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De carruagens a objetos decorativos, reserva técnica do Museu do Ipiranga abriga mais de 400 mil itens
Espaço que abriga acervo que não está em exposição ao público conta com itens de mobiliário, fotografias, documentos, materiais têxteis e objetos decorativos produzidos desde o século 17 até a segunda metade do século 20
A reserva técnica do Museu do ipiranga conta com mais de 400 mil itens de diversos tipos - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Quem visita o Museu do Ipiranga, um dos maiores e mais importantes museus históricos do Brasil, com aproximadamente 14 mil m² de área construída e área expositiva com 49 salas, não imagina que apenas 1% de seu acervo está disponível ao público em 12 exposições permanentes e temporárias oferecidas atualmente. O restante, mais de 400 mil itens, entre objetos, iconografia e documentação textual, do século 17 até meados do século 20, fica na chamada reserva técnica, termo usado para descrever o espaço de trabalho que armazena grande parte do acervo dos museus que não está em exposição.
“As reservas são o pulmão do museu. É por onde os museus recebem o oxigênio para novas pesquisas, novas abordagens e novas exposições”, destaca Paulo César Garcez Marins, historiador, pesquisador e professor, atual diretor do Museu Paulista, que inclui o Museu do Ipiranga e o Museu Republicano de Itu.
A reserva técnica também recebe diferentes profissionais, desde pesquisadores até museólogos e conservadores que trabalham diariamente com as peças desse acervo. “Nossas reservas são abertas a pesquisadores que estudam os conteúdos desse acervo, e por isso, além de um espaço de guarda, são locais de pesquisa – finalidade fundamental de universidades como a USP. É um espaço de acesso à informação sobre o passado”, completa o diretor.
Paulo César Garcez Marins, historiador e diretor do Museu Paulista - Fotos: Divulgação/MP USP
“Quando o museu precisou fechar e passou pela restauração em 2013, retiramos o acervo do prédio e não achamos um único imóvel para abrigar todos os itens; por isso, optamos por dividir o acervo em diferentes imóveis a partir das suas características físicas”, conta Valesca Santini, responsável técnica pela Seção de Documentação e Gestão de Acervo da reserva técnica do Museu do Ipiranga. Na época, esse processo de remanejamento foi realizado durante dez meses e as peças foram distribuídas em quatro imóveis. A reforma foi iniciada em 2019 e com a conclusão, em setembro de 2022, o museu ganhou mais espaço, acessibilidade e novas formas de organização do espaço expositivo.
Um dos objetivos da gestão do museu eleita em junho – que tem Garcez Marins como diretor e a historiadora Maria Aparecida de Menezes Borrego como vice – , é a elaboração do projeto de um centro de pesquisa e ensino da cultura material concebido como um bloco técnico que deve abrigar as reservas técnicas, os laboratórios de conservação, áreas de processamento e catalogação, gabinetes docentes, áreas administrativas e a biblioteca do museu.
A proposta é integrar as diferentes seções e partes que compõem a instituição, além da possibilidade de trazer novamente o acervo da reserva técnica para o mesmo edifício do museu. “É uma mudança fundamental, já que hoje ocupamos imóveis alugados”, comenta o diretor. Valesca complementa: “Quando se tem um prédio planejado e construído, as condições serão melhores, além de possibilitar uma maior flexibilidade e estrutura para recebimento de novas peças e ampliação do acervo”.
Grandes veículos estão armazenados no primeiro andar da reserva técnica de mobiliário do museu - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
De carruagens e porcelanas a documentos históricos
Ampla e diversificada são algumas características que definem a reserva técnica do Museu do Ipiranga. Os itens são distribuídos de acordo com a sua proximidade física, ou seja, pelo tipo de material e também por suas dimensões. Isso porque todo o espaço da reserva é pensado e adaptado – condições de resfriamento, controle de umidade, disposição das peças – em função das características do objeto, sejam elas seu tamanho ou sua composição.
Seguindo esse princípio, um dos imóveis da reserva foi destinado ao mobiliário e aos objetos maiores, como veículos e grandes armários. Em um segundo imóvel, é guardada a coleção de pinturas, no primeiro andar, e os objetos domésticos de porcelana e outros materiais que não sejam muito pesados no segundo pavimento. No terceiro imóvel, há o acervo de têxtil e de plástico, com as indumentárias militares, toalhas e tapetes, além dos brinquedos. No subsolo desse mesmo local, há objetos pesados feitos de pedra como banheiras e cofres. No último, estão armazenados materiais em papel e fotografias.
Diante das necessidades dos materiais, no caso da reserva de mobiliário, por exemplo, existe a necessidade de um espaço com pé-direito alto para armazenar grandes itens, como carruagens e carros de bombeiro, e que não seja extremamente quente. Há também um grande cuidado com a higiene dos materiais, para garantir que não haja proliferação de pragas, como cupins, que podem degradar as peças, considerando que muitos itens são de madeira.
As adaptações do espaço também são feitas de acordo com a possibilidade e necessidade de disposição desses itens na reserva. No caso das pinturas, elas são armazenadas verticalmente, penduradas com suportes específicos que não danificam o material. Já para os móveis, a reserva conta com plataformas metálicas de um ou dois andares com mecanismos de portinholas que garantem a mobilidade das peças e abertura de corredores móveis, para que os pesquisadores e profissionais das reservas possam acessar os itens.
Liteira, tipo de cadeira de transporte utilizada por pessoas ricas ou importantes da sociedade da época - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Ao todo, 15 profissionais atuam de maneira itinerante e contínua no espaço das reservas técnicas – ficando sediados em um dos imóveis da reserva, mas circulando entre os demais de acordo com as demandas de estudo, restauração ou movimentação. Eles se dividem entre a parte da documentação e catalogação; o setor de consulta de pesquisadores e docentes ao acervo; um profissional dedicado exclusivamente a numismática, filatelia e medalhística – dedicado à numerosa coleção do museu de selos, medalhas e moedas; um setor voltado para o desenvolvimento do banco de dados; e um último responsável pela documentação de movimentação.
Uma das peças mais antigas do acervo é um contador Filipino (dos tempos dos reis Felipe, espanhóis e portugueses), do século 16, que era utilizado para guardar objetos de valor e documentos. É um móvel de tradição espanhola folheado a ouro e ornamentado com estrelas de Davi. Já as peças mais recentes datam da metade do século 20.
Museu tem reserva técnica com mobiliário e objetos históricos - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Como funciona a reserva técnica?
Reserva técnica de mobiliário precisa de espaço com pé-direito alto para abrigar grandes objetos - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
“A reserva técnica é um espaço que precisa crescer e ganhar novas coleções para que continuemos nosso trabalho de pesquisar e estudar a sociedade brasileira a partir da cultura material”, destaca o diretor do museu. Ele explica que a ampliação desse acervo se dá principalmente por meio de doações espontâneas. “Depois da reabertura do museu, a sociedade redobrou a confiança de que o Museu do Ipiranga é um lugar importante para receber doações, aumentando significativamente as ofertas”.
Uma equipe do museu é responsável por receber esses contatos externos e solicitar as informações técnicas sobre as peças. Essas informações são encaminhadas para o Conselho do Museu, que é de fato a instância responsável por aceitar ou não as doações, buscando entender se elas dialogam com o acervo e as linhas de pesquisa do museu, além de buscar entender as condições necessárias para abrigar esses itens. Caso haja interesse, inicia-se um projeto de formalização, documentação, catalogação e eventual reparação da doação, e, com a consolidação desses processos, o objeto passa a integrar o acervo do museu.
Valesca Santini atua na seção de documentação e gestão de acervo da reserva técnica- Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Esses objetos armazenados chegam ao público por meio das exposições. Sejam elas permanentes ou temporárias, as exposições do Museu Paulista são guiadas pelas linhas de pesquisa desenvolvidas na instituição: O universo do trabalho; Cotidiano e sociedade; e História do imaginário.
O projeto das exposições, portanto, começa com o trabalho dos profissionais das reservas e dos curadores. Os curadores, associados ao museu ou a outras instituições museológicas, visitam e acessam as reservas e o banco de dados para idealizar as exposições que um dia estarão no museu. Nesse processo, os itens são verificados quanto a seu estado de conservação e manutenção. Antes de expostas, todas as peças selecionadas passam por um processo mais ou menos intenso de higienização e reparação, feito normalmente no próprio espaço das reservas pelos profissionais especializados naquele tipo de material ou obra.
A equipe do Educativo e Acessibilidade também é acionada levando ao público essas peças e suas articulações possíveis, com contextualizações dos itens, legendas e acessibilidade. Os setores de Divulgação e Assessoria também são fundamentais para que a proposta da exposição atraia o público para o museu. “Quando organizamos uma exposição, todas as partes do museu precisam trabalhar juntas, desde a logística de movimentação, documentação e catalogação, curadoria e educativo”, pontua Valesca.
Detalhe de itens do acervo existente na reserva técnica - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Uma excepcional coleção de tipos
Conjunto de peças e ornamentos tipográficos da coleção Tércio Gaudêncio - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Recentemente, o Museu do Ipiranga recebeu a doação de um conjunto de peças e ornamentos tipográficos da coleção Tércio Gaudêncio, dono de uma empresa de encadernação e restaurador de livros raros que ao longo de mais de 35 anos de trabalho adquiriu tipos, florões, molduras, monogramas, ferros de dourar produzidos entre os séculos 16 e 20, sendo a maioria do final do século 19 até meados do século 20. Os itens são de origem europeia (inglesas, francesas, alemãs) e brasileira.
A coleção que está sendo tratada pelo museu reúne 194 gavetas de tipos móveis de diferentes famílias tipográficas, e cerca de 4.000 ornamentos tipográficos. Os tipos – nome dado aos caracteres das letras – e os ornamentos eram utilizados nas prensas mecânicas para impressão de textos.
“Tércio foi incorporando ao seu acervo peças de antigas tipografias predominantemente de São Paulo e outros Estados, que fecharam em virtude da crescente entrada dos meios digitais de impressão”, conta a professora Solange Ferraz de Lima, curadora responsável pela coleção. “A aquisição das peças atendia às demandas de trabalho da empresa de encadernação mas também ao anseio do proprietário em salvaguardar a cultura material do ofício do tipógrafo, em desaparecimento”, complementa.
Atualmente, o Museu Paulista tem feito a catalogação da coleção respeitando sua organização original. Cada uma das gavetas será catalogada informando estilos, famílias e quantidades de peças. A pesquisa sobre a coleção vai adicionar em sua documentação dados sobre a origem, autoria, marcas e materiais dos itens, disponibilizando-os também no catálogo on-line do museu. “A coleção tem um enorme potencial para as pesquisas sobre atividades tipográficas e de encadernação, para a história dos livros e materiais impressos, além de contribuir com metodologias de tratamento físico e documental de coleções com grandes quantidades de itens”, afirma Solange.
Além de Solange, o projeto conta com a participação de Fabio Mariano Cruz Pereira, pós-doutorando associado que pesquisa a coleção com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Trabalham também com a coleção Fernanda Duarte Bruneli e Yukie Camila Ohashi – estagiárias graduandas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP – e Camila Kurianski Freitas Santos, bolsista de iniciação científica orientanda da professora Priscila Lena Faria, também da FAU. A conservação física e a condução dos trabalhos de conservação têm a coordenação de Fabiola Zambrano Figueroa, conservadora do museu.
Gavetas com tipos móveis que têm passado por catalogação no museu - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Em julho de 2024, o museu inaugurou uma exposição em caráter temporário: Sentar, guardar, dormir: Museu da Casa Brasileira e Museu Paulista em diálogo. Ela foi idealizada pela historiadora e vice-diretora Maria Aparecida de Menezes Borrego, pelo historiador e diretor Paulo César Garcez Marins, e pelo arquiteto convidado Giancarlo Latorraca. As 164 peças escolhidas para exposição – entre bancos, sofás, caixas, cômodas, guarda-roupas, redes, esteiras e camas – estabelecem um diálogo entre os acervos do Museu da Casa Brasileira (MCB), com 118 móveis, e do Museu do Ipiranga, com 46. “Conseguimos constituir uma exposição com um conjunto de móveis que contam quase 500 anos de história”, afirma o diretor. Enquanto o Museu Paulista traz peças sobretudo do século 17 ao 20, o Museu da Casa Brasileira colabora com objetos dos séculos 20 e 21.
Exposição foi organizada por tipos de móveis e está instalada no salão de exposições temporárias, localizado no piso Jardim, do Museu - Foto: Hélio Nobre/MP
“O objetivo da exposição foi abordar a transformação ao longo do tempo dos três atos, de sentar, guardar e dormir, como forma de compreender os hábitos, valores e dinâmicas sociais brasileiras, com suas transformações e permanências”, diz Marins. Um exemplo disso é a introdução recente do aspecto do conforto e do relaxamento do corpo: “Nessa exposição fica visível a partir dos móveis que a noção de conforto, no arbítrio de sentar e relaxamento, é algo que vem da segunda metade do século 19 em diante no Brasil”. A exposição ficou em cartaz até o dia 29 de setembro e o lançamento de seu catálogo ocorreu no último dia 28.
O papel dos museus e a Universidade
Reserva técnica recebe visitas de pesquisadores, museólogos e restauradores - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Desde 1963, o Museu do Ipiranga está sob a administração da USP, atendendo às funções de ensino, pesquisa e extensão da Universidade. É o museu público mais antigo de São Paulo, tombado como patrimônio histórico municipal, estadual e federal, tendo um caráter fundamental para a história da cidade e do País.
Atuando diretamente nas reservas, Valesca destaca a múltipla contribuição das reservas: “É um espaço de guarda, de trabalho, documentação e pesquisa; é um dos locais fundamentais e a atividade-fim do museu”. Contribuição essa que, segundo a museologista, também passa pela esfera da conservação. “Considerando a noção de preservação a longuíssimo prazo que adotamos no museu, é a reserva técnica que vai permitir que os objetos sobrevivam por centenas de anos”, comenta.
Pensando na preservação a longo prazo e na democratização do acesso ao público, o Museu Paulista começou a realizar a digitalização e informatização dos seus acervos a partir da década de 1990. Em 2023, a instituição passou a ter uma plataforma on-line, que utiliza o Tainacan, software livre desenvolvido pelo Laboratório de Inteligência de Redes da Universidade de Brasília. “Vir a São Paulo, conhecer o Museu do Ipiranga ou qualquer outro museu pelo mundo é para poucos, mas a virtualização do acervo é para todos. É claro que uma coisa não substitui a outra, mas a digitalização é um instrumento indispensável para a democratização do acesso às coleções e suas informações”, salienta Marins.
Todos os objetos da reserva técnica são identificados com uma espécie de RG vinculado à base de dados do museu - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Além das coleções – organizadas em documentos iconográficos, textuais e tridimensionais –, a plataforma reúne um programa de curadorias digitais. A cada três meses, novas curadorias serão lançadas. Uma das mais recentes é Os indígenas e suas imagens no Museu Paulista, que reúne as representações dos povos indígenas brasileiros em fotografias, desenhos e objetos. A iniciativa convida pesquisadores para propor recortes temáticos ou tipológicos que possam despertar o interesse na consulta ao acervo digital. “Apesar de muitas salas de exposição em São Paulo e no Museu Republicano de Itu, essas salas não dão conta da vastidão das nossas coleções e essa foi uma das possibilidades de aumentar o tratamento curatorial das coleções”, afirma Marins.
Referência no tratamento da história material, o Museu do Ipiranga assume um papel cultural e também social central. “O objeto é um representante dos costumes e da sociedade de um determinado tempo e contexto histórico, político e econômico”, explica Valesca. Marins adiciona: “Os objetos têm biografias longas, por vezes, para estudar reduzimos os objetos a uma determinada história. Com novas peças, estamos expandindo as linhas de pesquisa e cada vez mais os segmentos representados no museu”.
O Museu do Ipiranga está localizado na Rua dos Patriotas, 100, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, e funciona de terça a domingo (incluindo feriados), das 10h às 17h. Para conferir as exposições, os ingressos podem ser adquiridos na plataforma Sympla.
O museu atende a solicitações de pesquisadores das diferentes instituições de ensino para pesquisa presencial nos acervos, empréstimo e consulta na biblioteca via e-mail e mediante agendamento. Para mais informações acesse a página de empréstimos e de solicitação de imagens.
*Estagiária sob supervisão de Thais Helena Santos e Claudia Costa
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