Filmes, lucros e infantilização das diversidades

Ricardo Alexino Ferreira é professor da Escola de Comunicação e Artes e membro da Comissão de Direitos Humanos da USP

 23/03/2018 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 26/03/2018 às 10:05

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Ricardo Alexino Ferreira – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

As diversidades étnico-sociais, envolvendo questões de gênero, etnias, orientações sexuais e outras estão no agendamento midiático. Em sociedades capitalistas, que tendem a reificar praticamente tudo, elas também têm se tornado mercadorias valiosas, principalmente nas produções cinematográficas.

Duas dessas produções merecem destaque, Mulher-Maravilha, de Patty Jenkins, e Pantera Negra, de Ryan Coogler, que foram recebidas com entusiasmos por movimentos feministas e negros e têm movimentado salas de cinema, principalmente no Brasil.

Mulher-Maravilha teve arrecadação de bilheteria de lançamento, em junho de 2017, de mais de 821,9 milhões de dólares, tornando-se até aquele momento um dos filmes mais lucrativos das produções de heróis de histórias em quadrinhos, desbancando O Homem-Aranha, de Sam Raimi, lançado em 2002 e com uma bilheteria de lançamento de 821,7 milhões de dólares. As duas grandes produções da Warner/DC Comics.

Até então, Mulher-Maravilha era um dos grandes fenômenos de bilheteria. Até que Pantera Negra conseguiu em bilheteria mundial a cifra de 897,7 milhões, tornando-se o quinto filme mais lucrativo da Marvel e com perspectivas de crescimento, considerando-se que foi lançado em 15 de fevereiro de 2018.

Tanto Mulher-Maravilha quanto Pantera Negra provocaram frisson nos movimentos sociais. Feministas, principalmente as mais jovens, consideraram a personagem amazona Diana Prince como sendo ilustrativa da luta feminista contemporânea, e negros consideraram simbólica a saga de T’Challa, príncipe do reino imaginário de Wakanda, por ser um dos poucos protagonistas negros da história do cinema.

Produções desses dois grandes estúdios, Warner/DC Comics (Mulher-Maravilha) e Marvel (Pantera Negra), que investiram pesado em marketing, fizeram acreditar que eram representações das diversidades contemporâneas, e vêm lotando salas de cinema com esses segmentos. Em Austin, no estado norte-americano do Texas, a rede de cinemas Alamo Drafthouses destinou sessões só para mulheres no lançamento de Mulher-Maravilha. Em relação ao Pantera Negra, salas nos Estados Unidos e no Brasil foram tomadas por negros em sessões competitivas e fechadas.

A questão que pode ser colocada é: de onde parte o discurso de que as personagens Mulher-Maravilha e Pantera Negra representam, respectivamente, mulheres e negros? Talvez o fato de Mulher-Maravilha destacar uma personagem feminina em um mundo de comics tão masculino e ter uma mulher como diretora possa ser uma das explicações. No caso de Pantera Negra, o fato de ter mais de noventa por cento de atores negros pode ser outro motivo para excitar o público-alvo.

 

Mas será que as duas produções valem tanto para discutir diversidades?

 

Os dois filmes são bastante comerciais e não aprofundam nem questionam absolutamente nada, a não ser nas entrelinhas, o imperialismo norte-americano, o ideal de que pela guerra e violência tudo se resolve.

Mulher-Maravilha conta a história de Diane Prince, moldada no barro pela sua mãe Hipólita, rainha das amazonas, e tornada humana por Zeus. A mitologia grega é a base argumentativa do filme. Se queria falar sobre mulheres, o filme poderia fazer alguma menção à poeta grega Safo, que morreu em 580 a.C. Ela era da Ilha de Lesbos (daí a referência “lésbica”) e criou uma escola só para mulheres, em uma sociedade grega que era dominada apenas por homens livres. Safo, sim, era uma heroína.

No filme, diferente da escola criada por Safo, as mulheres que estão na ilha fictícia de Themyscira, somente pensam em treinamento de guerra. O filme não passa outra coisa a não ser o estereótipo do soldado que quer matar todos para garantir a paz, e endossa a mesma ideologia dos governos norte-americanos, que se posicionam como salvadores da paz mundial, mas banhada em sangue.

Apesar de aparentemente ser a protagonista do filme, a personagem Diane Prince, a Mulher-Maravilha, é apenas reativa. Os dois personagens masculinos, Ares (deus grego da guerra) e Steve Trevor, capitão do Serviço Aéreo do Exército dos Estados Unidos e espião, são os protagonistas de fato. A Mulher-Maravilha é infantilizada e é guiada por Trevor. Ele, sim, salva o mundo com a própria vida, destruindo o gás mostarda criado pela personagem Dra. Isabel Maru (ou Doutora Veneno). Os ideais da Mulher-Maravilha são infantilizados. Ela se comove com as crianças e mulheres e acredita que a guerra é feita apenas por um lado e por uma única pessoa. A personagem Mulher-Maravilha no filme é destituída de capacidade intelectual e de percepção.

Como as feministas compraram a ideia de que a Mulher-Maravilha possa ser a representação do feminismo contemporâneo? Como não perceberam que no filme os protagonistas são os homens? Como não perceberam que se trata de uma história de amor, em que de forma estereotipada a mulher perde o seu foco para o homem amado? Como não perceberam que o filme é a ideologia norte-americana de poder? Até mesmo a roupa da Mulher-Maravilha, com predominância das cores vermelho e azul, remete à bandeira dos Estados Unidos.

Com roteiro de Allan Heinberg, o filme Mulher-Maravilha é muito frágil e não traz nada além de estereótipos machistas. Talvez, muito mais que um sucesso cinematográfico, foi um sucesso de marketing, que soube aproveitar o momento histórico para falar de uma personagem feminina, que em nada contribui com as questões feministas. Venderam a ideia de que ela é uma representação de luta, quando na verdade é destituída de inteligência e é bastante emocional. Ao terminar o filme, fica apenas uma questão: o que será da Mulher-Maravilha sem os seus masculinos Ares e Steve Trevor?

O filme Pantera Negra  também apresenta eficiência de marketing. Atire a primeira pedra o negro brasileiro que se identificou com qualquer um dos personagens do filme. Apesar de trazer um discurso étnico, com palavras de efeito, o filme é uma ode à guerra. É maniqueísta porque coloca de forma primária o bem contra o mal.

A trama fala de um reino, em alguma região da África, chamado Wakanda, que possui um metal que concentra diferentes poderes, chamado vibranium, que pode ser um avanço para a humanidade. O metal é um meteoro que caiu há séculos em Wakanda. Na disputa por esse metal é que se confrontam os personagens T’Challa e Erik Killmonger (também conhecido como N’Jadaka). O primeiro, tido como herói, não quer que o metal saia de Wakanda. Já Erik quer que o metal seja entregue para os negros de todo o mundo com o propósito de resistência ao racismo e às perseguições. É interessante que há uma inversão de valores. O que quer distribuir a resistência aos negros do mundo é o vilão e o que não quer distribuir é o herói.

Também se falou muito que o filme trazia a personagem feminina Shuri, irmã de T’Challa, como cientista empoderada. No entanto, o estereótipo do cientista maluco e excêntrico foi preservado.

Outro fato interessante é que um dos poucos personagens brancos acaba por ser o herói na narrativa enviesada do filme. Trata-se do agente branco da CIA Everett K. Ross, que abate os aviões dos vilões que iriam roubar o vibranium e acaba por salvar a fictícia cidade africana.

O roteiro de Pantera Negra, escrito por Joe Robert Cole e Ryan Coogler, é frágil e se concentra muito na aventura, apesar das palavras de ordem. A ideologia do poder é totalmente preservada.

 

Escassez de heróis e heroínas na vida real?

 

Talvez as feministas entusiastas de Mulher-Maravilha e os militantes negros não tenham se dado conta do poder do marketing de grandes estúdios. De quem será a fala de que esses filmes são representações das lutas dos movimentos sociais?

É interessante, conforme dito anteriormente, que os grupos dominantes, de forma estratégica, continuam sendo protagonistas, mesmo quando aparentam não ser. No caso de Mulher-Maravilha, o homem a conduz em toda a trama. No caso de Pantera Negra, o branco é que impede que o metal precioso seja levado pelos vilões e preserva a cidade africana.

A corrida histérica às salas de cinema para assistir aos dois filmes precisa ser mais bem avaliada. São dois filmes que, quando terminam, não dizem muito, sendo facilmente esquecíveis. No entanto, o marketing intenso acaba gerando ações inversas. Mulheres e negros passam a defender o produto da indústria cultural como se fosse a representação da luta dos movimentos sociais. Intuo que, em futuro não tão distante, o próximo herói dos estúdios de cinema será LGBT+.

Talvez uma alternativa para tudo isso seja levar como conteúdo educativo a história real de mulheres e negros que lutaram contra a opressão e contra as hegemonias dos Estados Unidos e seus aliados, porque na essência ideológica Mulher-Maravilha e Pantera Negra somente corroboram o discurso dominante dos Estados Unidos. E também mostrar como o marketing pode ser uma poderosa ferramenta de indução.

É preciso enfrentar a reificação (transformação em mercadoria) das lutas político-socioculturais de negros, mulheres, LGBT+ e outros segmentos. Nesse passo, os grupos das diversidades somente serão lembrados como cidadãos se forem, antes, consumidores.

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