Políticas públicas momentâneas na Cracolândia não atingem a raiz dos problemas

Giordano Magri dá, como exemplo, as internações compulsórias que por vários fatores não atingem resultados duradouros

 26/11/2024 - Publicado há 3 meses
Visão da Cracolândia, na qual se veem pessoas envoltas em cobertores ou vestindo apenas bermudas, perambulando pelas ruas da região
O estudo identificou sete formas recorrentes de violência policial, incluindo agressões físicas, verbais e inviabilização do trabalho – Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
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Uma pesquisa conduzida pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da USP trouxe à tona as percepções dos moradores e frequentadores da Cracolândia, no centro de São Paulo, sobre as políticas públicas voltadas para a região. Realizada em 2022, logo após a desocupação da Praça Princesa Isabel, o estudo ouviu 90 pessoas em um momento de grande instabilidade, intensificada pela circulação forçada dos usuários em função de ações do poder público. Giordano Magri, pesquisador do CEM e um dos autores do levantamento, explicou que a pesquisa buscou compreender como os frequentadores interpretam a presença do Estado e suas estratégias de ação na área.

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Os entrevistados, em sua maioria homens negros de 30 a 49 anos, revelaram perfis marcados por vulnerabilidade, mas também por estratégias de sobrevivência. Segundo Magri, quase 70% das pessoas realizam atividades produtivas diariamente para gerar renda, desafiando a visão comum de desorganização completa.

Embora predominem homens, o estudo também incluiu mulheres, pessoas trans e outros perfis que buscam na Cracolândia um lugar de maior liberdade em relação às pressões sociais e familiares enfrentadas em suas origens — algumas pessoas, inclusive, estão lá mesmo sem o uso do crack. “A Cracolândia é, historicamente, um lugar de acolhimento de pessoas que, às vezes, não podem mais ficar no seu território.”

Políticas públicas e repressão

Sobre as políticas de saúde e assistência social, os entrevistados destacaram a internação compulsória como a principal oferta governamental, mas apontaram limitações no modelo. Muitos relataram múltiplas internações — algumas chegando a 30 ou mais — sem resultados duradouros. Entre os principais problemas citados estão a ausência de um suporte efetivo após a internação, a abstinência, a falta de convivência social e as condições adversas nos centros de tratamento. Para muitos, a internação é vista mais como uma pausa temporária nas dificuldades do que como uma solução efetiva.

Outro ponto de destaque foi a relação conflituosa com as forças de segurança. O estudo identificou sete formas recorrentes de violência policial, incluindo agressões físicas, verbais, inviabilização do trabalho, imposição da circulação, prisões forjadas, perseguições e a retirada de bens pessoais. Conforme Magri, essas práticas não apenas intensificam o sofrimento dos moradores, mas também geram impactos negativos na convivência com comerciantes e outros moradores da região central. A repressão policial, muitas vezes, resulta em novas dinâmicas de violência, agravando a instabilidade local.

“O que a gente identificou na pesquisa é que a violência acaba fazendo com que a violência se reproduza. O que a gente vê, muitas vezes, sobretudo relacionado à violência, está muito mais relacionado com o resultado da ação do Estado do que propriamente exige uma ação ainda mais repressiva do Estado”, comenta.

Perfil social

Apesar das adversidades, parte dos entrevistados mantém vínculos familiares e busca formas de reconstrução de suas vidas. Cerca de 50% relatam contato com parentes, ainda que muitas vezes esse relacionamento seja marcado por tensões. Para o pesquisador, esses dados indicam que nem todos os laços sociais estão rompidos, reforçando a necessidade de políticas públicas mais humanizadas e integradas. “A gente sabe que a família acaba sendo um núcleo social que é diretamente afetado pelo uso de substâncias, então isso acaba sendo um dado interessante de ressaltar.”

Giordano Magri destacou que os resultados da pesquisa são um convite à reflexão sobre a efetividade das ações do poder público na Cracolândia. “É preciso diminuir o nível de violência. É importante que a gente tenha múltiplas ofertas de serviço. Então, mais do que entender que a política pública efetiva para lidar com o uso problemático de substâncias passa exclusivamente pela internação, o que eles mostram vai exatamente no sentido contrário, que é importante a gente tornar mais complexas essas ofertas. Incluem moradia, saúde, cuidado e, principalmente, ofertas de trabalho que contem com o apoio da comunidade, para que a própria visão desses usuários possa ser alterada em relação à sociedade e eles possam voltar a ter uma vida mais autônoma e digna”, conclui.


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