Precisamos de uma sociedade – e de um jornalismo – informados sobre trauma

Por Daniela Osvald Ramos, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 Publicado: 22/05/2024

Nas últimas semanas, acompanhamos atônitos o desenrolar das chuvas e enchentes que ainda não passaram no Rio Grande do Sul.

Eu, como tantas outras pessoas que saíram do seu Estado natal em busca de trabalho e oportunidades, e que tenho familiares em São Leopoldo, uma das cidades mais atingidas pela maior catástrofe de emergência climática até agora no Brasil, fruto não da natureza, mas do descaso humano com o meio ambiente, não consigo desligar do noticiário nem esquecer do que está acontecendo por lá por quase nenhum momento. Por uma sincronicidade, uma semana antes da catástrofe iniciei um curso com a psicóloga Ediane Ribeiro sobre Trauma Informed Care, ou “cuidado informado sobre trauma”.

O cuidado informado sobre trauma é uma área nova no Brasil, da qual Ediane é uma das pioneiras. Trata-se de uma abordagem multidisciplinar que conjuga áreas como Neurociência, Psicologia e Neurobiologia interpessoal. Não é preciso ir muito longe para entendermos que vivemos em uma sociedade que, para além das histórias individuais de cada um, muitas vezes promove oportunidades de traumatização, seja por perpetuar desigualdades estruturais, racismo estrutural, machismo estrutural, como também manter vulnerabilidades estruturais para muitos em benefício do lucro de poucos. A mesma sociedade que às vezes até premia comportamentos que geram traumatização, como o burnout (quem nunca?), um trauma de longa exposição a uma alta curva de estresse sem alívio periódico com o objetivo de manter uma alta produtividade durante um longo período de tempo, às custas da saúde.

O colapso de um meio ambiente altamente prejudicado pelo ser humano e sistematicamente negligenciado pelo poder público no Rio Grande do Sul deve ser entendido como um trauma de choque, que acontece rápido demais. O fator tempo é crucial para entender que um trauma é algo que acontece a uma sociedade ou a um indivíduo de maneira cedo demais, rápida demais, ou durante um tempo prolongado. As pessoas que perderam tudo na catástrofe perderam rápido demais; e entre estas pessoas, estão também os jornalistas locais que cobrem a catástrofe que, ao mesmo tempo em que possivelmente tiveram perdas, continuam trabalhando cobrindo as perdas de um extenso número de pessoas.

Mesmo que não tenham perdido nada e que seus lares e familiares estejam seguros, estão testemunhando durante um longo período de tempo situações de profunda tristeza, impotência e violências físicas e simbólicas contra seres humanos e animais. É uma dupla exposição que necessita de uma abordagem informada sobre trauma tanto do ponto de vista da cobertura jornalística, como o básico, que é nunca perguntar ou pedir para uma pessoa que vivencia um trauma em curso contar detalhes sobre o que está sentindo ou do que passou, pois isso pode levar a uma retraumatização, como do ponto de vista de testemunha e ou vítima da catástrofe que se desenrola. Sobre jornalismo informado sobre trauma, há manuais que orientam sobre como fazer a cobertura, como os recursos de segurança física e psicológica reunidos pela associação de cultura de segurança ACOS Alliance (Culture Of Safety), o guia Tragedies & Journalists do Dart Center for Trauma and Journalism e, mais focado no tema atual, o guia de cobertura de enchentes do Comitê de Proteção a Jornalistas, este último em português, entre outros. A Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo (SBPJOR) publicou sete diretrizes “para informar de forma ética, assumindo uma postura sensível e ao mesmo tempo crítica”, como bem definiu Moreno Osório, da newsletter Farol Jornalismo, onde vi a informação:

1. Compreender o desastre sob o viés da crise climática
2. Tratar o ocorrido, sim, como uma questão política e social urgente
3. Prezar por uma apuração precisa
4. Divulgar corretamente dados e números
5. Entender que se trata de um evento traumático
6. Lembrar-se dos direitos de crianças e adolescentes
7. Evitar o sensacionalismo ou a espetacularização

Este é um dos lados da dupla exposição para jornalistas locais. A outra face é cuidar da própria experiência, seja como testemunha dos fatos, o que pode levar à “fadiga por compaixão”, ou trauma vicário ou, ainda, “lesão moral”, como à sua condição de potencial vítima da tragédia. Em ambos os casos há um recurso importante neste momento, que é conhecer e gerenciar a sua curva de estresse.

A curva de estresse basicamente significa que há uma fase de estresse “ótima”, na qual podemos ser altamente produtivos, já que sem uma ação estressora no nosso sistema não saímos da inatividade. No entanto, manter essa fase durante um período prolongado, sem escape e sem descanso, tende a levar para uma zona de exaustão. A próxima fase é o estresse extremo ou burnout, quando não há mais recursos neurofisiológicos, emocionais e mentais para que o indivíduo continue a insistir na sobrecarga do sistema, e quando podem surgir os sintomas de ansiedade, pensamentos intrusivos, raiva, abuso de substâncias, e o colapso ou congelamento do corpo que tem uma função bastante nobre nesse cenário: fazer a pessoa parar para que sobreviva.

Muitas vezes não é possível fazer este gerenciamento por várias razões, o que pode levar a uma traumatização e ou adoecimentos. Mas, se há condições e necessidade de realizar este gerenciamento porque é preciso acompanhar as notícias e continuar a produzi-las, é útil aprender a identificar sua curva de estresse e utilizar técnicas de autorregulação emocional para aliviar seu sistema periodicamente. Respiração 4x4x4 (respirar contando até 4, segurar contando até 4 e expirar contando até 4), prestar atenção nos seus pontos de apoio: pés no chão, assento da cadeira, atenção no momento presente, conexão com algum objeto ou som ou gosto como tomar um chá ou café, no ambiente que transmita segurança, são possibilidades na hora de ter que lidar com um estresse extremo.

Também manter o básico, o que pode ser muito sofisticado e desafiador num momento estressor, como ter horas de repouso e sono, descansar, fazer algo que gosta, se exercitar, se alimentar bem, espairecer, manter um ritual de descompressão diário, se possível. Para jornalistas locais, que não irão embora e conviverão permanentemente com os prejuízos e a lembrança do evento, este aprendizado é essencial.

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