Governo federal corta 87% dos recursos do FNDCT que seriam liberados para a ciência

Ministério da Economia alterou de última hora projeto de lei que descontingenciava verbas do fundo para uso do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e do CNPq. Edital Universal está ameaçado

 08/10/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 14/10/2021 às 23:09
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Arte sobre foto de Marcos Santos/USP Imagens

A ciência brasileira levou mais um duro golpe do governo federal nesta semana. Não satisfeito em vetar, depois adiar a promulgação e, por fim, alterar de forma arbitrária a liberação de recursos contingenciados do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), o governo manobrou mais uma vez para impedir que essas verbas cheguem às mãos daqueles que, por lei, são seus verdadeiros destinatários: os cientistas do Brasil. 

Na quinta-feira, 7 de outubro, o Ministério da Economia enviou à comissão mista de orçamento do Congresso Nacional um ofício pedindo alterações de última hora num projeto de lei (PLN 16/2021) que previa a liberação de R$ 690 milhões em créditos suplementares para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), dos quais 95% (R$ 655,4 milhões) viriam de recursos contingenciados do FNDCT. A expectativa era de que a maior parte desses recursos fosse para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que contava com esse dinheiro para a implementação de uma nova Chamada Universal (edital mais tradicional da ciência brasileira, suspenso desde 2018, por falta de recursos), lançada no fim de agosto. Uma outra parte seria destinada à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), em caráter emergencial, para garantir a produção de radiofármacos e radioisótopos para o tratamento do câncer, que chegou a ser paralisada por 12 dias, no fim de setembro, e corria risco de ser novamente suspensa em outubro, por falta de recursos.

As mudanças solicitadas pelo Ministério da Economia, porém, adulteraram completamente essa distribuição. O novo texto — já aprovado em plenário no Congresso e encaminhado para sanção do presidente Jair Bolsonaro —, destina apenas R$ 89,8 milhões para o MCTI (13% do valor total originalmente previsto) e transfere os outros R$ 600,2 milhões para outros ministérios utilizarem em atividades diversas, como agropecuária, saneamento básico, educação, inclusão digital, esportes, habitação e projetos de infraestrutura. 

E mais: desses R$ 89,8 milhões destinados ao MCTI, apenas R$ 7,2 milhões são para livre investimento da pasta em pesquisa e desenvolvimento científico, enquanto que os outros R$ 82,6 milhões ficam reservados à CNEN (incluindo R$ 63 milhões para a produção de radiofármacos e R$ 18 milhões, para o desenvolvimento de ciência e tecnologia na área nuclear, especificamente). Clique aqui para ver a versão original do projeto de lei; e aqui para ver o parecer do senador Eduardo Gomes, relator do processo, incorporando as mudanças solicitadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Renato Janine Ribeiro – Foto: Reprodução/Vermelho

“Esse governo parece mesmo ser movido pelo espírito do mal”, disse ao Jornal da USP o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Renato Janine Ribeiro, ressaltando que o corte ocorreu no mesmo dia em que o presidente da República vetou a distribuição de absorventes higiênicos para mulheres pobres. Ele classificou a alteração do projeto de lei como um “procedimento quase que sorrateiro” e “mais um ataque” à ciência nacional. “É visível que esse governo não vai dar trégua em favor da ciência”, disse Ribeiro. “Não vamos nos calar diante disso.”

A Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), chegou a fazer um apelo de emergência ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para que ele tentasse reverter a desfiguração do projeto antes da votação em plenário; mas sem sucesso. “Está em questão a sobrevivência da ciência e inovação no país”, escreveu a iniciativa, que representa diversas entidades do setor.

O orçamento do MCTI para este ano foi cortado em 29% em relação a 2020, quando ele já havia sido reduzido em mais de 50% em relação a 2013, segundo um levantamento feito pela economista Fernanda De Negri, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O orçamento do CNPq (que é definido pelo ministério), por sua vez, tem menos de R$ 24 milhões disponíveis para fomento neste ano. Sem a liberação de recursos adicionais do FNDCT, é improvável que a Chamada Universal anunciada em agosto seja integralmente implementada. Do total de R$ 250 milhões previstos no edital, R$ 200 milhões viriam do FNDCT, mediante aprovação do PLN 16. 

O prazo para submissão de propostas ao Universal terminou em 30 de setembro e mobilizou grande parte da comunidade científica. Segundo o CNPq, cerca de oito mil projetos foram submetidos para avaliação. No total, a agência esperava receber R$ 560 milhões do FNDCT até o fim do ano. Além do Universal, os recursos seriam utilizados para bancar o edital de Recursos Humanos em Áreas Estratégicas Pesquisador na Empresa Incubada (RHAE) e para o financiamento dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), programa de elite da ciência na esfera federal — igualmente desidratado de recursos nos últimos anos.

“A ciência brasileira já está na UTI e respirando por aparelhos, por falta de recursos. Acabaram de tirar o respirador da tomada. É assassinato”, indignou-se a pesquisadora Alicia Kowaltowski, professora titular do Instituto de Química da USP.

Estratagema

O físico Luiz Davidovich, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), classificou o ocorrido como “mais uma facada” do Ministério da Economia na ciência nacional. “É mais um estratagema para reduzir os recursos para pesquisa e desenvolvimento”, disse.

Um estratagema que, segundo ele, pode ser considerado ilegal e até mesmo inconstitucional. Primeiro, porque os recursos do FNDCT deveriam ser destinados exclusivamente ao fomento de atividades de ciência, tecnologia e inovação. Segundo, porque o Congresso Nacional aprovou no início deste ano uma Lei Complementar (LC 177/2021) que proíbe o contingenciamento de recursos do FNDCT. O presidente Bolsonaro chegou a vetar o dispositivo, mas o veto foi derrubado pelo Congresso, atendendo a uma demanda premente da comunidade científica nacional. Na sequência, porém, o Ministério da Economia atuou para atrasar a promulgação da nova lei, fazendo com que ela só fosse publicada no Diário Oficial da União após a votação da Lei Orçamentária Anual de 2021, no fim de março — abrindo, assim, uma brecha para contestar a aplicação da LC 177 no orçamento deste ano. Depois disso, o ministério determinou de forma arbitrária — sem passar pelo Conselho Diretor do FNDCT — que 50% do fundo seria utilizado como crédito reembolsável, destinado a empresas, e não como fomento à pesquisa em instituições públicas, como as universidades e os institutos de pesquisa ligados ao próprio MCTI. Liberou esses primeiros 50% para empresas, mas não a outra metade. Por fim, em 5 de outubro, o governo publicou uma nova lei (No. 14.212), alterando as diretrizes para execução do orçamento de 2021 e autorizando a manutenção de recursos do FNDCT em reserva de contingência (em flagrante contradição ao que determina a LC 177).

Luiz Davidovich – Arquivo pessoal

Resultado: cerca de R$ 2 bilhões seguem contingenciados no FNDCT, sem perspectiva de liberação; e a maior parte do que foi liberado até agora como crédito (cerca de R$ 3,65 bilhões) dificilmente será utilizada, pois as condições de empréstimo não são atrativas para as empresas. Os recursos que não forem utilizados até o fim do ano serão recolhidos de volta ao Tesouro. 

“O que eles fizeram é inconstitucional; uma lei ordinária não pode anular uma lei complementar”, avalia Davidovich. O ofício enviado pelo Ministério da Economia à comissão de orçamento dá a entender que o MCTI tem dinheiro sobrando em caixa — o que não é verdade, segundo Davidovich, pois os recursos disponíveis são justamente aqueles reembolsáveis, destinados a crédito; que, como todo mundo sabe, não interessam à indústria. “Estão dando com uma mão para tirar com a outra, porque sabem que esses recursos não serão utilizados e serão recolhidos de novo no fim do ano.” 

 

Astronauta

O ministro Marcos Pontes, do MCTI, falou brevemente sobre o assunto nesta sexta-feira (8/10), durante uma cerimônia de abertura da 1ª Feira Brasileira do Nióbio, realizada no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. “Ontem não foi um dia muito bom com relação a orçamento. Mas a vida da gente é assim; tem um dia bom, um dia ruim”, disse Pontes, na presença do presidente Bolsonaro e outras autoridades do governo. “Tenho certeza de que, com o apoio do presidente Bolsonaro — ele apoia e gosta de ciência —, nós vamos conseguir recuperar o orçamento do MCTI e aumentar esse orçamento”, completou ele, sem mencionar os pesados cortes aplicados pelo próprio governo ao setor nos últimos anos.

Em seu discurso, Pontes defendeu enfaticamente a importância da ciência e tecnologia para o desenvolvimento econômico do País. “Um país que não tem ciência, tecnologia e inovações é um país destinado a ser escravo dos outros que têm”, concluiu ele. Nesse ponto, nenhum cientista discorda.

Texto atualizado às 10h do dia 9, com novas informações e clarificações. 

 


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