“Rubens foi um grande filósofo e um grande poeta, um autêntico virtuose da palavra”

Essa afirmação é do também filósofo e poeta Eliakim Ferreira Oliveira, em homenagem ao falecimento de Rubens Rodrigues Torres Filho

 14/12/2023 - Publicado há 7 meses
Professores da USP prestam homenagem ao poeta e filósofo Rubens Rodrigues Torres Filho (1942-2023) – Foto: Divulgação FFLCH/USP


Rubens Rodrigues Torres Filho (1942-2023),
poeta e filósofo, recebe homenagem dos professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde lecionou por quase 30 anos. “Aos 81 anos de idade morre Rubens Rodrigues Torres Filho, o grande professor de Filosofia da FFCLH, talvez ao ver de muitos, genial”, nas palavras da professora Maria Lúcia Cacciola, do Departamento de Filosofia da USP, em nota da Faculdade, que decretou três dias de luto por sua morte.

Como escreveu a escritora e filósofa Marilena Chauí, “Rubens, filósofo de primeira grandeza e poeta genial, meu colega de graduação, pós-graduação e magistério. Sentiremos sua falta, mas sua obra acompanhará na fieira dos tempos colegas, alunos e amigos”. Para Eliakim Ferreira Oliveira, mestre em filosofia pela USP, morreu o grande filósofo e poeta, autêntico virtuose da palavra Rubens Rodrigues Torres Filho, como afirmou em artigo publicado no site A Terra é Redonda, no qual lança luz não sobre a filosofia do autor, “leitura rigorosa e fecunda da filosofia alemã dos séculos 18 e 19”, mas sobre o “Rubens poeta, infelizmente pouco lido pela crítica literária”. 

Natural de Botucatu, São Paulo, Rubens Filho formou-se em Filosofia pela USP em 1962, onde concluiu seu doutorado (1967) e lecionou no curso de História da Filosofia Moderna e Filosofia Clássica Alemã da USP (1965-1994). Autor de mais de 20 livros de poesia ao longo de sua carreira literária, Rubens Filho publicou seu primeiro título, Investigação do Olhar, em 1963, e ganhou, em 1981, o Prêmio Jabuti por sua obra O vôo circunflexo. Traduziu textos clássicos de filosofia de Fichte, Kant, Schelling e Nietzsche para a coleção Os Pensadores (Ed. Abril/Nova Cultural), além de textos de Walter Benjamin e Novalis. Publicou os livros de ensaios O Espírito e a Letra; Ensaios de Filosofia Ilustrada; Dogmatismo e Antidogmatismo: Kant na Sala de Aula e a tese O Espírito e a Letra: A Crítica da Imaginação Pura em Fichte; sua obra poética, de tendências contemporâneas, inclui os livros A Letra Descalça (1985), Figura (1987), Poros (1989), Retrovar (1993) e Novolume (1997), segundo dados da Enciclopédia Itaú Cultural.  

Homenagens

“Não sei se se poderia dizer especialista no sentido vulgar da palavra, mas como os que leram sua obra e conviveram com ele, percebia-se nesta figura inesquecível e em suas palavras o brilho e a genialidade da filosofia. Não dava para se enganar, ele trazia em si a força da palavra e da linguagem. Filosofia na veia e veia humorística insuperável. Estudioso e mestre de Fichte, cujo livro O espírito e a letra é magistral; poeta, professor sem vícios burocráticos, sua inteligência e aptidão para o saber dominavam com graça e habilidade seus afazeres”, afirma a professora Maria Lúcia Cacciola, do Departamento de Filosofia da USP.

Como destaca Maria Lúcia: “Poeta, e dos bons, nos trazia mais e mais palavras com seu estofo de verdades”. “Tive a sorte de ser sua orientanda, coisa de que nunca me esqueço. Tudo que aprendi filosoficamente e cotidianamente (porque não), foi com ele, desde a primeira aula inaugural até a fazer marcha ré sem derrubar paredes da entrada da casa da Rua Camiranga, onde ele morava numa vila poética e despretensiosa. Lá, além de mil assuntos filosóficos ou não, conversávamos sobre o meu mestrado e doutorado e encontrávamos pessoas queridas, que não sei mais onde andam. Ele dava muitos cursos, sobretudo sobre filosofia alemã, que lia e relia para nós con amore apesar do rigor do métier impedir, às vezes, o poupar as ironias e a inevitável retomada dos textos que tinham sido meio amarfanhados na exposição dos candidatos”.

Para Maria Lúcia, Rubens não ensinava filosofia, ele apresentava a filosofia diante de nós, como presença obrigatória. “Suas aulas magnas se davam quando lhe aprouvesse e esperávamos por vezes uma a duas horas para seu início. Claro que esse “tempo perdido” valia a pena e preparava para a reflexão, mesmo talvez, à nossa revelia. Esperávamos pela palavra exata e pela pontuação precisa do pensamento. Aliás, foi a isso que sempre associei a palavra ‘pensamento’ e precisão no ensino”, lembra a professora, acrescentando que “muito terá que ser dito do Rubens, além dessas impressões de uma ‘desorientanda’, como ele gostava de me chamar com fino humor”. E conclui: “Esperemos por livros e artigos sobre Rubens e pela sua presença constante junto aos estudantes mais novos, não só daqui, mas do mundo todo (…)  e que essa nota pretenda mostrar apenas algo do que vimos nele”.

Na sequência: seu primeiro livro publicado, a obra vencedora do Prêmio Jabuti e um de seus principais ensaios – Foto: Divulgação


Sobre sua trajetória

“Quando Rubens se tornou aluno do curso de graduação de Filosofia em meados da década de 1960, cursava direito no Mackenzie. Teve sua destinação alterada quando descobriu uma nova vocação assistindo a uma aula inaugural do jovem sociólogo Fernando Henrique Cardoso, na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na rua Maria Antônia, em São Paulo. Em 1967, defendeu um mestrado sobre A finitude do eu na primeira filosofia de Fichte. Em 1972, após um longo estágio na França, veio a tese O espírito e a letra: A crítica da imaginação pura em Fichte, publicada como livro em 1975. O próprio Rubens nunca teve em alta conta o seu mestrado, que ele considerava um trabalho imaturo (a leitura dessas páginas faria corar muitos estudantes mais pretensiosos que vieram depois). Quanto ao doutorado, estava perfeitamente ciente, sem nenhuma falsa modéstia, de que se tratava de um trabalho extraordinário”, conta o professor Pedro Paulo Pimenta, também do Departamento de Filosofia da USP, no texto publicado na revista Discurso.

O professor continua comentando a trajetória do poeta: “Começando em meados da década de 70 e indo até meados da década de 90, escreveu ensaios que desenvolvem suas pesquisas anteriores e abrem caminhos para novas, estimulantes. Foram parcialmente reunidos em Ensaios de filosofia ilustrada (1987; 2ª edição aumentada, 2004). Adepto da disciplina acadêmica da História da Filosofia, elevou-a a níveis de rigor poucas vezes vistos no Brasil. Aplicou sua destreza no manejo das línguas (com destaque para o alemão, o francês e o português) não somente em benefício de seus estudos, mas também em traduções esmeradas, que permanecem como referências da arte. Verteu para o português, na coleção Os Pensadores e Alhures, textos de Adorno, Benjamin, Kant, Fichte, Nietzsche, Novalis e Schelling, entre outros”.

E “além de ‘professor de filosofia’ (como gostava de dizer), Rubens foi poeta, e dos bons”, como afirma Pimenta. “Estreou na cena em 1963 com Investigação do olhar. Em 1981, foi premiado com o Jabuti em poesia pelo volume O voo circunflexo (mantinha a estatueta à vista, na mesa de centro da sala de estar). Reuniu sua obra poética (incluindo um punhado de traduções de autores como Hölderlin, Rimbaud e Schiller) em Novolume, publicado em 1997 pela editora Iluminuras, à qual se associou desde a década anterior como diretor da coleção Pólen, na qual até hoje são publicadas traduções comentadas de textos filosóficos”, informa. 

Como professor, segundo Pimenta, “os que foram seus alunos haverão de se lembrar da facilidade com que extraía dos textos os significados mais inesperados, de sua ironia fina, não raro associada a certa mordacidade, e da maneira generosa com que compartilhava achados preciosos, que eram seus. Os que privaram de sua amizade não esquecerão da sedutora urbanidade que permeava o seu trato e do fascínio exercido por uma figura de envergadura intelectual que não cabia nos limites do mundo acadêmico”. 

Fora dos limites

E ele era mesmo fora dos limites, como conta Marcio Sattin, na mesma revista Discurso: “O ritual era simples. A cada 15 dias, uma garrafa de uísque à mesa, dois copos, vários cinzeiros. Eu sentava e lia trechos de uma tradução em andamento. Ele ouvia, corrigia, eu anotava, protestava às vezes, ele contra-argumentava e a solução dele era sempre melhor que a minha. Semanas se passavam, a tradução terminava e ele me entregava um outro texto, uma outra tarefa. Mesma dinâmica. Durante os anos finais da minha graduação e mesmo início da pós, ele me “adotou” para uma espécie de iniciação científica (que não existia ainda) caseira, informal, num sobrado de vila perto da Rua Oscar Freire – nas palavras de um amigo dele, também tradutor, ele morava ‘numa cidade do interior a um passo de distância de Manhattan’”.

Sattin lembra ainda de outro ritual, igualmente simples, em sala de aula: “Seus cursos começavam quase sempre com um seminário, dado por ele, sobre um trecho do texto que seria lido ao longo do semestre. Era um ‘É assim que se faz’, o mais elegante que já vi. Nas semanas seguintes, os alunos se esfalfavam, se contorciam, tartamudeavam e demais verbos assemelhados para apresentar seus respectivos seminários. Ao final de cada exposição, ele pigarreava, fazia um comentário mais genérico, depois dizia algo como ‘Tem uma coisa aqui, no começo do texto, um verbo, que merece um comentário mais detido’. A seguir, dava novamente o mesmo seminário feito pelo aluno ou aluna e mostrava aspectos que ninguém havia percebido, talvez nem mesmo o autor clássico das linhas analisadas”.

A cada aula, portanto, segundo Sattin, “tínhamos demonstrações reiteradas e deslumbrantes de leitura e interpretação de texto, feitas com uma minúcia e um rigor que jamais encontrei superados – uma atividade dificílima, que ele resumia numa fórmula falsamente simples: ‘uma experiência de texto’. Quando alguém genial nos deixa, sentimos ainda mais nossa pequenez. Rubens Rodrigues Torres Filho, nosso maior tradutor, nosso melhor leitor, nosso melhor intérprete, nossa junção única de filósofo brilhante e poeta finíssimo, era isso: um gênio”.   


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