Historiador Michel Espagne fala na USP sobre “transferência cultural”

Professor da École Normale Supérieure, de Paris, participa da “3ª Semana Franco-Uspiana”, que ocorre entre 16 e 20 de setembro no Instituto de Estudos Avançados

 05/09/2024 - Publicado há 1 mês

Da Redação

Arte: Joyce Tenório*

O historiador francês Michel Espagne – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Reprodução/École Normale Supérieure – PSL, Reprodução/Freepik e wirestock/Freepik

O historiador e germanista francês Michel Espagne, professor aposentado da École Normale Supérieure (ENS), de Paris, e criador da noção de “transferência cultural”, fará duas conferências durante a 3ª Semana Franco-Uspiana, que acontece entre 16 e 20 de setembro no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. No dia 16, às 18 horas, Espagne falará sobre Historiografia das Transferências Culturais e a América Latina. No dia 19, às 14 horas, o historiador abordará o tema Transferências Culturais e História do Livro. A coordenação geral do evento é da professora Marisa Midori Deaecto, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e do IEA, e de Nadège Mézié, adida para Ciência e Tecnologia do Consulado Geral da França em São Paulo. A entrada é gratuita. Mais informações sobre o evento estão disponíveis no site do IEA

Leia a seguir entrevista de Michel Espagne concedida à professora Marisa Midori. Na entrevista, o historiador francês fala sobre sua trajetória intelectual e faz um balanço do uso do conceito de transferência cultural para além dos estudos sobre as relações intelectuais e culturais entre a França e a Alemanha, objeto principal de suas reflexões. Além disso, Espagne apresenta algumas referências sobre a recepção de seus trabalhos no Brasil.

Professor Michel Espagne, os pesquisadores brasileiros conhecem bem sua trajetória à frente do prestigioso Labex TransferS (ENS-Collège de France-CNRS), bem como suas publicações sobre as transferências culturais entre a França e a Alemanha. Mas o senhor poderia nos contar um pouco mais sobre a sua formação intelectual?

Espagne – Originário de Bordeaux, entrei na ENS da rue d’Ulm em 1971. Mas parte dos meus estudos também foi realizada na Alemanha (Tübingen, Colônia, Saarbrücken). No início da minha carreira de pesquisador, hesitei entre os estudos germânicos e os estudos gregos. Na verdade, combinei os dois ao fazer meu mestrado sobre Platão em Tübingen, na Alemanha e, em seguida, escrever minha tese sobre dois autores austríacos, Musil e Bloch. Em seguida, ingressei no CNRS com um projeto voltado para a leitura dos manuscritos de Heinrich Heine. Refiro-me a um autor alemão que vivia em Paris e tinha laços estreitos com a França, e que pretendia segurar uma espécie de espelho para decifrar a Alemanha, enquanto, ao mesmo tempo, a história intelectual alemã era escrita como um modelo para os franceses. Esse foi o ponto de partida para a pesquisa sobre as transferências culturais, pesquisa que foi além do trabalho de Heine, mas que inicialmente permaneceu no contexto franco-alemão. Na Alemanha, concentrei-me especialmente na Saxônia e em Leipzig, a capital do livro. Na França, pesquisei a presença alemã na história das ciências humanas e sociais, mas também nos vínculos econômicos, como a aquisição da comercialização de vinhos de Bordeaux por comerciantes alemães a partir do século 18.

O senhor ingressou na prestigiosa ENS, rue d’Ulm, no início da década de 1970, ou seja, no pós-maio de 68, com todas as suas consequências para o debate político e filosófico. Até que ponto essa “atmosfera” influenciou suas escolhas intelectuais?

Espagne  O início da década de 1970 foi marcado pela Guerra Fria, e o autor com o qual trabalhei, Heine, tinha a característica de ser reivindicado por ambas as Alemanhas – a Ocidental, capitalista, e a Oriental, comunista. Karl Marx era interpretado por Louis Althusser e Derrida, ou seja, as principais referências intelectuais em filosofia. Na história, a École des Annales estava em seu momento mais fértil. O contexto da ENS permitia que as disciplinas se cruzassem. Você não era apenas um historiador, filólogo, germanista ou filósofo, mas um pouco de tudo isso, com a fertilização cruzada ajudando a criar novos modelos intelectuais.

O senhor fez duas dissertações de mestrado, uma sobre Maître Eckhart, dirigida por Georges Zink, e outra centrada na questão da tripartição da alma de Platão, dirigida por Jacqueline de Romilly. O jovem normalista hesitou entre os estudos clássicos e os estudos germânicos, ou os dois caminhos se complementavam?

Espagne  Georges Zink nasceu alemão antes de a Alsácia ser devolvida à França em 1918. É difícil esquecer suas palestras sobre poesia alemã medieval e a Canção dos Nibelungos, proferidas com sotaque alsaciano. Quanto à filologia grega, ela me pareceu ser uma construção da Alemanha do século 19. Além dos cursos ministrados por Jacqueline de Romilly, havia o ensino de Jean Bollack, um especialista em Parmênides e Sófocles, entre outras obras, que se propôs a encontrar o significado original dos textos por meio de um estudo de todas as fases de transmissão. A Escola de Lille tem sido uma fonte de inspiração para muitos. A pesquisa sobre transferências culturais também tem como objetivo identificar as camadas antigas de uma cultura, como elas são sobrepostas e as importações que as compõem, forjando novos significados em uma dinâmica de “ressemantização”. Ao mesmo tempo, busca identificar os vetores sociológicos da passagem e do deslocamento do conhecimento: viajantes, tradutores, editores, professores ou até mesmo soldados e sacerdotes.

Mudando de assunto, em que medida a noção de transferências culturais concorreu para um maior entendimento das culturas latino-americanas?

Espagne  Quando a pesquisa sobre as transferências culturais começou a se desenvolver, as obras dedicadas à América Latina foram um forte convite à reflexão. Nathan Wachtel e Carmen Bernand, por exemplo, mostraram há muito tempo como as importações espanholas foram integradas às estruturas intelectuais indo-americanas para criar novas formas; mas, também, como os descendentes ameríndios que queriam explicar as características de sua própria cultura para o público europeu tiveram que se expressar tomando emprestadas figuras de pensamento da antiguidade mediterrânea (Garcilaso). Por outro lado, lembro que o caso de Alexander von Humboldt, no século 19, é particularmente interessante do ponto de vista intelectual. Um alemão escrevendo em francês sobre sua viagem à América Latina descreveu o continente de um ponto de vista geográfico, botânico, zoológico e humano, criando assim os elementos de uma consciência latino-americana que ajudaria a fundar diferentes nações.

Qual é a percepção de um estudioso europeu, particularmente interessado nas transferências culturais, mas também nos amálgamas culturais, sobre a América Latina?

Espagne – A América Latina em geral e o Brasil em particular são mais do que apenas países. É um mundo real, o resultado de uma série de fertilizações cruzadas. Ela tem sido percebida como tal pelo menos desde o século 19 e a exploração está longe de terminar. Além disso, as relações acadêmicas franco-brasileiras tiveram uma época de ouro na década de 1930, e os jovens intelectuais franceses enviados ao Brasil durante seus anos de formação se beneficiaram muito de seus encontros com essa região, sua história e os diferentes grupos humanos que a compunham. Historiadores e antropólogos não são estranhos ao Brasil. Sem dúvida, as lições que aprenderam em sua estada levaram à produção de obras que, por sua vez, tiveram um papel formativo no Brasil, em um mecanismo de ida e volta. As transferências culturais desafiam radicalmente a noção de centro e periferia e não podem ser concebidas como movimentos unidirecionais. Para os jovens pesquisadores da década de 1930, o Brasil foi uma provocação intelectual cuja escala eles só agora perceberam. É muito animador ver que os professores da Universidade de São Paulo, sejam eles especializados na imprensa alófona ou nas grandes figuras da França do século 19, estão seguindo a mesma lógica.

Para retomar a temática que orienta as pesquisas do IRL-CNRS em implantação na USP, a saber, “Mundos em transição”, o que pode mobilizar – e o que mobiliza hoje – o historiador Michel Espagne?

Espagne – O desejo de reviver o modelo das relações franco-brasileiras das décadas de 1930 e 1940 representa uma oportunidade fantástica que deve ser aproveitada. Não apenas porque as explorações realizadas podem ser completadas, mas também porque é difícil imaginar uma cultura tão isolada que não seja afetada por qualquer transferência, e cada cenário de caso permite a extensão de um modelo teórico que pode ser aplicado posteriormente a outros campos. As investigações sobre transferências culturais, que se originaram no contexto franco-alemão, foram estendidas de várias maneiras na Rússia (Academia de Ciências, Universidade de Ciências Humanas de Moscou), que é em grande parte herdeira da ciência alemã e que, por sua vez, foi reformulada. Também foram desenvolvidos programas com a China (Universidade Fudan em Xangai, Academia de Ciências), a qual, quando vista em detalhes, é mais um caldeirão do que um monólito etnocêntrico. O modelo foi aplicado ao Vietnã (Universidade Normal de Hanói), um exemplo de território nascido da reversão de importações feitas em um contexto colonial. O Brasil esteve na origem das reflexões sobre o que são as transferências culturais, que determinam em grande parte sua história. E, agora, a Universidade de São Paulo oferece, junto com o IRL, “Mundos em transição” (o autor faz referência ao International Research Laboratory, instalado pelo CNRS na USP), cujo nome já é um programa e tanto, uma oportunidade fantástica para jovens pesquisadores brasileiros e franceses retomarem a tocha dos pesquisadores das décadas de 1930 e 1940 com mais recursos.

 

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.