Internação psiquiátrica compulsória prolongada é prática que não deve ser adotada

A partir de escândalo nos EUA, envolvendo instituições psiquiátricas que “seguravam” pacientes para receberem o seguro saúde, Cláudia Braga comenta como isso levanta questões brasileiras

 16/10/2024 - Publicado há 2 meses
No Brasil também existe registro dessa prática de uso indevido de seguro saúde pelo tempo máximo de internação em clínica psiquiátrica privada – Foto: DC Studio/Freepik
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Conforme revelou reportagem investigativa do The New York Times, instituições psiquiátricas dos EUA levavam os pacientes em internação até o limite do tempo para ganharem o máximo de dinheiro de seus planos de saúde. O objetivo disso era o lucro, sem que o planejamento envolvesse um projeto de cuidado e reabilitação do paciente, obrigando-os a ficar em internação enquanto o plano cobrisse.

Cláudia Pellegrini Braga, da Faculdade de Medicina da USP e do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Políticas Públicas de Saúde Mental do Instituto de Estudos Avançados, comenta a questão e faz paralelos com o Brasil. “Era uma prática que envolvia não liberar as pessoas de um regime de internação fechado enquanto o seguro saúde – inclusive aqueles com convênio com o governo – pagasse pelas diárias de internação.”

Cláudia Pellegrini Braga – Foto:Reprodução/IEA-USP

Entendendo o caso

As pessoas procuravam ajuda, por exemplo, em emergências e urgências de hospitais gerais. Lá, alguns profissionais das redes privadas de internação faziam um lobby para que as pessoas fossem enviadas diretamente para a instituição psiquiátrica, independentemente se aquilo de fato significaria para ela tratamento.

Em alguns Estados, como na Flórida, eram feitas apelações judiciais para segurar por ainda mais tempo os pacientes. “Isso porque lá existe um mecanismo de que 72 horas é o máximo de tempo possível para uma internação involuntária, então essa rede de hospitais psiquiátricos entrava com uma apelação judicial para que a pessoa se mantivesse pelo maior tempo possível dentro do hospital psiquiátrico, apenas para conseguir utilizar durante o maior tempo o seguro saúde”, conta Cláudia.

“Não havia nenhuma intenção de cuidado, a internação basicamente se justificava pelo lucro que poderia ser obtido pelo hospital psiquiátrico”, diz ela. Para piorar, muitas dessas instituições recebiam verba pública dos EUA, fazendo com que parte desses lucros viesse dos impostos. “Isso, do meu ponto de vista, só agrava uma situação que já é grave em si.”

E não só nos EUA…

A médica afirma que no Brasil também existe registro dessa prática de uso indevido de seguro de saúde pelo tempo máximo de internação em clínica psiquiátrica privada. “São hospitais psiquiátricos privados que recebem recursos públicos, como os do Sistema Único de Saúde (SUS), para realizar internações”, explica ela. E isso não é recente: “A história brasileira é feita para obtenção de lucro. Temos muitas histórias de pessoas que ficaram, não meses, mas dez, 20, 30 até 40 anos em um hospital psiquiátrico. Pessoas que foram internadas quando crianças e morreram em hospitais psiquiátricos”, afirma Cláudia Braga.

A partir disso, ela faz uma importante crítica: “Por que, enquanto sociedade, estamos financiando instituições que sabidamente violam direitos e não são fiscalizadas, e subfinanciamos serviços que sabemos que promovem cuidados e direitos, como o SUS?”. Ela defende que é função do Estado priorizar os patrimônios comuns, os quais inclusive atuam com seriedade comprovada, ao invés de dar dinheiro para instituições privadas, algumas das quais com histórico de corrupção.

Comunidades terapêuticas

A discussão reacende o tema sobre as comunidades terapêuticas, um tópico polêmico da área de saúde e de reabilitação brasileira. Segundo a médica, a falta de fiscalização e detalhamento de dados é um dos maiores problemas que envolvem o assunto. Esse vácuo de atenção não só abre espaço para cuidados indevidos, mas também para corrupção e má-fé, como é o caso das instituições dos EUA.

Cláudia menciona dois estudos, um do Ipea, de 2017, e outro de uma coalizão de órgãos, incluindo o Ministério Público, que demonstram que “a regra nessas instituições é a violação de direitos”. Ela complementa: “As pessoas não podem sair, elas têm seus documentos retidos pelo dono da comunidade terapêutica. Muitas vezes elas estão em comunidades terapêuticas longe do seu território, sem recursos, não têm nem como voltar para casa”.


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