Território do Quilombo Família Magalhães - Foto: Daniela Perutti

Povo tradicional conta com característica “amigueira” para resistir em território quilombola

Lançamento da Edusp tem origem em pesquisa de doutorado e revela particularidades do Quilombo Família Magalhães, em Goiás; comunidade originária do território Kalunga aguarda a titulação de suas terras desde 2004

 27/01/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Gustavo Roberto da Silva

Arte: Guilherme Castro

Buscando compreender as comunidades quilombolas contemporâneas que se tornaram reconhecidas pelo Estado, a antropóloga Daniela Perutti desenvolveu o livro Tecer Amizade, Habitar o Deserto: Território e Política no Quilombo Família Magalhães. O livro é resultado de sua tese de doutorado desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Eu queria estudar uma comunidade específica e a sua relação com o Estado. Como se davam essas negociações para o reconhecimento, como se davam os mal-entendidos e todo o processo”, conta a autora, que atualmente é pós-doutoranda em Políticas Públicas no Instituto de Estudos Avançados (IEA), onde também integra o GT USP de Combate à Fome.

A motivação de Daniela surgiu quando ela passou a integrar a Comissão Pró-Índio de São Paulo, trabalhando no monitoramento das políticas públicas para comunidades quilombolas em 2004, imediatamente após uma medida do governo federal que regulamentou o procedimento para a titulação de terras quilombolas. Além de regulamentar, o Decreto 4887/03 incumbiu a execução da tarefa ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Daniela Perutti - Foto: Arquivo pessoal

Em 1988, a Assembleia Nacional Constituinte sintetizou, em sua lei maior, o reconhecimento de uma parte da população de brasileiros afrodescendentes. Em um país que escravizou seu povo negro por mais de 350 anos, os quilombolas conquistavam o direito à titulação de suas propriedades em exatos 100 anos após a abolição da escravatura. “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, dispõe a Constituição Federal, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

A antropóloga conta que buscava monitorar como o Incra iria lidar com a nova demanda, já que a medida prevê a titulação da terra quilombola em caráter coletivo, a partir da ideia de terra de uso comum. “Percebi naquele momento que havia muita dificuldade dos técnicos do Incra em compreender e lidar com essa nova figura social que o Estado passava a reconhecer”, diz Daniela. Segundo a pesquisadora, a dificuldade dos técnicos se relacionava a visões preestabelecidas a respeito da ideia de quilombo. 

“Essa ideia de que os quilombos contemporâneos têm que ser oriundos de pessoas escravizadas, que fugiram e se mantiveram no mesmo lugar até hoje. Houve uma ressignificação da ideia de quilombo, que considera a variedade de uso comum do território, em caráter coletivo, que possui muitas origens diferentes”, afirma.

A pesquisadora optou pela etnografia como metodologia de pesquisa, com o objetivo de construir uma percepção dos processos sob o ponto de vista de homens e mulheres quilombolas. “A etnografia não é você dizer que foi lá e viveu com eles, ou contar o que eles fazem, como um porta-voz. É pensar que são grupos com dinâmicas próprias, e criar no texto condições de traduzir esses modos de vida tão diferentes, que partem de lugares diversos”, diz.

Ao chegar à comunidade para iniciar a pesquisa, em 2011, a autora conta que era muito associada à figura do Estado e do próprio Incra. Naquele momento, o grupo possuía pouco contato com pesquisadores e a presença da antropóloga gerou expectativas de solução dos impasses com o governo. Diante disso, Daniela acabou cumprindo um papel de intermediária entre a comunidade e o Incra, auxiliando ambos os lados na compreensão das demandas que surgiam.

Tecer Amizade, Habitar o Deserto

O livro possui cinco capítulos, que se referem às relações da Família Magalhães com diferentes territórios. Além disso, nas primeiras páginas um prefácio e uma introdução cumprem o papel de apresentar a obra. Sobre a construção dos capítulos, a autora teve a intenção de organizá-los por uma espécie de jogo de escalas entre territórios que se relacionam entre si. A construção de Brasília é citada na introdução, remetendo à colonização dos interiores do País. A partir disso, o livro procura revelar quais as relações entre esse período e o atual município de Nova Roma, no nordeste de Goiás, e com o próprio quilombo.

O objetivo da autora foi demonstrar como a Família Magalhães está presente em diferentes lugares por meio de suas relações. “Eles se definem como ‘amigueiros’, como pessoas propensas a estabelecer relações de amizade. Essa definição é uma resposta a uma percepção, difundida na região, de que o lugar é um deserto, ou está prestes a se desertificar. Há uma desertificação do ponto de vista ambiental, por conta do garimpo, e também porque as pessoas estão indo embora”, conta Daniela. 

O primeiro capítulo é focado na relação entre a Família Magalhães e o Kalunga, seu território de origem, considerado o maior território quilombola do País. Abrangendo três municípios goianos, o Kalunga recebeu da ONU o reconhecimento de Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais. O patriarca da família deixou o Kalunga em meados dos anos 1940 em busca de uma vida melhor. No capítulo, a autora aborda a relação de origem e a relação atual com o Kalunga, que os auxiliou no reconhecimento como povo quilombola perante o Estado brasileiro.

Já o segundo capítulo é focado na Fazenda Lavado, território nas cercanias do Rio Paranã onde o quilombo se formou e permanece até os dias atuais. A autora buscou demonstrar como o território, já delimitado pelo Incra, se tornou um quilombo, além de investigar as relações da família naquele local.

O terceiro trata do município de Nova Roma, sua origem, características e relação com a Fazenda Lavado. O quarto capítulo discute as formas locais de fazer política, tanto no território da Família Magalhães quanto na Prefeitura da cidade, demonstrando como eles se dividem e se articulam.

Capa do Livro: Tecer Amizade, Habitar o Deserto - Foto: Divulgação

A divisão política no território foi inicialmente um desafio para a pesquisadora. “É uma comunidade dividida em função das relações com a política local. Uma parte da comunidade era correligionária e tinha relações com pessoas de determinados grupos políticos do município de Nova Roma. A outra metade da família, com outros grupos. “Quando a política está em evidência, no período de eleições municipais surgem muitas tensões entre esses dois grupos que compõem o quilombo”, conta.

Por fim, o último capítulo é dedicado ao governo federal, abordando a relação dos Magalhães com os programas sociais como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e os conflitos presentes nessa relação. “São cinco territórios que fazem o quilombo ser o que é, com seu próprio modo de existir e estar no mundo”, afirma Daniela, explicando a complexa composição do quilombo.

A pesquisadora conta que desenvolveu sua tese de doutorado de maneira mais enxuta, já pensando em uma publicação futura, que conseguisse alcançar um público não só de antropólogos, mas também de agentes públicos que atuam na área. O livro foi publicado no fim de 2022 pela Edusp e, segundo a autora, não teve muitas modificações em relação ao trabalho acadêmico.

Para a pesquisadora, a amizade foi um meio que a família negra e de origem rural encontrou para sobreviver em seu próprio território. Os membros do quilombo, vistos como “amigueiros”, utilizam as relações de amizade como uma estratégia de resistência, tentando conter possíveis ameaças. “[Por exemplo] a relação que eles tiveram com um pistoleiro, que tentou tirá-los de lá em 2004. Eles o chamaram para entrar em casa, para tomar um café.  Então, tem essa coisa de trazer para o seu território. Ela também é um modo de reverter essa ideia do deserto, que é muito forte na região. A ideia de que o lugar está virando um deserto e o deserto é a ausência de pessoas, de relações” conta. 

“A amizade é uma forma deles se valorizarem diante dos políticos locais com quem há uma relação discrepante de poder. ‘Não temos dinheiro, mas nós temos recursos que fazem de nós amigueiros’. E o que faz um amigueiro? Ele ajuda. O patriarca da comunidade faz partos, conhece ervas, ele faz curas, e essas ajudas têm enorme valor. O patriarca João Magalhães tinha muitos saberes que eram uma forma dele se valorizar e contrabalançar essas hierarquias, uma forma de continuar existindo diante do deserto e de relações desiguais de poder”, ressalta a autora.

A luta para habitar o deserto

A Família Magalhães aguarda há quase 20 anos para ter a titulação de suas terras efetivada. Ainda em 2004, passaram a ser reconhecidos pelo governo federal como quilombolas, recebendo a certidão de autorreconhecimento pela Fundação Cultural Palmares. Dois anos depois, em 2006, o Incra abriu o processo de titulação do território, que não foi concluído até hoje. A última movimentação no processo ocorreu em 2012, com um decreto de desapropriação do território que ainda não foi cumprido.

“É uma espera de muito tempo, eles estão desde 2004, 2005 esperando. O Incra alega que não tem verba para fazer essas desapropriações e não tem a menor previsão de quando conseguiria ter essa verba para titular o território. Uma parte da terra a ser titulada era de um antigo proprietário, que era um juiz aposentado que vendeu essa área para uma nova família, o que impede a Família Magalhães de utilizar aquele território. Então eles estão sofrendo as consequências dessa demora”, ressalta a antropóloga.

A Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) disponibiliza em seu site um grande banco de dados chamado Observatório de Terras Quilombolas. São informações a respeito de 1.951 terras quilombolas monitoradas pelo grupo, que procura auxiliar na luta pela titulação. Além disso, o site conta com informações acerca do próprio processo legal para a titulação com detalhes e particularidades.

De acordo com os dados da CPI-SP, atualmente existem apenas 148 terras quilombolas regularizadas e 57 terras parcialmente tituladas, enquanto há 1.803 processos de regularização abertos no Incra. Muitos passam pela mesma situação do Quilombo Família Magalhães, e estão há anos aguardando o andamento do processo.

+ Mais

Políticas de combate à fome: enfrentando um problema complexo e multifacetado

Em Barra do Turvo, escola e comunidade constroem juntas educação quilombola

Menos de 7% dos territórios quilombolas reconhecidos têm títulos de propriedade

“Esses povos existem de norte a sul, povos tradicionais, povos indígenas que possuem inúmeras línguas diferentes. Muita gente na melhor das intenções faz uma homogeneização, e se não encontra aqueles elementos que esperava, já duvida se de fato eles são mesmo povos tradicionais e isso dá margem para ações judiciais contra eles. Acho que o principal é mostrar essa variedade de modos de vida e de resistência nos interiores do País, e ao mesmo tempo mostrar elementos comuns, como as reações às políticas de colonização.”

Diante da ausência de políticas de titulação de terras dos últimos anos, Daniela ressalta que o novo governo federal terá um grande desafio. “Não vai ser uma reconstrução simples. Esses anos de governo Bolsonaro deram legitimidade a figuras muito complicadas, como garimpeiros e madeireiros, que se sentem mais autorizados a entrar em terras indígenas e quilombolas”, conta. Para os próximos anos, a autora espera que as políticas de reconhecimento que foram realizadas no início do século sejam acompanhadas de políticas de titulação de terra.

Segundo a antropóloga, o livro contribui para tornar menos simplificada a visão que as pessoas que lidam com esses processos possuem sobre os territórios quilombolas. “A ideia de que nos interiores do País tem coronelismo, tem essas relações patriarcais de poder e que a gente precisa ir para lá para combater isso. Mas a coisa é complicada, não basta chegar alguém de fora, da cidade grande, das políticas públicas, falando que vai acabar com isso. Eles têm uma série de relações prévias com esses políticos locais que para eles são importantes, muitas vezes são compadres, são pessoas muito próximas”, conta.

O livro contém 320 páginas, atualmente custa R$ 74 e pode ser adquirido no site da Edusp.

Mais informações: danielaperutti@gmail.com


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.