A fascinante jornada musical de Bach: uma jornada pelos prelúdios-corais sacros

Por Sérgio Carvalho, pianista do Coral da USP

 Publicado: 21/06/2024
Sérgio Carvalho – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Nesta terceira parte, continuamos a comentar alguns aspectos de Das Orgelbüchlein (O Pequeno Livro de Órgão), composto durante o período de Weimar, aproximadamente em 1715.

A coleção está organizada de acordo com o ano litúrgico. Nesta ordem, temos, do BWV 599 ao BWV 602, quatro prelúdios-corais para o Advento; do BWV 603 ao BWV 615, 13 prelúdios-corais para o Natal e Ano Novo; do BWV 616 ao BWV 630, 15 prelúdios-corais para a Semana Santa e Páscoa; e do BWV 631 ao BWV 644, 14 prelúdios-corais para outros eventos do ano litúrgico, como o Pentecostes (BWV 631), e para temas do catecismo, como a oração do Pai-Nosso (BWV 636). Assim, o total de peças chega a 46, sendo que o manuscrito permaneceu inacabado pois há espaços em branco com títulos preparados para mais dezenas de peças.

A maior parte da coleção consiste em melodias corais, apresentadas de forma simples, sem introduções ou interlúdios. A melodia aparece na voz de soprano, amparada por um contraponto de três vozes, duas na mão esquerda e uma na pedaleira. Há sempre um padrão de ritmo, o que faz com que cada prelúdio-coral se assemelhe com as variações de uma Partita coral. Como exemplos, Jesu, meine Freude BWV 610 (Jesus, minha alegria), Wir Christenleut (Nós cristãos) BWV 612 e Alle Menschen müssen sterben BWV 643 (Todos os homens devem morrer).

A melodia coral aparece também em forma ornamentada, como por exemplo em Das alte Jahr vergangen ist BWV 614 (O ano velho já passou), escrito em 12 compassos, com um cromatismo intenso que remete às dificuldades transcendidas durante os 12 meses;  O Mensch, bewein’ dein’ Sünde gross BWV 622 (Ó homem, chora teu grande pecado), o mais extenso dos prelúdios corais ornamentados na coleção, de extrema dramaticidade; e Ich ruf’ zu dir, Herr Jesu Christ BWV 639 (Eu clamo a ti, Senhor Jesus Cristo), aliás presente na trilha sonora de Solaris, do cineasta russo A. Tarkóvski.

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Outra forma de tratamento contrapontístico presente em nove dos 46 prelúdios-corais d’O Pequeno Livro de Órgão é o cânone coral, ou seja, quando há uma imitação estrita do tema, não necessariamente com as mesmas notas, ou intervalos originais. Em O Lamm Gottes, unschuldig BWV 618 (Ó, inocente Cordeiro de Deus), escrito a 4 vozes, a imitação está em intervalo de quinta entre o baixo e o contralto. Em Christe, du Lamm Gottes BWV 619 (Tu, Cristo, Cordeiro de Deus), escrito a cinco vozes, a imitação está em intervalo de décima segunda, entre o barítono e o soprano. Em Erschienen ist der herrliche Tag BWV 629 (O dia glorioso apareceu), escrito a quatro vozes, a imitação está em intervalo de oitava entre o soprano e o baixo.

Um dos prelúdios-corais canônicos é escrito em duas versões, Liebster Jesu, wir sind hier BWV 634 e BWV 635 (Querido Jesus, aqui estamos), em que a imitação está em intervalo de quinta, entre o soprano e o contralto, portanto, sendo tocada com a mão direita.

A peça mais longa de todas é Christ ist erstanden BWV 627 (Cristo ressuscitou), pois apresenta os três versos do hino em três movimentos separados, como uma Partita coral em miniatura.

O Pequeno Livro de Órgão é uma obra surpreendente, tanto na análise como na audição. O caráter arcaico dos hinos, ligado aos antigos “modos gregos”, ou escalas medievais, se combina com as tendências modernas da linguagem tonal, do modo maior e menor.

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Isto causa no ouvinte uma sensação de passado mesclado com futuro, como, por exemplo, quando há uma utilização de cromatismo extremo, como em Christus, der uns selig macht BWV 620 (Cristo, que nos salva), um prelúdio-coral que tem um cânone em oitava entre o soprano e o baixo; ou em Durch Adams Fall ist ganz verderbt BWV 637 (Desde a queda de Adão tudo se corrompeu), em que a linha do baixo faz saltos de sétimas maiores, menores e diminutas que soam… desconcertantes.

Na próxima parte abordaremos o período de Köthen e Leipzig.

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