexual, como prostituição, dão origem aos ataques mais violentos

 29/01/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 30/01/2020 as 19:31
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O estudo chama a atenção para a negligência e a violência vindas dos agentes dos serviços públicos de educação, de segurança e de saúde. Em uma das denúncias, a pessoa teve a casa roubada e, ao chamar a polícia, os agentes de segurança, além de se negarem a registrar boletim de ocorrência, proferiram agressões verbais à vítima – Arte sobre fotos de Tânia Rego e Tomaz Silva / Agência Brasil e Viajabi!

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Estudo do Instituto de Psicologia (IP) da USP traz um recorte da violência contra travestis e transexuais (homens e mulheres) a partir da análise das violações dos direitos humanos contra essa população relatadas ao serviço de denúncias Disque 100, em 2015. Ao analisar os dados, em sua dissertação de mestrado, o pesquisador Ubirajara de None Caputo constatou que essa violência opera por meio de cinco eixos: a interdição das vidas física, social e política, além de dois outros eixos ligados à reificação (olhar para alguém como “coisa”): quando essa população é vista como um objeto para sexo e quando é vista como um objeto para escárnio.

Leia, ao longo desta página, a transcrição de algumas dessas denúncias

Segundo Caputo, na interdição física, há uma tentativa de eliminar a vida corpórea das pessoas trans ou travestis. Na interdição social, há o impedimento de frequentar lugares, de alugar imóvel ou dificultar a vida delas de alguma outra forma. Na política, ocorre o rebaixamento da cidadania: vai ao posto de saúde e não consegue atendimento; vai à escola e não consegue usar o nome social; vai registar queixa de estupro na delegacia, mas os policiais se negam a atender. Na reificação, o pensamento é: “precisa satisfazer meus desejos sexuais” e “posso zombar”, “posso ridicularizar”.

“Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu o direito de as transexuais irem no cartório e mudar o nome, e aí pede nova documentação. Mas nessa ocasião não [na época da pesquisa, em 2016]. Mas elas já tinham o direito de ter o nome social na carteirinha do SUS [Sistema Único de Saúde], por exemplo, e de serem tratadas pelo nome social. Ou na escola, já tinham o direito de constar, na lista de presença, o nome social. E as escolas se negavam, o SUS se negava”, revela o pesquisador. Caputo é autor da dissertação de mestrado Geni e os direitos humanos: um retrato da violência contra pessoas trans no Brasil do século XXI, apresentada ao Instituto de Psicologia da USP em 2018.

Das 1.233 denúncias contra LGBTs relatadas ao Disque 100, em 2015, foram identificadas 308 tendo como vítimas travestis, mulheres transexuais e homens transexuais. A análise do material mostrou 774 violações (média de 2,5 violações por denúncia).
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Tipos de violências e cenários onde ocorrem

O pesquisador analisou os diferentes cenários onde ocorreram essas violências. No cenário familiar, por exemplo, há casos de violação de direitos desde a infância: em um deles, a pessoa agredida é estuprada desde os 8 anos.

O estudo também chama a atenção para casos de negligência e violência vindas dos agentes dos serviços públicos de educação, de segurança e de saúde. Em uma das denúncias, a pessoa teve a casa roubada e, ao chamar a polícia, os agentes de segurança, além de se negarem a registrar boletim de ocorrência, proferiram agressões verbais à vítima.

Ubirajara de None Caputo – Foto: Arquivo pessoal

As denúncias encontradas pelo pesquisador foram: agressão verbal (27,4%), ameaça/tentativa de morte (11,1%), ameaças (exceto de morte) (9,3%), assassinato (1,6%), discriminação (13,6%), negligência (10,6%), prejuízo financeiro (4,5%), violência física (15,4%) e violência sexual (6,6%).

“Quando olhamos para quem cometeu as violências, a gente vê que os homens aparecem três vezes mais do que as mulheres como agressores. Os homens costumam se agrupar mais. Nas violências que acontecem por grupos de agressores, quase sempre esses grupos são formados por homens. Eles também estão mais ligados à violência física e sexual e às agressões mais violentas. As mulheres estão mais ligadas à discriminação. Não que os homens não discriminem. Eles discriminam e, inclusive, mais do que as mulheres, em termos nominais, mas, em termos proporcionais, a violência cometida por homens está mais ligada ao físico”, informa Caputo.

Quanto aos cenários onde essas violências ocorrem, estão: família (13,3%); trabalho (4,2%); consumo de bens e serviços (8,4%); exploração sexual (2,5%); serviços de educação, saúde, acolhimento e assistência social (15,2%); e serviços públicos de segurança (11,7%).

O contexto da exploração sexual, segundo o pesquisador, foi o mais violento de todos ao se levar em conta o número de violações por denúncia. “É um contexto trágico, de extrema violência”, diz. Nesse contexto, ele encontrou relatos que apontam para a existência de redes que exploram sexualmente as travestis. Elas são mantidas em cárcere privado, obrigadas a se prostituir e, quando tentam fugir, passam por vários castigos pesados, como amputações de partes do corpo, envenenamento de próteses e ameaça às famílias.

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O canal de denúncias Disque 100

O Disque 100 foi criado em 1997, com o nome de Disque Denúncia, e tinha como alvo as violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes. Em 2003, o serviço começou a ser gerido pelo governo federal e a atender pelo número 100. Em 2010, passou a receber denúncias de outras populações em condição de vulnerabilidade, como idosos, pessoas com deficiência, em situação de rua, LGBTs, etc. As denúncias são analisadas e, dependendo do caso, encaminhadas a órgãos competentes.

Atualmente, o serviço Disque 100 está vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Na época em que Caputo começou a pesquisa, em 2016, o serviço estava associado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Por meio da Lei da Transparência, os pesquisadores solicitaram à Secretaria a transcrição dos dados e receberam o registro das 1.233 denúncias ligadas ao segmento LGBT.

Caputo explica que foram solicitadas as denúncias desde 2010, mas ele precisou desprezar os dados até 2014 pois, como se tratava de uma pesquisa de mestrado, não tinha tanto tempo disponível, além do fato de as transcrições do ano de 2015 estarem mais completas em relação às outras e serem as mais recentes.

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O serviço Disque 100 possui, nos dias atuais, mais duas formas para denunciar violações de direitos humanos: o aplicativo para smartphones “Proteja Brasil” e o serviço Ouvidoria online, disponível na internet. Essas modalidades não existiam à época dos dados da pesquisa.

Mais informações: e-mail bira@dieese.org.br ou biracaputo@usp.br, com Ubirajara de None Caputo





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