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“Investir na primeira infância é como uma vacina para o desenvolvimento humano”
Pesquisadora do novo Centro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância, Beatriz Linhares defende criação de políticas públicas voltadas aos seis primeiros anos de vida
26/04/2021
Tabita Said
Quando se fala em desenvolvimento infantil, quase todos os olhos estão voltados para a educação formal como principal responsável pela ascensão social e sucesso na vida. Outros aspectos, como saúde física, mental e emocional; direitos individuais e investimentos econômicos não parecem coisa de criança.
No entanto, desenvolvimento saudável em suas múltiplas dimensões durante os primeiros anos de vida faz as crianças se adaptarem melhor a mudanças e adquirirem novos conhecimentos com mais facilidade. Habilidades que as acompanharão durante todo o crescimento, levando-as a alcançar bom desempenho escolar, realização pessoal e oportunidades melhores de emprego, gerando cidadãos mais responsáveis.
“É como se você vacinasse esse desenvolvimento para enfrentar riscos e adversidades. Como combatemos os riscos? Não é passando a borracha, mas modificando o impacto negativo do risco”, afirma a psicóloga Maria Beatriz Martins Linhares, professora sênior da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e pesquisadora do recém-lançado Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI).
Criado em 2021 pelo Insper com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o centro agrega outras sete organizações e dos 18 pesquisadores participantes, 12 são da USP. Com as pesquisas, eles esperam influenciar o poder público na formulação de políticas baseadas em evidências científicas.
Maria Beatriz Martins Linhares, pesquisadora da FMRP USP - Foto: Divulgação/Ivepesp
O CPAPI surge no âmbito do veterano Núcleo Ciência pela Infância, uma coalizão de entidades dedicadas à ciência, inovação, formação profissional e desenvolvimento de lideranças capazes de promover a qualidade de vida e a equidade de oportunidades a crianças pequenas.
Instituição parceira do CPAPI, o Center on Developing Child, da Universidade de Harvard, publicou um working paper no ano passado reforçando a atenção à primeira infância. A pesquisa indicou que a criança que vive em um ambiente com relacionamentos de apoio e rotinas consistentes tem mais probabilidade de desenvolver sistemas biológicos que funcionam bem, incluindo circuitos cerebrais* que promovem um crescimento positivo e uma saúde duradoura.
O contrário também se aplica: adversidade excessiva e persistente no início da vida, especialmente em contextos de pobreza intergeracional ou racismo sistêmico, pode sobrecarregar e até interromper o sistema cardiometabólico. As consequências destas interrupções se expressam em desempenho educacional e produtividade econômica mais baixos, taxas mais altas de criminalidade e aumento dos custos com saúde em longo prazo.
*Vivências da criança pequena têm impacto sobre a formação do cérebro e refletem na capacidade de aprendizagem futura, comportamento e até emoções. Confira o vídeo:
De acordo com a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, é nos seis primeiros anos de vida que se formam 90% das conexões cerebrais. Mais da metade dessa janela de oportunidade ocorre em um único mandato.
Pequeno cidadão
“Primeira infância deveria ser a mãe de todas as políticas públicas, como um tema horizontal. Não podemos pensar em nada diferente de investimento na primeira infância se queremos um desenvolvimento sustentável para a sociedade. Tem razões humanitárias, psicológicas, mas tem razões econômicas também, além de razões éticas, de garantia de direitos.”
Beatriz Linhares defende que a primeira infância corresponde ao período mais sustentável do desenvolvimento humano, mas reforça que a criação e o monitoramento de políticas públicas efetivas para os seis primeiros anos de vida da criança “dependem de um convencimento de diferentes agentes sociais”. Ouça a entrevista com a pesquisadora clicando no player:
“Ao nascer, uma criança tem pela frente uma loteria da vida. E até os anos 1970, as crianças nascidas sequer tinham acesso ao Estado para garantir sua proteção”, lembra Naercio Menezes Filho, diretor do CPAPI e professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, em São Paulo.
O economista destaca que altas taxas de mortalidade e pobreza extrema foram sendo combatidas com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a implementação de estratégias como o Saúde da Família, além de programas de superação do ciclo intergeracional de pobreza, como Bolsa Família, Aposentadoria Rural e Seguro Desemprego.
Naercio Menezes Filho, diretor do CPAPI e professor da FEA USP - Foto: Reprodução/Youtube Fapesp
Artigo 227 da Constituição Federal Brasileira
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) criou a doutrina de proteção integral e instituiu a criança como cidadão de pleno direito. Dezesseis anos mais tarde, o Congresso Nacional sancionou o Marco Legal da Primeira Infância, ampliando os direitos das crianças pequenas e indicando planos, programas e serviços específicos desde a gestação até o sexto ano. Entre eles, a criação de espaços lúdicos para brincar, a ampliação da licença-paternidade para 20 dias no âmbito do programa Empresa Cidadã e a qualificação de profissionais para as ações de visita domiciliar.
O marco legal também abriu caminhos para o Criança Feliz, um programa de atenção básica apoiado pela figura dos visitadores, que acompanham periodicamente os filhos das famílias mais pobres do País. Criado em 2016 pelo governo federal, atualmente o Criança Feliz já beneficiou mais de 750 mil crianças utilizando uma metodologia focada nas habilidades dos pais e desenvolvida pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Desenvolvimento cognitivo e intelectual sadios dependem do ambiente. Construção da autonomia e potencial de aprendizagem estão relacionados com a qualidade do vínculo e da comunicação com os adultos em redor
Fonte: Núcleo Ciência pela Infância
Foto: 123RF
Primeira infância primeiro
“Estamos perdendo potencial de desenvolvimento até cinco anos de idade nos países em desenvolvimento. Das crianças nessa faixa etária, 37% não estão cumprindo habilidade básicas cognitivas e socioemocionais”, afirma Beatriz Linhares.
A docente se refere a uma série de publicações da revista The Lancet sobre os impactos do desenvolvimento na primeira infância. O ônus também é financeiro. De acordo com o estudo, um mau começo na vida pode levar a problemas de saúde, nutrição e aprendizagem inadequada, resultando em baixos salários na vida adulta, bem como em tensões sociais.
Estimativas feitas por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que os gastos do Brasil com a violência chegam a 6% do Produto Interno Bruto (PIB) por ano, ou aproximadamente R$ 373 bilhões considerando dados de 2016. O valor é equivalente ao investido pelo Estado em educação.
O trabalho inovador do americano James Heckman, vencedor do Nobel de Economia nos anos 2000, mostrou que investimentos na primeira infância, em especial no cuidado de crianças em situação de vulnerabilidade social, têm relativo baixo custo. Já o retorno sobre o investimento varia de 7% a 10% ao ano, com base no aumento da escolaridade e do desempenho profissional, além da redução dos custos com reforço escolar, saúde e gastos do sistema de justiça penal.
Apesar dos números disponíveis, o diretor do CPAPI conta que faltam dados para se traçar um perfil das crianças brasileiras.
A gente não sabe se o desenvolvimento infantil no País está bom ou ruim. Na educação, temos o Ideb, que mede o aprendizado e o fluxo escolar; na saúde, os indicadores de mortalidade infantil e incidência de doenças. Mas as pessoas, em geral, não sabem sequer se a criança está se desenvolvendo adequadamente. As mães aprendem na prática."
Naercio Menezes Filho
Menezes Filho explica que o CPAPI pretende mensurar o desenvolvimento infantil de várias formas, desde coletas para medidas biológicas até pesquisas envolvendo parentalidade e histórico de violência. Os pesquisadores se organizam para acompanhar grupos de recém-nascidos em municípios selecionados do Estado de São Paulo e cruzar as informações registradas na Caderneta da Criança com dados obtidos através de instrumentos de avaliação do desenvolvimento infantil. De acordo com o grupo, a caderneta é subutilizada pelos médicos e agentes de saúde.
Como forma de transferir a tecnologia, o centro deverá criar uma plataforma de código aberto para guardar os dados coletados da Caderneta da Criança (que serão colhidos por meio de aplicativos de celular e tablet) e dos registros administrativos de educação e saúde. Esta plataforma será acessível a profissionais e gestores públicos dos municípios que participam do estudo para subsidiar a criação e o aprimoramento de políticas públicas.
Os pesquisadores da USP que participam do novo centro são: Anna Maria Chiesa (EE-USP), Daniel Domingues dos Santos (FEA-RP/USP), Helena Brentani (FMUSP), Maria Beatriz Martins Linhares (FMRP-USP), Naercio Menezes Filho (Insper e FEA-USP) e Rogerio Lerner (IP-USP). Além destes, os pesquisadores associados: Alicia Matijasevich Manitto (UFPel e FMUSP), Débora Falleiros de Mello (EERP-USP), Eurípedes Constantino Miguel Filho (FMUSP), Guilherme Polanczyk (FMUSP) e Luiz Guilherme Dácar da Silva Scorzafave (FEA-RP/USP).