A proposta é a implementação de uma moeda comum, a fim de diminuir a dependência do dólar – Foto: Eduardo Aigner/EBC

Moeda comum entre Brasil e Argentina precisa ser pensada a partir dos custos financeiros e políticos

Segundo professores ouvidos nesta matéria, a criação de uma moeda comum poderia alavancar o Brasil à posição de liderança na região, mas antes a estabilidade econômica do bloco precisaria ser atingida

 15/02/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Julia Estanislau

Arte: Simone Gomes

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No início do mês passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em sua primeira viagem internacional, retomou a ideia de criação de uma moeda comum entre Argentina e Brasil. O assunto vem sendo aventado há anos, mas nunca foi levado para frente. Agora, os mandatários dos dois países sul-americanos demonstram uma predisposição em fazer com que a ideia saia do papel.

“É interessante notar que, na primeira visita do Lula à Argentina como presidente, ainda no seu primeiro mandato em 2003, as suas conversações com o então presidente argentino Eduardo Duhalde também tangenciaram a criação de uma moeda comum para as transações comerciais entre os países do Mercosul. Nesse sentido, não é nenhuma novidade a existência desse debate entre os países do bloco”, lembra Tiago Soares Nogara, doutorando em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Tiago Nogara - Foto: Researchgate

A proposta é a implementação de uma moeda comum entre os dois países, a fim de diminuir a dependência do dólar. Assim, seria possível fazer transações comerciais e financeiras em uma unidade monetária não lastreada ao dólar, mas que também não fosse o peso nem o real. Dúvidas surgiram, inclusive, sobre o que exatamente seria essa moeda, tratada por alguns como “euro latino”. Chamada de sur, trata-se de uma moeda digital que não deve substituir as moedas correntes dos países. Diferentemente do euro, cada país pode escolher e implementar por completo, sendo usada por cidadãos e turistas em transações cotidianas, ou apenas utilizá-la no comércio internacional.

Em um artigo de abril de 2022 para a Folha de S. Paulo – meses antes das eleições presidenciais –, Fernando Haddad, atual ministro da Fazenda, e Gabriel Galípolo, secretário-executivo da pasta, explicaram como funcionaria essa moeda comum, não apenas entre Brasil e Argentina, mas para o Mercosul. “Um projeto de integração que fortaleça a América do Sul, aumente o comércio e o investimento combinado é capaz de conformar um bloco econômico com maior relevância na economia global e conferir maior liberdade ao desejo democrático, à definição do destino econômico dos participantes do bloco e à ampliação da soberania monetária”, escreveram.

A ideia de Haddad e Galípolo é de que a moeda seja emitida por um Banco Central Sul-Americano e que a capitalização inicial seja feita pelos países da região, com maior participação no comércio regional. A economia dos países-membros também teria que ser igualada, diz o artigo. Para os dois, o que funcionaria seria um sistema de compensação entre os países, a fim de diminuir as desigualdades entre os países deficitários e superavitários. Citam recursos, mas não especificam de onde sairiam.

Dizem ainda que “o início de um processo de integração monetária na região é capaz de inserir uma nova dinâmica à consolidação do bloco econômico, ao oferecer aos países as vantagens do acesso e gestão compartilhada de uma moeda com maior liquidez, válida para relações com economias que, juntas, representam maior peso no mercado global”.

A dependência do dólar é vista pelo novo governo como uma forma de perda de soberania nacional. Por isso, a criação de um instrumento de coordenação política e econômica do bloco fortaleceria essa soberania e a governança regional. “Nos últimos anos, a questão de buscar uma redução da dependência do dólar tem sido uma realidade para importantes países em desenvolvimento mundo afora”, diz Nogara. 

No final de janeiro, Haddad chegou a dizer que “não estamos defendendo moeda única. Nós [o governo] estamos defendendo uma engenharia que não seja um pagamento em moedas locais, que não funcionou, mas que não chegue ao estágio de uma unificação monetária, como é o caso do euro”. Assim, defende que “um meio de pagamento comum entre os dois países vai fortalecer o comércio exterior na região”.

Engana-se quem acha que esse projeto é apenas defendido pela esquerda. Ainda em 2021, Paulo Guedes, antigo ministro da Economia de Jair Bolsonaro, defendeu a criação de uma moeda única para o Mercosul. Chegou a citar que o Brasil poderia ser a Alemanha do bloco, em uma comparação com a União Europeia.

Mas isso é viável? 

 

Alex Ferreira, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP de Ribeirão Preto, explica que, para estabelecer uma moeda comum entre os países, seriam necessárias algumas características: não haver restrições de mobilidade de fatores como capital e trabalho, simetria do efeito de choques econômicos dentro da área, uma harmonização de indicadores macroeconômicos, responsabilidade fiscal e um mecanismo de compartilhamento de risco. Não adianta um país ser responsável fiscalmente e cuidar da dívida pública se o outro não o faz, por exemplo.

Alex Ferreira - Foto: Arquivo pessoal

 

Ele diz que “o Mercosul praticamente não atende a esses requisitos”. Atualmente, os países do bloco não se encontram em igualdade de condições financeiras: enquanto a inflação no Brasil, no acumulado dos últimos 12 meses, ficou em 5,77%, na Argentina esse cenário parece até ficção: atingiu, no mesmo período, quase 100% de inflação. “A ​​vulnerabilidade externa do país é um problema fundamentalmente doméstico. A Argentina enfrenta problema fiscal crônico, problema de alta inflação, monetização do déficit, um problema de competitividade e falta de reservas”, diz o professor.

Pensar em uma moeda comum seria dar um passo maior que as pernas. Isso poderia afetar a economia brasileira e causar prejuízos. Antes, o país vizinho teria que resolver seu problema de inflação e, pior ainda, de baixa em seus reservatórios de dólar. “Voluntarismo em resolver problemas de financiamento internacional, através da criação de uma moeda comum, num bloco que não atende minimamente às condições de uma área monetária ótima, me parece um subterfúgio que vai provavelmente fomentar problemas de déficit recorrentes com o bloco [Mercosul] no futuro”, complementa. 

Situação do Mercosul

“O Mercosul foi criado a partir do Tratado de Assunção de 1991, que teve como signatários Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Visava a estabelecer um mercado comum entre esses países, com a adoção posterior da tarifa externa comum. O Mercosul buscou se tornar uma união aduaneira e, nos dias de hoje, é reconhecido como uma união aduaneira imperfeita, tendo em vista que ainda não é plena a livre circulação de mercadorias entre os países do bloco”, explica Nogara.

“Na primeira década do século 21, o Mercosul vinha passando por uma crise que era herdada da crise financeira do final da década de 90, que gerou uma série de desconfianças entre Brasil e Argentina”, diz. Desde lá, os problemas do bloco se intensificaram. Maria Antonieta Del Tedesco Lins, professora do Instituto de Relações Internacionais da USP, salienta que, nessa época, logo após a criação do bloco, “entramos em período de impasse do Mercosul e, de certa forma, em um certo marasmo institucional”. 

Diferentemente do Brasil e da Argentina, o Uruguai não se empolgou tanto com a proposta de uma moeda comum.  Atualmente, o país está em processo de negociação bilateral com a China e, do outro lado, com os Estados Unidos. Ele, porém, está agindo sozinho, sem incluir o resto do Mercosul. “É um problema do ponto de vista do bloco, porque, evidentemente, o bloco existe para que todos fechem os acordos conjuntamente”, avalia a professora.

“São muito claras as sinalizações do governo Lacalle Pou de buscar alternativas comerciais por fora do Mercosul, por fora das negociações do bloco”, evidencia Nogara. Isso, segundo ele, faz com que o Uruguai assuma uma postura de mandante dentro do bloco e uma possibilidade de exercer maior poder de barganha sobre o Brasil e a Argentina, ainda mais com as diferenças ideológicas entre os governos. Esse é um exemplo de instabilidade no bloco, marcado por diferenças econômicas e crises humanitárias, como na atual suspensa Venezuela. 

Integração sul-americana

A criação de uma moeda comum tem que levar em consideração todas as diferenças entre os países, mas, principalmente, o fato de que o Mercosul não é tão unido como poderia ser. “Embora os bancos centrais tenham trabalhado muito para construir essa integração e alguns instrumentos institucionais tenham sido criados de fato, a integração acaba sendo muito menor do que ela teria o potencial para ser”, explica Maria Antonieta. 

Maria Antonieta Del Tedesco Lins - Foto: Marcos Santos /USP Imagens

 

A professora ainda diz que a integração entre os dois países (Argentina e Brasil), ou entre os países-membros do Mercosul, tem que ser pensada a partir dos custos. “O que pode compensar esses custos, na verdade, acaba sendo um ganho político de avançar na integração. A Argentina pode se beneficiar, especialmente neste momento, em que ela está numa situação de importante desequilíbrio nas suas contas externas, de escassez de moeda internacional”, diz. Dessa forma, a Argentina pegaria a credibilidade do Brasil que, mesmo não estando nas melhores condições possíveis, ainda está numa posição econômica melhor do que a sua.

 

Além disso, essa integração com o Mercosul pode representar, para o Brasil, uma base a partir da qual o País pode voltar a ter um protagonismo no regionalismo sul-americano. “O Brasil pode se beneficiar dessa posição de liderança, que é algo de que ele abriu mão nos últimos quatro anos. Enfim, perdeu muito e agora o novo governo está tentando construir [essa liderança] em todas as esferas internacionais”, explica Maria Antonieta. 

Essa tendência de buscar uma posição de liderança é traduzida na intenção de criar uma moeda comum. Como explica Nogara, “a criação de uma moeda comum para as negociações comerciais entre os países do Mercosul – no momento uma proposição de viés mais político e simbólico do que prático e operacional –  pelos governos do Brasil da Argentina mais demonstram uma intenção conjunta de revitalização nos mecanismos multilaterais de cooperação regional do que o necessário avanço no sentido do estabelecimento dessa moeda comum”.

Na esteira das notícias veiculadas sobre o assunto, o economista Paul Krugman, vencedor do Prêmio Nobel, criticou a ideia de criação de uma moeda comum. Segundo ele, a ideia é “terrível” e quem a teve “certamente não foi alguém que soubesse alguma coisa sobre economia monetária internacional”. As opiniões foram veiculadas em seu perfil no Twitter. 


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