O Ensino Médio é centro da disputa na educação brasileira

Para Carmen Moraes, apesar do atual sistema ser problemático, o novo formato não deve solucionar essas questões

 14/10/2024 - Publicado há 3 meses
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A imagem mostra estudantes sentados em cadeiras, aparentemente em uma sala de aula ou auditório, com cadernos e canetas nas mãos
No Brasil, como em vários outros países sujeitos a agendas neoliberais, o cerne da disputa na educação pública situa-se principalmente no Ensino Médio – Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil
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A atual reforma do Ensino Médio, instaurada por meio da Lei nº 13.415/2017, estabelece novas diretrizes e bases da educação nacional, isto é, uma nova estrutura curricular aos estudantes do Ensino Médio. Essa mudança foi explicada no episódio anterior do podcast USP e Educação, o qual deu início ao nosso especial sobre o Novo Ensino Médio e discutiu o seu relatório realizado em junho deste ano.

No episódio de hoje (14), abordaremos o histórico da última etapa da educação básica brasileira — dividida em Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. A professora da Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São Paulo Carmen Moraes afirma que historicamente houve diversas propostas para reformar essa etapa da educação, uma vez que pode ser considerada a mais problemática da educação brasileira. 

De acordo com a especialista, a educação no País possui o objetivo de adequar os estudantes às demandas do mercado de trabalho e cita as duas últimas grandes mudanças ocorridas no Ensino Médio: em 1997, realizada no governo de Fernando Henrique Cardoso; e a de 2017, aprovada no governo de Michel Temer. “Ambas fazem parte de agendas governamentais neoliberais e emergem de uma sociedade com níveis decrescentes de proteção social e democracia e buscam controlar e cercear o alongamento da escolarização dos jovens”, explica. De modo geral, quando são apresentadas sugestões de mudanças, existe a justificativa de aprimorar o que está sendo aplicado até o momento — seja por meio de uma leve alteração ou até mesmo por uma transformação total. Nesse sentido, a reforma do Ensino Médio objetiva alterar completamente o sistema educacional que estava vigente desde 1996, quando o “segundo grau” passou a ser chamado oficialmente de “Ensino Médio”.

“Sim, havia e há muitos problemas na educação básica, especialmente no Ensino Médio, que é a etapa mais problemática da organização escolar. No Brasil, como em vários outros países sujeitos a agendas neoliberais, o cerne da disputa na educação pública situa-se principalmente no Ensino Médio”, aponta a professora.  “Dados do Censo escolar, como índices altos de evasão e de reprovação, que são associados a resultados de avaliações internas e externas, são utilizados frequentemente para indicar a realidade de um Ensino Médio falido, incapaz de cumprir metas e de atender às necessidades dos estudantes”, afirma. Por exemplo, de acordo com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, publicado em 2024, o Estado de São Paulo apresentou quedas nos índices entre os anos de 2021 e 2023 – levando em conta toda a rede escolar de Ensino Médio do Estado; mas, destacando apenas a rede pública, os dados apresentados são ainda piores, segundo Carmen.

No entanto, na visão da especialista, a reforma atual não irá combater esses problemas, que residem na ausência de políticas públicas que possam suprir as deficiências das redes escolares; mudanças recorrentes, centradas apenas nos currículos, não resolvem e podem ser, até mesmo, prejudiciais.

Carmen Moraes – Foto: Divulgação/FE USP

Início de um problema ainda atual

A conexão entre as políticas econômicas e educacionais é muito mais antiga do que se imagina. De acordo com Carmen Moraes, “a análise das atribuições sociais historicamente atribuídas ao Ensino Médio indica claramente, em consonância com a divisão capitalista do trabalho, o caráter dual que tem marcado a educação escolar brasileira”. Ela conta que, desde o início, havia a separação entre o Ensino Médio geral, que era voltado para as elites, e os tipos profissionais — destinados à população trabalhadora. “Essa separação se caracteriza pela circunstância, durante vários anos, de o ensino secundário e o ensino profissional técnico — promovido a Ensino Médio — constituírem estruturas paralelas ministradas em redes escolares próprias e sujeitas à jurisdição de diferentes órgãos centrais da administração”, explica a especialista.

Isso era definido pela Lei Orgânica de Ensino de 1942 e, até o ano de 1950, a separação era quase completa, inexistindo a possibilidade de um aluno do curso profissional passar para o ensino secundário. Somente em 1961 a LDB estabeleceu a equivalência entre os cursos técnicos e secundários para ingresso em cursos superiores. Após o golpe militar, em 1965, as relações entre instituições escolares e estruturas sociais inclusivas se tornaram a problemática central do pensamento pedagógico brasileiro. Com o processo crescente de burocratização e racionalização das escolas, a atuação do Estado, dos empresários e educadores se tornava cada vez mais instrumentalizada nas instituições escolares.

Carência de profissionais

Nesse período, foi promulgada a Lei 5692/1971, que introduziu os cursos técnicos profissionais. “De acordo com essa lei, o ensino de todas as escolas de 2° grau seria técnico. A distinção deixa de ser feita entre ramos de ensino para ser realizada entre currículos orientados para habilitações profissionais. O curso técnico industrial foi o modelo implícito na organização do novo Ensino Médio profissionalizante”, explica a professora. O discurso utilizado pelo governo para aplicar esse novo Ensino Médio era o de suprir uma suposta carência de profissionais de nível médio e, simultaneamente, possibilitar que os concluintes pudessem ingressar no mercado de trabalho sem a necessidade de um curso superior. Na visão da docente, a implementação dessa política educacional — que reduz a educação a um simples fator de produção — resultou em consequências dramáticas.

Ela discorre: “Além de não ter provocado mudanças no caráter elitista da educação brasileira, a reforma implicou a descaracterização e maior desqualificação do Ensino Médio. O empobrecimento dos currículos escolares, com a retirada e o esvaziamento dos conteúdos de formação geral, imprescindíveis para a compreensão crítica da realidade social, e o fracasso na realização da pretendida formação técnica só vieram reforçar a dicotomia entre a educação para a elite e a educação para o trabalhador”. Vale ressaltar que, de forma positiva, houve a ampliação do acesso à escola pública durante o período da ditadura militar. Mas, enquanto o número de alunos subia, as instalações físicas não acompanhavam o ritmo. Além disso, houve a diminuição das jornadas escolares, que impactou no empobrecimento dos currículos escolares.

No entanto, a especialista afirma que a política profissionalizante dos governos militares não obteve o sucesso esperado, por conta da falta de recursos financeiros voltados às redes públicas e pela ausência de profissionais qualificados. Assim, a resistência realizada pelos professores e pelos proprietários de escolas privadas conseguiu derrubar a estrutura: “Em 1982, a promulgação da Lei 7044 reorientou a reforma de 11 anos antes, retirando a obrigatoriedade da profissionalização profissional compulsória, que permaneceu como uma das possibilidades ao lado de um currículo exclusivamente propedêutico”, finaliza Carmen Moraes.

*Sob supervisão de Cinderela Caldeira e Paulo Capuzzo


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