Cenas do momento em que o menino David Gabriel passou a ouvir com a alta tecnologia auditiva - Fotos: Divisão de Saúde Auditiva do HRAC-USP

Em hospital da USP, tecnologia ajuda o pequeno David a descobrir os sons

Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais é o primeiro no País a oferecer aparelho auditivo de alta tecnologia para os dois ouvidos na rede pública

27/10/2020

Tiago Rodella, do HRAC

Assim como o Davi do Velho Testamento – que enfrentou o guerreiro Golias, o pequeno David Gabriel Vicente de Souza, de apenas dois anos, também já derrotou “gigantes”. Depois de lutar pela vida em seus primeiros meses, a mais nova batalha vencida foi ouvir. Ele nasceu com perda auditiva severa decorrente de malformações nos dois ouvidos e, no dia 16 de outubro, esteve no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC) da USP para receber uma tecnologia que permite a bebês e crianças ouvirem melhor, já que ainda não podem passar por cirurgia para prótese auditiva implantável.

É difícil não se emocionar com a alegria de David e a de sua mãe no momento em que, pela primeira vez, ele começa a desbravar o mundo dos sons. “O David Gabriel praticamente não escutava, não reagia quando o chamávamos. E, quando era um barulho muito alto, ele ficava perdido, não sabia de onde vinha o som. Vê-lo ouvindo bem, dançando e se alegrando com música, é um alívio e uma felicidade muito grandes. Agora, estamos na expectativa dele desenvolver melhor a fala”, comemora a mãe, Rosangela Borges, 32, dona de casa.

O HRAC fica em Bauru, no interior de São Paulo. Ele é o primeiro serviço no Brasil a oferecer, pela rede pública, a chamada banda elástica (softband) com processadores de áudio para os dois ouvidos, segundo a fonoaudióloga Tyuana Sandim Silveira Sassi, chefe técnica da Divisão de Saúde Auditiva da instituição.

Ela explica que a reabilitação de pessoas com deficiência auditiva é realizada rotineiramente por meio da adaptação de aparelhos de amplificação sonora individual (AASI). Entretanto, em pacientes com deficiência auditiva decorrente de malformações de orelha, a adaptação dos dispositivos é inviável.

“Como alternativa terapêutica para esses indivíduos no Sistema Único de Saúde (SUS), havia a oferta do AASI acoplado a um vibrador ósseo inserido em um arco para o paciente ouvir por meio da condução óssea, mas que, geralmente, causava desconforto devido à pressão necessária para a transmissão do som”, conta a fonoaudióloga.

Confira no vídeo a reação de David Gabriel ao ouvir e a mãe Rosangela no momento da colocação da banda elástica com processador de áudio, juntamente com as fonoaudiólogas do hospital da USP, em Bauru

Vídeo: Divisão de Saúde Auditiva do HRAC-USP

Atualmente, o hospital possui as próteses auditivas ancoradas no osso, mas a profissional do HRAC destaca que, em crianças menores de cinco anos, ainda não é possível realizar a cirurgia para implantação dessas próteses. “Conforme critério estabelecido em Portaria do Ministério da Saúde, é indicada a adaptação do processador de áudio posicionado por meio da banda elástica, a qual permite estimulação auditiva por via óssea sem causar desconforto.”

Além de David, outra criança também recebeu a tecnologia no HRAC em outubro. De acordo com a fonoaudióloga, os resultados foram bem satisfatórios. “Os pacientes apresentaram localização e compreensão da fala bilateralmente, assim como a percepção da mudança de melodia e entonação na presença da fala cantada.”

“Como hospital de ensino da USP, buscamos sempre desenvolver e oferecer os melhores tratamentos, tecnologias e inovações em nossa rotina assistencial. Esta é uma marca do HRAC. É uma satisfação indescritível ver a ciência, a expertise de profissionais altamente qualificados e também as políticas públicas e esforços de gestão beneficiando diretamente a saúde e qualidade de vida dos nossos pacientes”, assinala o professor Carlos Ferreira dos Santos, superintendente do HRAC e diretor da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP.

O professor Luiz Fernando Manzoni Lourençone, diretor clínico do HRAC e professor do curso de Medicina da FOB, ressalta a importância da reabilitação integral dos pacientes. “O HRAC-USP sempre priorizou um tratamento completo e, felizmente, temos conseguido avançar nas diversas frentes necessárias para a reabilitação global de crianças e adultos com tantas e diferentes necessidades, tanto nos aspectos estéticos quanto funcionais, como alimentação, respiração, audição e fala.”

Oferta pelo SUS

A banda elástica usada por David passou a integrar a rotina assistencial da Divisão de Saúde Auditiva do HRAC em outubro deste ano pelo SUS. A Portaria nº 4.421 do Ministério da Saúde, de 28/12/2018, habilitou o hospital da USP como Serviço de Atenção Especializada às Pessoas com Deficiência Auditiva.

Essa habilitação permite a realização de procedimentos de média e alta complexidade, incluindo não somente a concessão de implante coclear como também de prótese auditiva ancorada no osso, uni ou bilateralmente, além da manutenção de acessórios e substituição dos processadores externos.

Segundo a fonoaudióloga responsável Tyuana Sassi, há licitação em andamento para aquisição de 20 processadores de áudio para serem adaptados com banda elástica bilateralmente, atendendo dez pacientes. “A previsão, inicialmente, é de um paciente adaptado por mês”, informa.

Muito além da audição

Ouvir foi a vitória mais recente de David, no entanto, ele já travou inúmeros outros combates, inclusive pela vida. O pequeno nasceu com alterações nos braços e pernas. A chamada síndrome de Treacher Collins e sequência de Pierre Robin são condições que podem apresentar comprometimento dos ossos da face, mandíbula pequena, orelhas malformadas ou ausentes, olhos inclinados, fissura no palato (céu da boca), micrognatia (queixo pequeno) e glossoptose (queda da língua para trás).

“Essas malformações craniofaciais comprometem, além da estética, funções vitais como a respiração e a alimentação, que, se não tratadas no momento e de maneira adequada, podem trazer consequências graves aos pacientes”, explica o cirurgião craniofacial Cristiano Tonello, chefe técnico do Departamento Hospitalar do HRAC e professor do curso de Medicina da FOB.

A notícia da malformação impactou a família de David, que chegou a ouvir de alguns médicos que, se ele sobrevivesse, não iria andar nem falar. Assim que David nasceu na maternidade, a mãe e o pai, Sidnei Vicente de Souza, 28, músico, conseguiram vê-lo por alguns segundos. Ele já seguiu para a UTI de um outro hospital infantil e o reencontro com a mãe foi apenas três dias depois, após ela se recuperar de complicações do parto. Com 26 dias, o bebê foi transferido para a UTI pediátrica do hospital da USP, em Bauru, considerado centro de excelência nacional e internacional em suas áreas de atuação.

Foto: HRAC
Planejamento da cirurgia da micrognatia e aos 4 meses, com distrator mandibular - Foto: HRAC e Arquivo pessoal

“Recebemos o David Gabriel transferido com indicação de traqueostomia (abertura cirúrgica no pescoço para permitir a respiração] e gastrostomia [abertura na região do estômago para fixação de sonda alimentar), em função de grave micrognatia e desconforto respiratório. Ao invés disso, fizemos uma distração mandibular com 40 dias de vida. Realizamos planejamento virtual da cirurgia e impressão 3D de guias cirúrgicos customizados. Obtivemos avanço de 17 milímetros da mandíbula, com ganho de peso e melhora completa do desconforto respiratório da criança”, detalha o cirurgião Cristiano Tonello. 

Os procedimentos também contaram com a colaboração dos professores Fernando Melhem Elias, da disciplina de Cirurgia Bucomaxilofacial da Faculdade de Odontologia da USP, em São Paulo, e Nivaldo Alonso, chefe técnico da Seção de Cirurgia Craniofacial do HRAC e professor da disciplina de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo.

Rosângela relembra que só retornou para casa com o filho quando ele estava perto de completar seus três meses de vida. “Ele ainda usou o distrator (aparelho mecânico para o alongamento da mandíbula) até os cinco meses e sonda nasogástrica para alimentação até os oito meses”, relata Rosangela, que vive em Joinville, interior de Santa Catarina, com o marido e suas outras duas filhas, Mayara Caroline Borges, 15, e Larissa Ivanir Mauli, 9.

David Gabriel com o pai, Sidnei, e a mãe, Rosangela, no aniversário de 1 ano. Foto: Arquivo pessoal

“Sei que estamos só no começo, temos um longo caminho a seguir ainda, mas a vida do David Gabriel se transformou completamente. Ele tinha dificuldade para respirar, se alimentar, escutar e, hoje, é outra criança, que procura se virar, como qualquer outra. Ele quer sentar na mesa para comer com a gente, sozinho. Ele anda, brinca. Quando o pai se apresenta, ele quer subir no palco, pegar o microfone, fazer aquela bagunça. Só tenho a agradecer ao doutor Tonello e à toda a equipe do Centrinho por salvar a vida do meu filho”, destaca Rosângela.

Rádio USP

Ouça a entrevista no Jornal da USP no ar com Luiz Fernando Manzoni Lourençone, diretor clínico do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais e professor do curso de medicina da Faculdade de Odontologia ambos de Bauru.

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Tecnologias e indicações

Veja a seguir os principais tipos de dispositivos auditivos ofertados na rotina clínica do HRAC e as diferenças entre eles

Aparelho de amplificação sonora individual (AASI)

Aparelho que amplifica e ajusta os sons que ouvimos, tanto da fala como ruídos do ambiente. Indicado para perdas auditivas desde grau leve a profundo.

Implante coclear (IC)

Dispositivo eletrônico que estimula diretamente o nervo auditivo por meio de pequenos eletrodos inseridos cirurgicamente dentro da cóclea, substituindo parcialmente as funções desta parte do ouvido interno. Indicado para perdas auditivas severa ou profunda, em que não há benefício com AASI.

Sistema de Frequência Modulada Pessoal (Sistema FM)

Acessório utilizado por usuários de AASI, implante coclear e outras próteses auditivas implantáveis que melhora a compreensão da fala em ambientes ruidosos, como sala de aula.

Prótese auditiva ancorada no osso (PAAO)

Dispositivo cirurgicamente implantável que transmite as ondas sonoras através do osso craniano diretamente para o ouvido interno, contornando a orelha externa e média. Contempla pacientes com perda auditiva condutiva e mista que não se beneficiam com AASI por motivos anatômicos ou médicos (como malformação de orelha ou otites médias crônicas).

Banda elástica com processador de áudio (softband):

Faixa elástica usada ao redor da cabeça, com processador de áudio externo da PAAO fixado. Indicada para crianças menores de cinco anos, enquanto não é possível realizar a cirurgia para implantação dessa prótese.

As indicações são realizadas após criteriosa avaliação e diagnóstico de cada caso por equipe médica e interdisciplinar. Além disso, o processo de reabilitação com cada um dos dispositivos também envolve acompanhamento específico com equipe formada por diversos profissionais de saúde, como médicos, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais, entre outros.

Fotos: Tiago Rodella, HRAC-USP

Histórico de pioneirismo

Instituição pública mantida com recursos da USP, do SUS e de convênios, o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais é pioneiro em suas áreas de atuação e referência mundial no tratamento e pesquisa das anomalias craniofaciais congênitas, síndromes associadas e deficiências auditivas.

Após sua fundação em 1967 e o foco inicial nas fissuras labiopalatinas e malformações craniofaciais, em 1985, ocorreu um marco importante: o início dos atendimentos na área de saúde auditiva, com o diagnóstico e concessão de aparelhos de amplificação sonora individual (AASI).

Em 1990, a equipe do hospital realizou a primeira cirurgia de implante coclear multicanal no Brasil, com o médico otologista Orozimbo Alves Costa Filho, hoje, professor sênior da FOB. O Programa de Implante Coclear do HRAC está completando 30 anos em 2020, como o maior serviço do País em número de implantes exclusivamente pelo SUS, com mais de 2.000 cirurgias realizadas e 1.500 pacientes já implantados. 

Ainda na década de 1990, o médico Orozimbo Costa, em parceria com o professor sueco Per-Ingvar Brånemark – precursor dos estudos da osseointegração – realizou as primeiras cirurgias com próteses auditivas ancoradas no osso do HRAC, voltadas a pacientes com malformação de orelha externa e/ou média.

Na busca contínua de tecnologias, soluções e inovações em práticas clínicas e cirúrgicas para o tratamento das deficiências auditivas e suas diversas condições, em 2012, teve início no hospital da USP estudo com as próteses auditivas de orelha média, sob a coordenação do professor Rubens Vuono de Brito Neto, chefe técnico da Seção de Otorrinolaringologia do HRAC e professor da FOB e Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). 

A partir de 2014, ainda por meio de projeto de pesquisa, o HRAC passou a ofertar, gradativamente, as próteses auditivas ancoradas no osso, as quais passaram a ser disponibilizadas via SUS no início de 2019. Agora em 2020, também pelo SUS, o hospital iniciou a oferta da banda elástica com processador de áudio bilateral.

Reconhecido como hospital de ensino pelos Ministérios da Saúde e da Educação, o hospital da USP é também um importante núcleo de geração e difusão do conhecimento e inovações, com cursos de pós-graduação stricto sensu, lato sensu e de extensão. Nesses 53 anos de atividades, a instituição registra mais de 120.000 pacientes já atendidos (sendo 53.000 ativos), de todo o Brasil, e já formou cerca de 1.600 mestres, doutores e especialistas. Site: www.hrac.usp.br.

Com assistência disponibilizada exclusivamente via SUS, o acesso de novos pacientes no HRAC é por meio da Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde (Cross) da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP), a partir de avaliação inicial em Unidade Básica de Saúde.