Inconveniências filosóficas do filme de arte

Jurandir Renovato é jornalista e editor executivo da “Revista USP”

 07/02/2019 - Publicado há 5 anos

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Jurandir Renovato – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

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Sempre achei que o filósofo pré-socrático Zenão de Eleia devia ser o patrono do cinema. Pode parecer contraditório, afinal ele pregava o oposto do que o cinema mostra. Segundo Zenão, o movimento não existe. A trajetória de uma flecha lançada por um arqueiro, dizia ele, é composta de inúmeros pontos estáticos, ou seja, em cada trecho de seu percurso a flecha se mantém parada. É o conjunto dessas estaticidades que cria a ilusão do movimento. Veja bem: a ilusão. E o cinema não é exatamente isso, uma ilusão de movimento criada a partir de imagens estáticas (os fotogramas) rodadas em alta velocidade?

Henri Bergson, já no início do século 20, percebeu essa conexão entre o cinematógrafo e os paradoxos de Zenão de Eleia, mas não ficou muito satisfeito com isso. Para ele o cinema só podia nos oferecer um simulacro de movimento, a reprodução de uma ilusão, ou – que seja – a cópia de uma cópia, como no mito da caverna, de outro grego ainda mais famoso. Vá entender os filósofos…

Talvez, no fundo, Bergson não tenha conseguido se deixar seduzir pela então novíssima invenção dos irmãos Lumière. Tem muita gente que não gosta de cinema. Um conhecido meu diz que não suporta ficar parado assistindo a um filme. Se Zenão de Eleia estiver mesmo certo, então tanto faz o sujeito ficar plantado na frente de uma tela de cinema quanto nadando numa piscina olímpica ou dando piruetas num brinquedo do Hopi Hari. Em todas essas situações ele estará em repouso.

Há também os que se ressintam não de sua própria imobilidade, mas daquela do filme; são os que reclamam da falta de ação cinematográfica. Como se atores correndo de um canto a outro da telona ou balas explodindo pra todo lado pudesse ser garantia de alguma coisa. Muitos desses filmes escondem, por trás do excesso de movimentação dos atores (ou da própria câmera, por meio dos travellings), a falta de sentido do enredo. Por isso algumas pessoas, mais exigentes, não se contentam só com a ação.

Outro conhecido meu, supostamente um desses exigentes, que esperam do cinema mais do que apenas correria, apesar de afirmar não ter estômago para filmes “parados”, me diz que o melhor e mais completo filme já produzido foi Ghost. Diante de minha estupefação, ele explica: porque tem um pouco de tudo, ação, drama, suspense, comédia, romance. Então, sem dizer nada, penso naquele sujeito vegetariano que pede um hot dog completo sem salsicha: também tem de tudo um pouco, menos o essencial.

Os filmes mais “parados” são aqueles que, na falta de definição melhor, convencionou-se chamar de filmes de arte. Definição essencialmente tola uma vez que, se cinema é arte, como a música, a pintura e a literatura, todo e qualquer filme também o é. Ninguém fala canção de arte, quadro de arte ou poesia de arte.

De todo modo, há nesse tipo de filme um diferencial em relação àqueles tidos como comerciais. São experimentais. E difíceis, claro. E requerem mais atenção do espectador. Via de regra são também aqueles dos quais a crítica intelectualizada fala bem, que rendem teses de mestrado e mostras em cineclubes. Mazzaropi, que lotava todas as salas onde estivesse passando um filme seu, costumava se queixar de que, quando tremia a câmera, a crítica dizia ser defeito, mas quando o Glauber Rocha fazia a mesma coisa, a crítica dizia que era arte.

Pode-se dizer nesse caso que a diferença resida no fato de que o efeito proposital em um, no outro seria imperícia técnica. O que levaria a deduzir terem os diretores de películas não comerciais mais liberdade criativa em relação àqueles que se subordinam ao gosto do grande público. Pode ser. Mas não é totalmente verdade que não queiram agradar ao público, assim como, mal comparando, não é totalmente verdade que uma pessoa agressiva não queira agradar à sociedade. Se imaginarmos uma sociedade composta só de masoquistas, o agressivo então se torna plenamente agradável a ela. Sendo assim, muitos diretores de filmes de arte acabam também tendo de se sujeitar ao gosto diferente de um público específico e às vezes tão ou mais fanatizado que aquele do cinema comercial.

Vejamos um cinéfilo típico, desses aficionados por filmes de arte, que não podem ouvir o nome Spielberg sem que lhe brotem urticárias por todo o corpo. Ele veste uma camiseta com a estampa do Laranja mecânica; se fosse inverno, por cima da camiseta estaria usando seu puído blazer de tweed, talvez também uma boina de lã ou uma echarpe comprida enrolada no pescoço. Usa minúsculos óculos de aros vermelhos e carrega numa das mãos um exemplar da Arqueologia do saber, de Michel Foucault.

Acaba de sair de uma maratona de três clássicos do cineasta Yasujiro Ozu e, mesmo que em dois deles não houvesse legenda alguma e ele não saiba japonês, isso pouco importa, ele pensa, pois em Ozu a ação e os diálogos são dispensáveis; em Ozu, ele divaga, a arte em estado puro se basta a si mesma.

Mais tarde, quando se encontrar com os amigos numa pizzaria da Alameda Campinas, desenvolverá melhor o raciocínio, que inevitavelmente vai começar com “o Belo em Hegel” até chegar na coisa em si de Kant. E quando um dos amigos (de sacanagem?) lhe perguntar sobre aquele filme do Abbas Kiarostami, no qual durante duas horas intermináveis só aparecem os rostos em close de mulheres que, num cinema, acompanham um dramalhão persa que nunca é mostrado, seus olhinhos brilharão por trás dos óculos esquisitos: “Ah! É sublime! É o Dasein heideggeriano levado às últimas consequências!”.

Eu nunca tive muita vocação pra cinéfilo. Mas durante um tempo, e isso faz muito tempo, antes da invenção do best-seller cabeça e da pipoca de microondas, andei frequentando o Cine Coral, o Bijou, o Cineclube Oscarito, o CineSesc da Augusta, a Sala Cinemateca, às vezes até enfrentando o frio glacial do Belas Artes. Eram filmes italianos, franceses, alemães, japoneses, russos, neo-zelandeses. Um sem-número de películas mudas e em preto e branco. Godard, Resnais, Fellini, De Sica, Scola, Pasolini, Buñuel, Wajda, Szabó, Lang, Eisenstein, Fassbinder, Kurosawa, Kinoshita e toda sorte de clássicos americanos e ingleses e o cinema ibérico e o eslavo e o latino-americano.

No entanto, nunca vi direito um filme do Ingmar Bergman. E não por que tenha faltado oportunidade. Ainda na faculdade, um professor pediu um trabalho sobre Gritos e sussurros. O filme ia ser exibido no Tuquinha. Eu e o Serjão chegamos em cima da hora e fomos lá para a frente. Vinte minutos depois, comecei a ouvir um barulho estranho vindo do meu lado direito, onde o Serjão estava sentado. Era ele roncando. Um ronco cinematográfico, digamos assim, brotando das profundezas mais dramáticas do seu ser. Claro que ninguém conseguiu ver direito mais nada, nem ouvir, e desde então, em nossa memória cinéfila, aquele drama de Bergman passou a se chamar Gritos, roncos e sussurros.

Noutra ocasião, também na época de estudante, como fosse muito cedo para o início da primeira aula, resolvi dar uma chegadinha no antigo Cine Haway, na Rua Turiassu, onde estava sendo exibido Da vida das marionetes. A sessão começava às dezesseis horas e já tinham se passado uns quinze minutos. Perguntei na bilheteria se havia problema de entrar um pouco atrasado. A menina, meio sonolenta, me disse “olha, não tem ninguém lá dentro, mas se você quiser eu ligo o projetor pra você”. Achei sensacional a chance de ter um cinema inteiro só pra mim, ainda mais que se tratava de uma sala gigantesca, bem diferente desses atuais cubículos de shopping.

Procurei o melhor lugar entre as poltronas, bem no meio do cinema, e me acomodei feliz da vida, pronto para alcançar enfim, e da melhor maneira possível, a densidade de uma trama do badalado diretor sueco. Minha alegria durou pouco. A fita ia quase pela metade, entrou alguém, eu percebi pelo facho de luz projetado da porta que se abriu atrás de mim. Não era nada de mais. Talvez um funcionário do cinema ou outro desocupado como eu querendo matar o tempo. O que não esperava, nunca, jamais, em hipótese alguma, era que naquela imensidão de mais de mil lugares o sujeito fosse escolher se sentar justo do meu lado!

Podia até ser que, como eu, preferisse o centro da sala. Mas, convenhamos, tinha de ser precisamente onde o seu braço encostava no meu? Perdi completamente a concentração na história e fui embora sem saber (e até hoje não sei) se o personagem corta ou não a garganta de sua mulher.

E foi justamente com a Jaqueline, minha mulher, que muito tempo depois resolvi novamente tentar insistir, digo, assistir a um longa de Bergman.

Morangos silvestres estava passando no Studio B do Cine Arouche. Quando chegamos, a sessão anterior ainda não tinha acabado. O saguão de espera, totalmente vazio, nem pipoqueiro tinha. Aproveitamos para ir ao banheiro. Ao abrir a porta do toalete masculino, que coisa! Era como se tivesse entrado num universo paralelo, atravessado a quarta dimensão! O banheiro estava absurdamente lotado numa algaravia indescritível. Todos os morangos silvestres lá dentro reunidos, à minha espera. Recuei em direção ao lavatório, abri a torneira. Um sujeito grandalhão, como saído de uma comédia do Almodóvar, se postou do meu lado e perguntou se eu só ia molhar as mãozinhas mesmo. Devo ter balbuciado algo do tipo “sim, sim” e saí de lá rapidinho. Mais rápido que a pedra rolando do primeiro Indiana Jones, mais rápido enfim que a flecha de Zenão de Eleia. Voltei, por assim dizer, para o conforto alienado da caverna de Platão. E passei a alugar vídeos.

 


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