Apontamentos para um cardápio literário

Jurandir Renovato é jornalista e editor executivo da “Revista USP”

 20/12/2017 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 22/01/2021 as 19:54

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Jurandir Renovato – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Quem escreve sobre livros, revisa livros, edita livros e eventualmente tenta escrever livros quase sempre é instado a indicar livros. Nada mais comum do que estar numa festa de aniversário do filho do vizinho e uma dona que você nunca viu na vida se aproximar, com um prato de cajuzinho nas mãos e um chapéu da Peppa Pig preso por um elástico no queixo, e perguntar o que você aconselharia a dar de presente para o pai dela que vai fazer cento e dois anos no mês que vem.

Outro dia, num desses eventos sociais, um conhecido pediu uma indicação um pouco diferente. A sua dúvida pairava sobre o que deve ser lido durante as refeições. Eu fiz cara de enólogo degustando vinho e disse: depende do prato… Ele entendeu aquilo como sarcasmo evasivo e se afastou de mim. Mas a sua pergunta permaneceu zunindo no meu ouvido.

Levei adiante a sua solicitação e, sem esquecer que o termo “conhecido” se aplica invariavelmente àquelas pessoas cujos gostos e hábitos desconhecemos, fiz algumas considerações bem genéricas e abrangentes, divididas por gênero – não literário, mas gastronômico. No entanto, elas são específicas para os dias da semana, em horário de almoço e, por motivos óbvios, para uma única pessoa, desacompanhada.

Almoço trivial

É o famoso comercial ou PF. Quando delivery, é chamado de marmitex, no qual vem tudo misturado, o arroz, o feijão, o bife, o ovo frito, a banana empanada, às vezes até a sobremesa de queijo com goiabada cascão. É o ambiente propício à literatura de entretenimento. O hábitat do best-seller. Das intrigas de poder e sedução, de amor e de crime. Do thriller. Harold Robbins é atemporal; Sidney Sheldon dispensa comentários; Tom Clancy, um clássico da sessão da tarde literária. Só procure evitar Stephen King, para não incomodar, com seus eventuais espasmos de susto, as pessoas da outra mesa.

Histórias policiais, mesmo das antigas, mostram desprendimento e, sobretudo as noir, uma certa virilidade intelectual. Um romance de Agatha Christie ou de Simenon é básico. Como são os de Hammet, Chandler, Chester Himes, todos americanos. Rex Stout, por exemplo, com seu detetive cozinheiro Nero Wolfe, é bom até para abrir o apetite. Dos mais atuais, o comissário Montalbano, do italiano Andrea Camilleri, também é um grande garfo.

Se você leva marmita (ou tapauer) dê preferência a autores menos reflexivos. Invista em textos diretos, sem muitas firulas de linguagem. Uma certa literatura erótica, como a da quase esquecida Adelaide Carraro, ajuda a acentuar o sabor de qualquer gororoba requentada no micro-ondas ou no banho-maria. Só tome cuidado com as capas. Por serem apelativas, é melhor recobri-las com um guardanapo de papel, para evitar comentário dos colegas.

Para o caso de comidas regionais, um cordel de Patativa do Assaré é a companhia ideal para feijão-de-corda ou baião de dois. Jorge Amado, o da última fase, de Gabriela e Dona Flor, apimenta ainda mais o vatapá baiano. José Mauro de Vasconcelos combina com tudo, do feijão tutu à galinhada caipira. Sem falar da compota de laranja-lima antes do cafezinho, claro. Uma legítima feijoada carioca vai ficar ainda mais completa se se juntar a ela um Febeapá do Stanislaw Ponte Preta. E não esqueça da caipirinha.

O melhor é que todas essas obras podem ser adquiridas em edições baratas, daquelas de bolso vendidas em supermercado ou posto de gasolina. Elas não atrapalham enquanto se equilibra a bandeja do self-service e você ainda pode se fartar de um bom macarrão à bolonhesa sem ligar para os respingos de molho de tomate e queijo ralado. Também impedem de você ficar bravo se acontecer de, numa churrascaria rodízio, por distração, o garçom enfiar o espeto bem no meio do livro.

Almoço executivo

Praticamente é o mesmo almoço trivial, só que num restaurante mais caro e com garçons mais bem vestidos, que dão bom dia e volte sempre. Nesse caso, prefira autores de segundo caderno, que possam agregar ideias novas, inclusive para o trabalho. Escritores como Ricardo Piglia são uma excelente pedida e denotam integração latino-americana. O chileno Roberto Bolaño, principalmente após sua morte prematura e seu romance inacabado 2666, pela dificuldade e extensão do texto, é ótimo para exercitar o espírito de empenho corporativo enquanto se mastiga.

Leonardo Padura está em alta, mesmo que você não seja de esquerda. Sua verve cubana, aliada à engenhosidade da narrativa, confere um ar malemolente à leitura, aguçando o paladar. Fica perfeito com massas al dente, com ou sem molho vermelho.

A literatura francesa atual, cheia de humor negro e nonsense, é amplamente indicada: Georges Perec, Pierre Mérot e até o novíssimo Martin Page, de Como me tornei estúpido, são infalíveis com cremes e caldos agridoces. Dependendo do ambiente você pode até ousar uma novela de suspense, mas só se for escandinava. Jo Nesbø, por exemplo, combina muito bem com grelhados e com uma caneca de chope weiss ou stout.

Para quem frequenta restaurantes típicos, os autores da Europa do Leste, desde Milan Kundera, continuam dando o que falar e podem ser acompanhados de uma taça de vinho branco gelado. Os médio-orientais, especialmente os iranianos, como o recém-falecido Abbas Kiarostami, e os afegãos, como o badalado Atiq Rahimi, enriquecem qualquer repasto árabe. Enquanto espera a comida, que é farta e demorada, experimente o turco Orhan Pamuk com babaganuche no pão pide e um generoso copo de raki.

Os asiáticos também são sensacionais. Mas cuidado. A menos que você faça muita questão de sashimi, fuja dos japoneses. Kenzaburo Oe, apesar do Nobel, é ácido demais, pode não cair bem, principalmente se o almoço for acompanhado de alguma bebida fermentada; Mishima chega por vezes a ser tão ambíguo e sinuoso a ponto de confundir o sabor dos alimentos.

Almoço gourmet

Mais requintado, merece os clássicos; os franceses, acima de tudo. E Proust em primeiro lugar. De preferência no original francês e numa edição de luxo da editora Gallimard. As madeleines vão fazer de sua refeição uma experiência única. Mas não precisa comê-las de verdade. Em vez disso, comece pelo indefectível foie gras e continue até onde sua imaginação (ou seu dicionário francês/português) alcançar. Só tome o cuidado de variar o restaurante. Como o Em busca do tempo perdido tem mais de três mil páginas, divididas em sete volumes, é capaz de acharem que você leva um ano para ler um único livro.

O romance Fome, de Knut Hamsun, na tradução do Drummond, pode criar uma composição interessante. Uma ironia. E demonstrar preocupação social. Assim como o Germinal, de Émile Zola, ou Os miseráveis, de Victor Hugo. Servem, inclusive, para dar um tempero mais digno à frivolidade do que você está levando à boca.

Os russos também se prestam a isso, Dostoiévski, Tolstoi, Górki, todos eles, menos Turguêniev, que é amaneirado demais. Com esses autores é melhor não pedir pratos muito adocicados. Recomendo um ceviche de bacalhau com castanhas precedido de um refrescante holy bucket à base de prosecco e vodca.

Se estiver com muita fome, prefira autores com algum sens d’humour, como Stendhal, Voltaire ou Cervantes. Aliás, o Dom Quixote, na versão original espanhola, fica magnífico com pratos à base de grão-de-bico sevilhano e lagostins frescos. O humor é uma espécie de digestivo natural, mas com moderação, do contrário pode causar estragos. Diante de uma comédia de Molière ou de qualquer página de Mark Twain, por exemplo, evite peixes espinhosos, escargots e trufas.

Almoço diet

Pode ser vegetariano, vegano ou macrobiótico. Aí cai bem uma prosa mais udigrúdi, cult mas independente, pouco conhecida; uma literatura de viagem, talvez, mas nada muito condimentado. Richard Brautigan, que influenciou toda uma geração de paz e amor, tem baixíssimo teor calórico. Com tofu servido com arroz integral e suco de gengibre e couve fica excelente.

Se você for mais convencional e saudosista, um Carlos Castañeda não faz feio, mas em pequenas porções, nada mais que um capítulo por refeição, até para não levantar suspeitas de que aquele inofensivo cogumelo orgânico no seu prato não seja nada mais do que apenas um inofensivo cogumelo orgânico.

Fast-food

A refeição rápida, o lanche. É o espaço, por excelência, do conto curto, instantâneo, certeiro. Cortázar, Tchecov, Raymond Carver, alguma coisa de John Cheever, mas não tudo. Entre os brasileiros, Dalton Trevisan, Luiz Vilela, Rubem Fonseca, todos mestres do diálogo. (Bem diferente de você, que sempre almoça sozinho e não conversa com ninguém.)

Uma coletânea de crônicas também pode ser indicada. Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, essa turma toda, pela agilidade de raciocínio e observação, aceleram e facilitam a absorção gástrica. Menos Rubem Braga. É lírico demais e você não vai querer chorar em cima da batata frita, não é mesmo? Dos mais recentes, Luis Fernando Veríssimo e Mario Prata ficam sensacionais com frango a passarinho.

E, claro, a poesia, mas não aquela cerebral, logopaica, no sentido poundiano do termo, de dança do intelecto entre as palavras. Você, enfim, não pode perder tempo pensando muito, desvendando enigmas ou construções linguísticas intrincadas. Por isso nada de João Cabral ou Fernando Pessoa. Manuel Bandeira é ótimo, Mário Quintana, perfeito, Paulo Leminski é o ideal. Um haicai também serve, pela leveza e despretensão.

Fábulas funcionam às maravilhas, além de se ajustarem completamente ao ar descontraído e lúdico de uma praça de alimentação de shopping. E ainda por cima faz com que a barulheira da criançada ao redor se torne menos desagradável e ganhe até um timbre, vamos dizer, mais terno, incorporando-se à leitura como uma trilha sonora.

Agora, se você estiver num bar ou num balcão de padaria, os contos de Hemingway ou de Fante caem muito bem com sanduíches, pedaços de pizza e, claro, com uma garrafa de cerveja esturricando. Se gostar de algo mais forte, não deixe de provar Bukowski com rodelas de chouriço acebolado, vinagrete e uma dose de cachaça de alambique. É sublime!

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