Mostra de filmes relata violações de direitos humanos na América Latina

De 27 a 29 de maio, às 16 horas, o Centro MariAntonia da USP vai exibir documentários sobre a violência praticada por órgãos institucionais no Brasil e no Haiti

 Publicado: 23/05/2024
Por
Imagem: Divulgação – Centro Mariantonia/USP

De 27 a 29 de maio, o Centro MariAntonia da USP vai realizar uma mostra de três documentários sobre violação dos direitos humanos por órgãos institucionais na América Latina. Dirigidos pelos norte-irlandeses Cahal McLoughlin e Siobhán Wills, os filmes foram produzidos entre os anos de 2018 e 2023 e abordam a atuação agressiva das tropas de paz da ONU no Haiti, a violência armada e as milícias nas favelas do Rio de Janeiro e a violência ecológica cometida contra povos originários e quilombolas no Estado do Maranhão. A entrada é grátis.

As obras são baseadas em pesquisas e trabalhos de campo dos dois diretores, que partem de áreas diferentes do meio acadêmico: McLoughlin é professor de Estudos de Cinema na Queen’s University, de Belfast, na Irlanda do Norte, e Siobhán leciona Direito na Ulster University, também na Irlanda do Norte.

O primeiro filme do que ambos consideram uma trilogia é It Stays With You: Use of Force by UN Peacekeepers in Haiti (Isso Fica com Você: o Uso da Força pelas missões de paz da ONU no Haiti, em tradução literal), de 2018, que aborda os efeitos das ações da ONU no território haitiano entre 2004 e 2007, no que foram, à época, definidas como “missões de paz”, mas que acabaram deixando civis mortos. A ideia é dar voz às populações que foram afetadas pelas intervenções humanitárias das Nações Unidas, especialmente a de Cité Soleil, bairro pobre de Porto Príncipe, capital do Haiti. O documentário será apresentado na segunda-feira, dia 27, às 16 horas, em sessão que terá a mediação de João Fernando Finazzi, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais e pesquisador de política externa dos Estados Unidos, Haiti, conflitos internacionais, violência e policiamento.

No dia 28, terça-feira, às 16 horas, será a vez de Right Now I Want to Scream: Police and Army Violence in Rio – the Brazil Haiti Connection (Neste Momento Eu Quero Gritar: Polícia e Violência Armada no Rio – a Conexão Brasil-Haiti, em tradução literal), de 2020. Filmado após uma tentativa fracassada dos diretores de retornar ao Haiti devido aos conflitos internos no país, o documentário expõe a violência policial nas comunidades do Rio de Janeiro — com destaque para o Complexo do Alemão, o Complexo da Maré, Manguinhos e Salgueira —, as origens por trás disso e o sofrimento causado para a população que vive nas favelas e tem que conviver com as ações da polícia e das milícias. A sessão contará com mediação da jornalista Juliana Resende.

Cena do filme Right Now I Want to Scream: Police and Army Violence in Rio – the Brazil Haiti Connection (2020) — Foto: Divulgação

O filme que fecha a mostra, na quarta-feira, dia 29, às 16 horas, terá no Centro MariAntonia sua primeira exibição pública. Trata-se de We Fight For This Land: Quilombola and Indigenous Resistance to Ecowar Violence in the Amazon (Nós Lutamos Por Essa Terra: a Resistência Quilombola e Indígena à Violência e à Guerra Ecológica na Amazônia, em tradução literal), de 2023. O documentário, que completa a trilogia, só foi possível graças a um dos produtores de Right Now I Want to Scream, que é de São Luís do Maranhão, e expõe a violência e as ameaças sofridas por comunidades quilombolas e indígenas Ka’apor no Estado amazônico. As agressões, que vêm desde fazendeiros até a própria polícia, fazem parte do cotidiano dessas duas comunidades, que tentam manter seus modos de vida mesmo sem apoio estatal e divulgação midiática frente aos problemas que enfrentam. Nayara Khaly, coordenadora da coalizão da ONU Antirracismo, foi a escolhida para mediar a sessão.

Realidade oculta

Siobhán Wills já pesquisava sobre os efeitos negativos da atuação da ONU em nome da paz antes mesmo de visitar o Haiti. Ao Jornal da USP, porém, ela conta que a ida ao país centro-americano foi reveladora para ela nesse sentido. “Tudo o que era publicado pela ONU se referia a essa operação como muito bem-sucedida, mas os relatos nas redes sociais e tudo aquilo que escutei quando fui ao Haiti me contaram uma história bem diferente.” Mais do que isso, ela diz ter percebido um “racismo inconsciente” por parte dos soldados da ONU, que recomendavam que ela não fosse ao bairro de Cité Soleil — um dos mais afetados pelas ações das tropas humanitárias e destaque do documentário —, sob alegação de que seria muito perigoso. Mais tarde, ela retornou ao Haiti com McLoughlin, quando o documentário foi gravado.

Cena do filme It Stays With You: Use of Force by UN Peacekeepers in Haiti (2018) — Foto: Divulgação

Sobre a gravação de It Stays With You: Use of Force by UN Peacekeepers in Haiti, o diretor norte-irlandês destacou a importância do uso da estratégia de participatory practice (“prática participativa”), que valoriza o engajamento e o contato. “Estamos falando de pessoas que foram traumatizadas, que perderam tudo, e a única forma de evitar que se sintam traumatizadas novamente é tornar suas histórias públicas de uma maneira que não as faça sentirem-se exploradas ou constrangidas, construindo uma relação e mostrando nosso trabalho a elas. Não queremos só pegar a história de que precisamos e ir embora”, explica. A Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) foi uma missão de paz no território haitiano promovida pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e durou, oficialmente, de 2004 a 2017.

Uma vez que o filme foi finalizado, os diretores fizeram a exibição em diferentes comunidades do Haiti e também em um evento no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Siobhán lamenta, porém, que isso não tenha levado a ações práticas por parte das Nações Unidas. “Eu tenho mensagens da Secretaria de Manutenção da Paz da ONU dizendo que estava ciente do conteúdo que reunimos e que estava levando aquilo a sério e adiante. Mas, quando chegou a hora de termos mudanças de verdade, não aconteceu nada e não tivemos mais resposta.”

Siobhán Wills – Foto: Reprodução/Youtube – Ulster University – Study At Ulster

Mais tarde, ela foi direcionada a buscar ajuda em Nova York, onde recebeu apoio apenas nos bastidores. “Fui a Nova York várias vezes e as pessoas da ONU com quem conversei foram supercompreensivas, mas só em uma mesa de bar, longe das ações institucionais.” Diante do sentimento de frustração, McLoughlin conta que ele e Siobhán fizeram uma série de gravações com relatos fortes vindos do Haiti, os quais foram enviados à ONU — novamente, sem resposta. “Nós esperávamos ao menos um reconhecimento oficial por parte de uma organização que causou tanta violência e estragos em nome da paz.”

Os diretores ainda tentaram retornar ao Haiti uma última vez, mas não conseguiram devido às inseguranças crescentes no país. Isso ocorreu em meio às campanhas para as eleições presidenciais do Brasil, em 2018, vencidas por Jair Bolsonaro (à época, no PSL). Bolsonaro tinha como um de seus apoiadores — e posteriormente ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) — o general Augusto Heleno, mencionado por Siobhán ao relembrar os abusos de força ocorridos no Haiti. Heleno comandou a Minustah em uma das operações mais agressivas que lá ocorreram, em 2005, na região de Cité Soleil. “Não houve investigações concretas por parte da ONU, mas sabe-se que em torno de 60 pessoas foram mortas naquela operação, incluindo crianças. E o general estava dando entrevistas na imprensa brasileira sobre como incorporar o que foi aplicado no Haiti às favelas brasileiras. Aquilo foi chocante para mim.”

Impedidos de voltar à América Central, os professores vieram para o Brasil, onde se disseram impressionados com a violência policial nas favelas do Rio de Janeiro. “No Haiti, os confrontos já tinham passado. No Rio, eles seguiam ocorrendo. Mesmo assim, nós nos sentíamos seguros, mas só porque fomos alertados sobre as zonas de conflito”, conta Siobhán, que afirma ser “impossível ignorar o elemento do racismo do tipo de violência que ocorria lá”. Também no Rio, os diretores aplicaram a ideia da participatory practice, e dizem ter criado uma relação com a comunidade que lhes permitiu gravar o documentário — no que a jornalista Juliana Resende teve um papel importante. Não foi possível, porém, convencer todo mundo. “Tem gente que não topa participar, pelos mais diversos motivos. Pode ser por ser muito traumático, pelo risco de acusar a polícia e o Estado de violência em frente às câmeras. Por isso é importante construir essa confiança”, reitera McLoughlin.

McLoughlin conta que, enquanto em Porto Príncipe era permitido gravar em vários momentos do dia e em vários locais, no Rio de Janeiro havia “instruções claras para não filmar nas comunidades devido aos riscos e tensões entre as gangues e a polícia”. Por isso, as filmagens foram feitas com restrições.

Cahal McLoughlin – Foto: Reprodução/Youtube – Oxford Law Faculty

O terceiro e último filme, We Fight For This Land: Quilombola and Indigenous Resistance to Ecowar Violence in the Amazon, partiu de uma visita dos diretores a São Luís, no Maranhão, onde conversaram com o advogado especializado em povos e comunidades tradicionais Diogo Cabral, que os alertou para o fato de que as populações quilombola e indígena Ka’apor da região vinham sofrendo violência, sem que houvesse a devida cobertura a respeito. “Havia um perigo constante para as comunidades, muitas pessoas eram presas e agredidas sem motivo e tinham suas casas queimadas”, relata Siobhán. McLoughlin explica como funcionou a gravação diante das ameaças sofridas pelas comunidades: “Uma vez que você está dentro das comunidades, é seguro. E nós gravamos tranquilamente até que aparecesse um fazendeiro, porque o fazendeiro poderia ser muito agressivo”.

A visita ao Maranhão rendeu um outro documentário, ainda em produção, que vai tratar do rap e das produções musicais da região.

Cena do filme We Fight For This Land: Quilombola and Indigenous Resistance to Ecowar Violence in the Amazon (2023) — Foto: Divulgação

Gravações on-line e participação das pessoas

Durante o período da pandemia de covid-19, houve encontros virtuais promovidos pela ONU diante da emergência de pautas sociais como o racismo e a violência policial — devido ao assassinato de George Floyd pela Polícia dos Estados Unidos. Os diretores participaram de alguns desses encontros e organizaram alguns outros, com a participação de entrevistados nos documentários. A gravação de alguns desses encontros está disponível neste link.

Sobre a importância de dar voz a esses participantes, McLoughlin é enfático: “Essas pessoas estão isoladas não apenas geograficamente, mas também politicamente, e precisam que suas histórias sejam contadas. Um dos participantes me disse que se sentia maior, mais relevante, graças à entrevista. Porque é isso, essas pessoas sempre são criminalizadas, minorizadas. Todo mundo fala para elas que elas são o problema”.

Siobhán completa, alertando para a importância de se discutir a saúde mental das comunidades afetadas pela violência e pelo descumprimento dos direitos humanos. “Quando se fala em violência policial, foca-se muito na criminalidade, e pouco nas pessoas. Temos 172 membros no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e mais 193 na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, onde está claro que existe um direito à saúde física e mental. E isso vai muito além de dar suporte para quem perdeu um parente. Trata-se de um trauma para a vida, e nada está sendo feito para melhorar a situação e proteger essas crianças”, diz.

A professora Gislene Santos – Foto: Arquivo pessoal

A intermediação entre os diretores norte-irlandeses e o Centro MariAntonia foi possível graças à atuação da professora Gislene Aparecida Santos, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, que também coordena a Clínica de Direitos Humanos das Mulheres da USP e o Grupo de Pesquisa das Periferias do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.

A mostra de documentários dos diretores Cahal McLoughlin e Siobhán Wills fica em cartaz entre os dias 27 e 29 de maio, de segunda a quarta-feira, com sessões às 16 horas, no Centro MariAntonia da USP, localizado na Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, região central de São Paulo, próximo às estações Higienópolis-Mackenzie e Santa Cecília do Metrô. Entrada grátis. Mais informações estão disponíveis no site do Centro MariAntonia e pelo telefone (11) 3123-5202.

* Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.