O Brasil precisa de legislação atualizada para a proteção do seu patrimônio histórico e cultural

Outros desafios, como oferecer incentivos econômicos para preservar a identidade cultural, também precisam ser incrementados, segundo especialistas

 Publicado: 26/06/2024     Atualizado: 27/06/2024 as 8:19
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A Chácara do Visconde de Tremembé, em Taubaté – Foto: Themium – Wikipedia– CC0

 

O tombamento de bens materiais e imateriais é uma forma essencial de preservar as riquezas, memórias e histórias de um país. Quando um bem é tombado, ele recebe proteção integral do poder público, garantindo que não possa ser destruído ou alterado de maneira que comprometa suas características originais.

No Brasil, qualquer pessoa física ou jurídica tem o direito de pedir o tombamento de um patrimônio que considere relevante para a cultura local ou nacional. Esse processo deve seguir parâmetros definidos em leis que foram baseadas no Decreto-Lei 25, criado por Getúlio Vargas em 1937, que regula os processos de tombamento em âmbito federal, estadual e municipal. “O problema é que, hoje, a legislação sobre tombamentos está desatualizada”, observa o professor Thiago Marrara, professor de Direito Administrativo e Urbanístico da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP. O professor diz, ainda, que a legislação praticamente não foi aprimorada desde o período Vargas. “Essas leis poderiam ser aprimoradas para incluir aspectos de novas tecnologias. Poderiam, por exemplo, tratar de regras de mapeamento digital dos bens históricos.”

No âmbito federal, existe o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que fica responsável pelos processos de tombamento. No Estado de São Paulo, essa função é desempenhada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, o Condephaat, e, em nível municipal, existem órgãos específicos, como o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural, o Compaq, em Ribeirão Preto.

O professor Marrara sugere que a legislação seja atualizada para se compatibilizar com o Estatuto da Cidade, criado em 2001. “Até hoje não houve essa adaptação da lei de tombamento ao Estatuto da Cidade, inclusive porque o Estatuto tem inúmeros instrumentos destinados à proteção do patrimônio cultural, mas ainda são muito desconhecidos pelos agentes públicos e municipalidades e não foram incorporados pela legislação”, afirma.

Thiago Marrara – Foto: Reprodução/LinkedIn

Uma das ferramentas destinadas à proteção do patrimônio cultural do Estatuto da Cidade é a transferência do direito de construir. “Para que um indivíduo mantenha um casarão histórico, o município pode negociar com ele a possibilidade de transferir o direito de construção, referente àquele terreno, para outra localidade.” Ou seja, se o proprietário se comprometer a manter o casarão histórico sem realizar novas construções no terreno, ele pode obter autorização para usar o potencial de construção que teria nesse terreno em um outro local da cidade.

Segundo Marrara, o Brasil possui 5.570 municípios e 60% têm menos de 20 mil habitantes, com administrações públicas reduzidas e precárias, sem equipes técnicas ou normas regulamentares para implementar efetivamente a legislação de proteção ao patrimônio histórico. “Os Estados e os munícipios precisam regulamentar alguns aspectos, sobretudo os processos administrativos do tombamento. Percebe-se que o processo não é conduzido corretamente e, portanto, não se observam garantias como a defesa do proprietário ou o processo não avança na velocidade necessária”, observa Marrara.

Outro problema apontado pelo professor é a dificuldade que os municípios enfrentam para promover a utilização desse patrimônio. Para isso, Marrara sugere associar políticas de produção do patrimônio histórico com políticas de desenvolvimento turístico. “Harmonizar a política de tombamento ao turismo ajudaria a valorizar o patrimônio histórico, tornando-o um atrativo turístico e, ao mesmo tempo, promoveria o desenvolvimento econômico local. Isso resolve o problema dos municípios que, muitas vezes, não sabem como utilizar seu patrimônio de forma produtiva.”

Ouça no player abaixo entrevista do professor Thiago Marrara para a Rádio USP.

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Desafios

Para a preservação do patrimônio histórico, outro desafio que se coloca, além da atualização da legislação, é analisar a relevância de um bem material ou imaterial a ponto de ele ser tombado para preservação. Esse processo demanda uma reflexão sobre o aspecto da identidade cultural local ou nacional, segundo a professora Silvia Maria do Espírito Santo, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP e especialista em Museologia. “As identidades não são fixas, elas se adaptam a contextos culturais, políticos e principalmente econômicos, o que pode ameaçar a continuidade e a integridade dessas identidades.”  

Nesse sentido, Silvia menciona como base a teoria pragmática da transformação das identidades, tese autoral que se baseia em questões ideológicas e na visão de mundo que substitui o velho pelo novo de maneira muito rápida. Ou seja, a teoria enfatiza a adaptação e a constante evolução das identidades culturais, que são influenciadas pelos contextos ideológicos e pela rápida troca de tradições antigas por novas práticas e valores, tudo isso moldado pelas crenças e ideias predominantes na sociedade.

Silvia Maria do Espírito Santo – Foto: Lattes

“O desprezo à nossa cultura e memória das coisas se caracteriza, antes de tudo, por uma pragmática da destruição. Essa forma de pensar é muito utilizada para caracterizar o adjetivo modernizar, envolve procedimentos que adotam a solução fácil”, afirma a especialista. Mas, para a professora, a preservação da identidade cultural de um povo pode ser alcançada através da conservação do patrimônio histórico que incorpora valores estéticos, éticos e artísticos de uma sociedade. 

Segundo a professora, um dos principais desafios para a preservação dos bens culturais são as leis que protegem os patrimônios tombados. Silvia analisa a importância de uma legislação eficaz, que possa ser cumprida com o envolvimento da população e a vigilância das comunidades. 

Ouça no player abaixo a entrevista com a professora Silvia Maria do Espírito Santo à Rádio USP

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Direitos e deveres dos proprietários

A legislação também define diretrizes para o uso do bem tombado pelo seu proprietário. Mas, segundo a pós-doutoranda em Análise de Políticas Públicas no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa, os recursos e incentivos governamentais existentes não encorajam a preservação dos bens tombados. “É fundamental garantir que esses proprietários tenham condições não apenas para a manutenção do seu imóvel, mas também para gerar trabalho e renda a partir desse imóvel”, enfatiza Lilian.

Para isso, a especialista define que o primeiro passo para a proteção dos patrimônios históricos é pensar na viabilidade econômica. Ela explica: “Quando um bem privado é tombado, o dono tem restrições para alteração das características originais, mas isso não interfere em seu direito de vender ou alugar o imóvel”. 

Em outros termos, a especialista destaca que a viabilidade econômica fica garantida, desde que preservadas as características do imóvel. “No entanto, a pressão do setor imobiliário é um dos principais desafios para a proteção dos bens tombados”, ressalta Lilian. Ela aponta que a valorização dessas áreas leva à pressão para não preservar os imóveis e implementar a verticalização, o que dificulta a conservação.

Outro desafio é conseguir financiamento para a restauração dos imóveis, além do seguro e da mão de obra qualificada. “É essencial promover incentivos fiscais e programas de apoio financeiro, de bancos estatais ou parceiros privados, além de investir em capacitação profissional”, conclui.

Ouça no player abaixo a entrevista da doutoranda Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa à Rádio USP

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*Estagiária sob supervisão de Ferraz Junior e Rose Talamone


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