Por que Putin resolveu agora oficializar a guerra, convocando 300 mil reservistas e pretextando um referendo nas regiões ilegalmente ocupadas da Ucrânia? Simples: porque fracassou.
As baixas russas nesses 7 meses foram estratosféricas, com milhares de mortos, feridos e principalmente um alto índice de deserção dos soldados enviados para o front, mal equipados e preparados apenas para cometer selvagerias. O fracasso retumbante da operação especial”, como Putin dizia até a semana passada, os erros táticos e logísticos que encalharam suas tropas, a resistência dos países europeus às chantagens sobre o fornecimento de gás, tudo isso somado à pesada ajuda militar da Otan aos ucranianos e a resiliência da população levaram o czar Putin a um fiasco monumental, de humilhação em humilhação. Os russos diziam que seria questão de dias tomar Kiev, mas foram defenestrados rapidamente. Quiseram tomar o norte, e saíram correndo. Hoje só controlam o leste, a região de Donetsk e Luhansk, e partes de Zaporizhzhia e Kherson, onde haverá a farsa do referendo.
Com a formalização da guerra, o que a maioria dos russos deseja mesmo é fugir dela. Há engarrafamentos nas rodovias e não existem mais reservas em voos que saem da Rússia, apesar da alta dos preços. O item mais buscado na web por lá, ontem (22), foi “como fugir da Rússia”. Mais de mil manifestantes foram presos em protestos, em São Petersburgo e Moscou.
A Assembleia Geral da ONU ecoou discursos duros, como os de António Guterres, secretário-geral, e Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia. Por um momento, a ONU trocou os clássicos melindres pela crua descrição das atrocidades russas, e detalhou os crimes de guerra de Putin.
O ministro da defesa russo prometeu que não vai alistar preferencialmente jovens e estudantes presentes nos protestos. Como quase tudo que vem de lá, que se leia o contrário. Os jovens manifestantes já estão sendo convocados para a linha de frente. É a doutrina Lavrov, aplicada durante anos na Síria: a cada promessa do chanceler Lavrov de cessar fogo, se multiplicavam os bombardeios. Quanto à bazófia de Putin sobre apertar o botão nuclear tático (de menor alcance), parece mais um patético blefe para contornar a humilhação sofrida.
O desespero do Kremlin é tal que recorreu de novo ao grupo de extrema-direita Wagner, que temos denunciado em primeira mão há meses, em nossos podcasts. O Wagner é composto de mercenários a serviço de Putin deslocados da Líbia e Síria para a Ucrânia, no início do ataque. A novidade é que agora o Wagner promete anistia a cerca de 1.500 criminosos presos, em troca do recrutamento. A maioria, segundo uma fonte do site Al Jazeera, prefere continuar na prisão.
Houve um ponto de inflexão, sim, que significa sobretudo a admissão da derrota do delírio expansionista russo. É mais provável que a guerra prossiga no mesmo impasse. Haverá uma escalada no banho de sangue, indistintamente ucraniano e russo. O risco nuclear é improvável, mas não impossível, já os próximos passos, ou tombos feios, serão decididos por “um tolo, cheio de som e fúria”, parafraseando outro tirano sanguinário, o Macbeth de Shakespeare.
Conflito e Diálogo
A coluna Conflito e Diálogo, com a professora Marília Fiorillo, vai ao ar quinzenalmente sexta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9 ) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.
.