“Et toi l’Afrique, et toi povo preto, abre os olhos!”

Rose Satiko Gitirana Hikiji – FFLCH

 23/06/2016 - Publicado há 8 anos

 

Rose Satiko Hikiji é antropóloga e coordenadora do Lisa – Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP – Foto: Marcos Santos

Um palco montado embaixo do viaduto 9 de Julho interdita a passagem pela rua Álvaro de Carvalho, no centro de São Paulo. O cenário é composto por grafites coloridos no entorno, pichações contra o golpe sob o viaduto, ocupações ordenadas na calçada por moradores de rua e uma bandeira palestina que sobrevoa a plateia.

Quatro vozes masculinas entoam um canto em língua africana. Uma senhora senegalesa vende tecidos e monta turbantes em curiosas paulistanas. A fila para o shawarma e para o fufu é longa no restaurante de culinária árabe que se tornou ponto de encontro de refugiados e simpatizantes da causa.

A mistura de cores, sabores, sonoridades e gentes não é estranha à cidade de São Paulo. Mas a reunião em questão marcou o lançamento da Frente Independente de Refugiados e Imigrantes (FIRI), que organizou o 1º Festival do Dia Internacional do Refugiado, no último domingo, 19 de junho.

Houve shows, performances, artesanato, roupas e comidas realizadas por imigrantes e refugiados sírios, haitianos, congoleses, senegaleses, angolanos, colombianos e da Guiné-Conacri. Segunda, 20, foi comemorado o Dia Mundial do Refugiado.

Desde dezembro de 2015, temos acompanhado a movimentação de músicos africanos imigrantes e refugiados em São Paulo como parte de um projeto de pesquisa desenvolvido junto ao Departamento de Antropologia da USP.

Interessamo-nos pelas experiências culturais e formas expressivas desses africanos que têm chegado recentemente ao Brasil, e pelas formas como a música e a dança são mobilizadas na construção de narrativas de identidade.

Em menos de seis meses, acompanhamos e registramos três festivais semelhantes ao que ocorreu neste domingo, dois deles promovidos pelo GRIST – Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem-Teto e pela Bibliaspa – Biblioteca e centro de pesquisa América do Sul-Países Árabe-África, e o último, pela FIRI, integrada por GRIST, MOP@t – Movimento Palestina Para Tod@s, Equipe de Base Warmis – Convergência de Culturas e Visto Permanente – Acervo Vivo das Novas Culturas Imigrantes.

Quatro vozes masculinas entoam um canto em língua africana. Uma senhora senegalesa vende tecidos e monta turbantes em curiosas paulistanas

Nestes eventos, conhecemos alguns dos artistas com quem temos nos aproximado da experiência da imigração e do refúgio na cidade de São Paulo. Os festivais são espaços privilegiados para a apresentação da situação do refugiado, por uma via alternativa, marcada pela expressividade de suas culturas.

De acordo com Pitchou Luambo, refugiado da República Democrática do Congo (RDC) e coordenador do GRIST, o intuito da ação é evitar tratar o refugiado como vítima e apresentá-lo como protagonista da própria história.

"Não à guerra do Congo" - Foto: Divulgação
“Não à guerra do Congo” – Foto: Rose Satiko Hikiji

Que histórias são narradas nas performances destes artistas? Reproduzo aqui algumas delas, contadas/cantadas por congoleses que subiram ao palco na tarde deste domingo.

Artistas que estão no Brasil há pouco mais de um ano e que se conheceram há menos de um mês em encontros na ocupação do Hotel Cambridge, a poucos metros do palco da Álvaro de Carvalho, organizada pelo Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), onde vivem cerca de 500 pessoas, entre elas alguns refugiados.

O primeiro artista no palco do festival foi Yannick Delas, músico congolês (RDC) e São Tomeense, que vive no Brasil há cerca de um ano. Quando conheci Yannick, há algumas semanas, ele se apresentou como um músico imigrante, um artista internacional que veio ao Brasil pela primeira vez em 2014 para trabalhar com música.

No palco do Festival, Yannick canta à capela em diversas línguas africanas (Lingala, Kimbundu, Kicongo), em criolo e em francês

Em um debate na Residência Artística da ocupação Cambridge, Yannick não se identificava, inicialmente, com a condição de refugiado, e declarava sua intenção de reconhecimento como artista na cena musical brasileira.

No palco do Festival, Yannick canta à capela em diversas línguas africanas (Lingala, Kimbundu, Kicongo), em criolo e em francês. Acompanha com violão seu canto e também o dos três músicos congoleses do grupo Os Escolhidos, e discursa em português e francês para o público de dezenas de pessoas.

Canta sua composição Biliwê, que em criolo de São Tomé e Príncipe, significa “abra os olhos”. Na música, entoa em português: “Chega, corrupção/Chega, manipulação/Chega, racismo/Chega, xenofobia/Chega, imperialismo/Chega, injustiça/Chega, hipocrisia”. Faz uma crítica ao imperialismo, à criação da dependência política e econômica: “Chegaram na África como os médicos do mundo, salvadores de uma epidemia inventada por eles”.

Seu canto nomeia o continente, não países específicos. E suas frases referem-se a uma condição que poderia ser a nossa: “Os negros sem acesso à educação de qualidade na Babilônia, discriminados nos parques públicos, baleados pela polícia, acusados de crimes que não foram cometidos”. Em francês, afirma: C’ést la guerre. E na mistura de línguas, que caracteriza sua música e sua condição diaspórica, conclui: “Et toi l’Afrique, et toi povo preto, abre os olhos!”

Yannick no palco - Foto: Divulgação
Yannick Delas no palco – Foto: Rose Satiko Hikiji

Yannick parece ter consciência do papel ao qual é chamado em um palco como este, no Dia dos Refugiados. Sua música é linda, e a beleza serve também à denúncia e à reflexão. “Essa música serve para falar de onde eu venho, da África, mas acho que serve para nós também. Mas eu canto a realidade de minha terra”.

Em um país onde os estrangeiros não têm o direito à expressão política, o cuidado evidenciado em sua última frase é necessário.

As recentes manifestações contra o impeachment no país trouxeram à tona a realidade do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6815/80, art.107), que dispõe que o estrangeiro admitido em território nacional não pode exercer atividade de natureza política, nem participar de desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza no Brasil, submetendo o infrator à pena de detenção de um a três anos e expulsão do país.

Esta situação tem sido debatida nos encontros entre artistas, brasileiros e imigrantes, que questionam como é possível exercer sua atividade – a arte – sem um posicionamento político.

A questão é relevante, principalmente quando se reflete acerca das inúmeras discriminações vividas pelos imigrantes em São Paulo. “Cheguei aqui com visto de estudante, não como refugiado, mas não sabia que o Brasil era racista e que o custo de vida era tão alto. Vivi em abrigos, com outros refugiados. Não sei se a condição do imigrante e do refugiado é tão diferente assim”.

O relato do artista congolês Tresor Muteba, que estuda Artes na Unesp, evidencia, no encontro que tivemos na ocupação Cambridge, a proximidade da experiência do imigrante e do refugiado no Brasil, marcada pela fragilidade, dada a realidade da exclusão social e do racismo vividos pelo “povo preto”, identificado na música de Yannick.

A performance Não à guerra do Congo faz referência aos metais extraídos na República Democrática do Congo e utilizados na fabricação de celulares e outros utensílios eletrônicos

Encerro este breve relato do impacto causado pelo encontro com os artistas imigrantes com a imagem potente produzida pela performance de Shambuyi Wetu, refugiado congolês que vive há dois anos em São Paulo. Acompanhado pelo violão de Yannick e pelas palavras de Pitchou, seus dois conterrâneos, o artista sobe ao palco, envolto em jornais, carregando junto ao peito carcaças de celulares e com tinta vermelha escorrendo pela cabeça e corpo.

A performance Não à guerra do Congo faz referência aos metais extraídos na República Democrática do Congo e utilizados na fabricação de celulares e outros utensílios eletrônicos. A exploração mineral sustenta um dos conflitos mais violentos do mundo, que já resultou em mais de 6 milhões de mortos nos últimos 20 anos, com o número espantoso de mais de mil estupros de mulheres a cada dia.

A performance silenciosa de Shambuyi contrasta com sua música, alegre, dançante, que ouvi pela primeira vez em uma noite em homenagem ao músico congolês Papa Wemba, recentemente falecido. Música, dança, gesto e visualidade são formas de expressar diferentes experiências e razões do deslocamento.

Links sugeridos:

Yannick Delas no Youtube:

https://www.youtube.com/watch?v=kquY9ebm1L8

https://www.youtube.com/watch?v=9IEBE8c522g

Página do projeto de pesquisa no Facebook, Afro-Sampas:

@afro.sampas

https://www.facebook.com/afro.sampas/

 


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