Diário de André Rebouças inspira espetáculo de artistas da zona leste de São Paulo

Projeto promoveu a primeira residência artística feita em arquivo no Brasil; documento histórico que inspirou a peça teatral está guardado na USP

 Publicado: 07/06/2024     Atualizado: 10/06/2024 as 14:27

Texto: Silvana Salles e José Adryan*

Arte: Joyce Tenório**

O engenheiro André Rebouças foi o principal articulador da campanha pela abolição da escravidão no Brasil – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Rodolfo Bernardelli/Museu Histórico Nacional e Cecília Bastos/USP Imagens

Um projeto inédito levou um grupo de artistas da zona leste de São Paulo para uma imersão no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Trata-se da primeira residência artística feita em um arquivo no Brasil. O projeto nasceu de uma parceria do IEB com o Instituto Çarê e a Sá Menina Produtora, uma plataforma de artes periférica e afrocentrada sediada na Vila Nhocuné, zona leste de São Paulo. O mergulho no arquivo inspirou a criação de uma peça teatral intitulada O Diário de André Rebouças, ainda em processo de composição.

Ao longo do semestre, os artistas da Sá Menina Produtora se debruçaram sobre escritos e fotografias de figuras como o abolicionista André Rebouças e o poeta Mário de Andrade, folhetos de literatura de cordel e livros de autorias negras, como Luiz Gama e Carolina Maria de Jesus. Eles também participaram de palestras com professores do IEB, rodas de conversa e visitas ao Arquivo do Estado de São Paulo e à Casa Sueli Carneiro.

Renato Gama é cofundador da Sá Menina Produtora. Foto: renatogama8/Instagram
Renato Gama é cofundador da Sá Menina Produtora - Foto: renatogama8/Instagram

O artista multidisciplinar Renato Gama, cofundador da Sá Menina Produtora e autor do espetáculo O Diário de André Rebouças, afirma que a experiência no IEB foi surpreendente. “Tudo era muito novo e nesse processo de um grupo de artistas e o arquivo, eu não tinha referência”, diz. “Foi a primeira vez (em um arquivo) e foi algo que não foi assustador, porque parece com a gente o que está lá. Quando você vê Milton Santos ou vê os jornais da imprensa negra, fala: peraí, eu estou entendendo que é a minha memória materializada aqui. Então, foi gratificante, foi potente e acabou me influenciando a escrever e fazer a dramaturgia do espetáculo”, conta Gama, que também dirige a peça.

Os participantes do projeto relataram a experiência da residência artística no arquivo em um evento realizado no IEB na última segunda-feira (3). Estiveram presentes tanto a equipe do IEB e do Instituto Çarê, financiador do projeto, quanto os artistas da Sá Menina. A vice-diretora do IEB, professora Luciana Suarez Galvão, explicou que a parceria envolveu a formalização de um convênio que garantiu os recursos financeiros e humanos para a realização do plano de trabalho apresentado à USP. A experiência deverá guiar futuras iniciativas, em um momento no qual o IEB se esforça para trazer olhares mais diversos sobre seu acervo.

“A gente não sabia o que exatamente ia ser o produto final, só sabia que ia ser uma coisa muito diferente daquilo que a gente tem o costume de fazer, que é entrar no arquivo, numa biblioteca e produzir um texto acadêmico. Não era um texto acadêmico”, contou Luciana. “Acabou virando uma coisa tão maior do que a gente tinha inicialmente imaginado, que eu acho que daqui para frente isso já vai estar de partida em qualquer outro convênio, qualquer outro projeto de residência artística e de outros tipos de residência que a gente possa pensar”, completou a docente.

Do arquivo aos palcos: como um diário inspirou um espetáculo

Durante o período de imersão no arquivo, os artistas fizeram visitas semanais ao IEB. Os encontros no campus da USP na Cidade Universitária eram mediados por Letícia Cescon da Rosa, estudante de Letras e estagiária do projeto. A ideia de compor um espetáculo teatral inspirado nos documentos pessoais de André Rebouças surgiu naturalmente, com a identificação imediata dos artistas com o acervo. “Logo no segundo encontro, eu levei para eles esses diários e, a partir do momento deles tocando nesse diário, lendo a letra do Rebouças, eles já ficaram completamente emocionados. Já tinham a certeza de que ele é que iria nortear toda a escrita da produção”, relata Letícia.

Luciana Galvão - Foto: Arquivo pessoal

Segundo Renato Gama, O Diário de André Rebouças se passa na fictícia Favela da Catingueira, vizinha de uma prestigiosa universidade. Os personagens são inspirados em figuras históricas, como Mário de Andrade e Carolina Maria de Jesus. “Apesar de se chamar O Diário de Rebouças, (a peça) traz a Mãe Carolina, que é uma mãe de santo de uma favela, que propõe fomentar a educação dos meninos que frequentam o seu centro para entrar na universidade, que é muro com a Favela da Catingueira. Para eles não precisarem pular o muro e sim entrar pela porta”, explica o autor.

O espetáculo é um musical em três atos. O primeiro ato faz a ambientação da favela. O segundo narra um delírio de André Rebouças em visita a um quilombo. O terceiro ato é marcado pelo encontro dos saberes acadêmicos com os populares. A Mãe Carolina é interpretada pela atriz Luzia Rosa. Ao seu lado, Almir Rosa interpreta o Mar da Rua, que o ator descreve como uma figura muito comum nas periferias de São Paulo.

“São pessoas que às vezes têm algum sofrimento mental, pessoas que estão totalmente desassistidas socialmente e elas acabam virando, entre aspas, um certo personagem dentro do bairro mesmo”, explicou o ator, que disse que a experiência no IEB o fez refletir sobre formas populares de guardar as memórias dos territórios. “É a pessoa que talvez saiba mais daquele espaço do que qualquer outra pessoa. Então, um personagem também pode ser o arquivo local”, completou.

O Diário de André Rebouças entra agora em um período de produção e montagem. O diretor espera que o espetáculo esteja pronto para estrear em janeiro. Antes disso, está em cartaz, até 15 de julho, uma exposição que reúne os documentos de arquivo e os livros consultados pelos artistas durante a residência artística. Intitulada O voo das borboletas amarelas: caminhos percorridos nos arquivos para o fazer artístico, a exposição está aberta para visitação de segunda a sexta-feira, das 9 às 18 horas, no IEB (Av. Prof. Luciano Gualberto, 78, Cidade Universitária, Butantã – São Paulo – SP).

Letícia Cescon da Rosa - Foto: Linkedin

Quem foi André Rebouças?

Nascido em 1838 em Cachoeira, na Bahia, o engenheiro André Rebouças foi o principal articulador da campanha pela abolição da escravidão no Brasil.

*Estagiário sob supervisão de Silvana Salles e Tabita Said
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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