Projeto arquitetônico na USP mostra lições de Vilanova Artigas para a cidade

Legado do professor e arquiteto pulsa no Salão Caramelo, coração da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, entre professores e estudantes; acervo doado à USP está disponível para todos

 Publicado: 10/07/2024     Atualizado: 17/07/2024 as 8:12

Texto: Leila Kiyomura

Prédio da FAU: considerado um dos principais representantes do Modernismo arquitetônico no Brasil - Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Quando perguntavam sobre o desenho, o projeto e construção do Caramelo, salão que é o coração da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, o professor e arquiteto Vilanova Artigas dizia: “Quem der um grito dentro do prédio sentirá a responsabilidade de haver interferido em todo o ambiente. Aí o indivíduo se instrui, se urbaniza, ganha espírito de equipe”. 

Essa lição de que a cidade deve pulsar dentro do prédio é uma das tantas que Artigas deixa para os estudantes, pesquisadores, professores e todos que transitam pelas rampas do Caramelo. Um lugar que possibilita olhar para todos os espaços e ouvir todos os sons ao mesmo tempo.

O professor defendia: “Não existe arquitetura no papel”.  Mas qual seria a fonte de pesquisa que o levou a criar uma arquitetura inusitada para recepcionar, acolher e interagir com os futuros arquitetos e a cidade? Como nasceu o projeto Caramelo? É essa e outras respostas que um grupo de estudantes da FAU foi buscar, há 40 anos, em um encontro com Artigas.

Quem lembra dessa passagem é Myrna de Arruda Nascimento, professora da FAU. Uma história que ela fez questão de contar, no último dia 19 de junho, quando o Instituto Virgínia e Vilanova Artigas chancelou a doação efetiva do acervo do arquiteto para a biblioteca da FAU.

Vista do Salão Caramelo no Edifício Vilanova Artigas, na FAU – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Essa conversa da então estudante Myrna e de seu grupo de amigos que sonhavam em ter a sabedoria e criatividade do professor foi gravada em videocassete. Uma fita que também foi doada por esses estudantes para o acervo da biblioteca.

“Sábado, 16 de junho de 1984. Cursando o 4º ano da FAU, eu e meu grupo de colegas – Carlos José Dantas Dias, Cynthia Satie Yendo, Leda Cristina Bresciani e José Arthur Fajardo – empenhados em obter material para desenvolver um trabalho para a disciplina Estética do Projeto, entrevistamos o professor João Batista Vilanova Artigas em sua casa.

A gravação em fita cassete, cuja cópia guardei durante estes 40 anos, foi por mim transcrita em fevereiro de 1992 e doada para o acervo da Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, no ano em que o projeto desta mesma faculdade celebrava 30 anos. Nossa conversa informal, um ‘bate-papo’ nas palavras do renomado mestre, deveria ser usada apenas no âmbito acadêmico e, portanto, não foi até hoje veiculada em nenhuma mídia…

Quando perguntamos sobre ‘as influências estéticas que marcaram sua obra’, Artigas mostrou uma estante atrás de si com livros dos mais expressivos escritores, em diversas línguas. E afirmou: ‘O que eu leio são poetas de todas as épocas…'”

Myrna de Arruda Nascimento, professora da FAU - Foto: Acervo/MCB

Artigas mostrou uma estante atrás de si com livros dos mais expressivos escritores, em diversas línguas. E afirmou: 'O que eu leio são poetas de todas as épocas…'"

Croquis dos espaços da FAU feitos pelo arquiteto Vilanova Artigas - Fotos: Acervo/FAU

A estudante Myrna tornou-se professora da FAU desde 2009. “Naquela época, sem celular, e hipnotizados pela fala do nosso entrevistado, sequer conferimos quem eram os poetas lidos, porque só o fato de ele os ter citado como inspiração estética já nos surpreendeu e sensibilizou profundamente”, conta. “Há que se lembrar que costumávamos ler poesia nos intervalos do almoço, entre os dois turnos do período integral da FAU, daí a resposta ter caído como uma profecia do mestre. Hoje em dia, com celular em punho, certamente teríamos tirado uma foto e registrado aquele momento.”

A entrevista traçou o caminho da estudante. “Esta conversa foi referência para a minha dissertação de mestrado A tecitura da rede – Arquitetura como inter-linguagens que apresentei, em 1997, sob a orientação da professora Lucrécia D’Aléssio Ferrara”, relata Myrna. “O que mais me impressionou na ocasião, além da generosidade das respostas, praticamente uma aula sobre arquitetura e ser arquiteto, e da sinceridade e espontaneidade das ideias compartilhadas, foram afirmações e ‘segredos’ contados como que ‘entre amigos’ e sua defesa exacerbada do humanismo intrínseco na nossa atividade futura.”

A professora Myrna de Arruda Nascimento continua destacando a entrevista que completa 40 anos e faz questão de compartilhar as lições de Artigas. “Sabe, é a síntese entre os dois caminhos que realmente faz a sua posição humanística”, afirmava o mestre.

Nessa hora é o teu lado Apolo que julga aquilo, e do qual só se tem uma saída: é ir buscar tudo de novo, botar o barro no chão e, a partir desta síntese, retomar a sua produção…"

“Eu tratei disso porque comecei a minha vida de arquiteto como um jovem organicista ligado ao Frank Lloyd Wright; depois tive, com muito prazer, mais tarde, há pouco tempo atrás, a noção e a convicção de que esta ida de Dionísio para Apolo, do organicismo para o racionalismo, é o caminho normal que a evolução de um jovem pode ter. Antes você começa a sentir a vida, as dificuldades das coisas, a natureza dos próprios materiais, a dificuldade de juntá-los e fazer deles uma harmonia entre o que é interno e o que é exterior. Você organiza o teu espaço internamente de alguma maneira, que te parece que funcionalmente ele é perfeito. Mas você monta e vê do lado de fora… E não é a expressão artística que você desejaria. E nesse conflito entre o organicismo do funcional e o apolíneo do resultado artístico, é a alma do arquiteto que fica tratada como se fosse um troço que entra no forno, sai do forno, volta, queima e desqueima etc… Mas, foi só você que escolheu… Nessa hora é o teu lado Apolo que julga aquilo, e do qual só se tem uma saída: é ir buscar tudo de novo, botar o barro no chão e, a partir desta síntese, retomar a sua produção. Sabe? Isso é até a própria dignidade do arquiteto; é a tua autocrítica. É o teu modo de ser…”

Vilanova Artigas em aula na FAU USP - Foto: Reprodução / Vilanova Artigas: o arquiteto e a luz / Olé Produções

“Vilanova Artigas planejava além da arquitetura. Em seus projetos, priorizava o humano, a interação do ser, o diálogo, a solidariedade, a cultura… E no horizonte enxergava, como um arquiteto/poeta, uma cidade além do visível”, observou Júlio Katinsky nas diversas entrevistas concedidas ao Jornal da USP e artigos nas revistas da FAU. “Convivi com Artigas por 40 anos. Quando fui seu aluno, em 1953, ele proibia que o chamasse de senhor. Preferia que todos o chamassem pelo nome ou por você. Uma atitude que correspondia a sua visão de mundo.” Katinsky destacou uma de suas frases que definia as metas do edifício da FAU, projetado, em 1960, por João Baptista Vilanova Artigas com a colaboração do arquiteto Carlos Cascaldi, também seu aluno. O edifício foi inaugurado em 1969. 

O prédio acrisola os santos ideais de então: pensei-o como a espacialização da democracia, em espaços dignos, sem portas de entrada, porque o queria como um templo onde todas as atividades são lícitas”

Sobre a influência dos poetas que Artigas lia integrando arte e arquitetura, o professor Katinsky tem uma célebre frase que mostra os múltiplos caminhos que Artigas projetou: “A FAU forma fotógrafos, pintores, gravuristas, cenógrafos, atores, escritores. E arquitetos também…”

Este é o primeiro de dois textos que abordam o acervo do arquiteto Vilanova Artigas, que teve a sua doação chancelada para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP


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