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Por que o casamento homoafetivo voltou a ser assunto no Brasil?
Docentes da USP falam sobre os interesses e excessos de deputados federais na tramitação do projeto de lei que ataca direitos de pessoas LGBTQIAPN+
O tema do casamento homoafetivo voltou ao noticiário e às redes sociais no Brasil devido à tramitação na Câmara dos Deputados de um projeto de lei que propõe proibir pessoas do mesmo sexo de se casarem - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Domínio Público via Wikipedia
Nas últimas semanas, o tema do casamento homoafetivo voltou ao noticiário e às redes sociais devido à tramitação na Câmara dos Deputados de um projeto de lei que propõe proibir pessoas do mesmo sexo de se casarem. O assunto parecia pacificado desde 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as uniões entre pessoas do mesmo sexo se equiparam, no âmbito do direito civil, às uniões entre pessoas de sexos opostos. Até o embate na Comissão de Previdência, Assistência Social, Família, Infância e Adolescência da Câmara trazê-lo de volta à tona.
A disputa é em torno do Projeto de Lei 580/2007. De autoria do falecido Clodovil Hernandes, ele propõe a inclusão da união homoafetiva no Código Civil. Ao longo dos anos, esse projeto de lei foi apensado a outras propostas sobre o tema, entre as quais apenas uma é contrária à união homoafetiva. Contudo, foi justamente esta única proposta contrária que o relator do PL 580/2007 recomendou aprovar. Trata-se do PL 5167/2009, de autoria do ex-deputado Capitão Assumção (PSB-ES).
O relator do projeto na Comissão de Previdência foi o deputado Pastor Eurico (PL-PE). Em seu parecer, ele defendeu que nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento, à união estável e à entidade familiar. Para justificar tamanha discriminação, o parlamentar utilizou referências científicas já superadas e uma discussão bíblica sobre relações homossexuais. Na sessão do último dia 10, sua posição foi referendada pela maioria dos integrantes da comissão. Doze deputados seguiram o voto do relator. Cinco registraram votos contrários.
Na avaliação de Paulo Casella, professor da Faculdade de Direito (FD) da USP e coordenador do Centro de Estudos sobre a Proteção Internacional de Minorias (Gepim/Cepim), o texto aprovado pela comissão é inconstitucional, pois cria uma discriminação que não existe na Constituição Federal, ferindo o princípio de preservação da dignidade humana. Ele explica que o campo conservador tem acusado o Supremo Tribunal Federal (STF) de “ativismo judiciário” para colocar em xeque a união homoafetiva.
“A discussão que está colocada no Congresso já tem por base uma inconstitucionalidade, porque estabeleceria uma discriminação e um prejuízo de reconhecimento de direitos que não está contemplado na Constituição. Então, não é questão de dizer que o Supremo avança além do que deveria. Eu acho que o Supremo está fazendo o seu trabalho de interpretar a Constituição e de traduzir uma interpretação que afeta a vida das pessoas”, diz Casella, que recentemente publicou um capítulo de livro sobre o assunto.
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A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família durante votação do projeto sobre o contrato civil de união homoafetiva - Foto: Lula Marques/Agência Brasil
Relembrando a história da união homoafetiva no Brasil
Paulo Casella afirma que a decisão de 2011 sobre a união homoafetiva não pode ser considerada ativismo judiciário porque o STF meramente respondeu a uma consulta feita pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. Na ocasião, o governo fluminense pediu um posicionamento sobre um caso bastante concreto: o cônjuge de um servidor público falecido estava pleiteando o reconhecimento do vínculo para ter o direito de receber pensão. O professor explica que a interpretação do STF equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis de casais heterossexuais.
“Foi preciso o Judiciário, isso algumas décadas antes, dizer que sim, (que) as uniões heteroafetivas de fato têm que ter reconhecidos os efeitos, porque as pessoas vivem juntas, constroem patrimônio juntas. A interpretação do Judiciário, antes das uniões homoafetivas, foi importante também para as heteroafetivas, contra as mesmas vozes tradicionalistas que diziam que casamento só é casamento quando tem papel passado”, diz o professor da FD.
Paulo Casella - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Ao longo das discussões na Comissão de Previdência da Câmara, deputados da bancada evangélica por diversas vezes defenderam um ideal de família nuclear composto de homem e mulher, com o objetivo de gerar filhos. Segundo Marília Moschkovich, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, esse ideal exclui muitas experiências reais de famílias brasileiras. Apesar disso, está no centro da estratégia discursiva de grupos conservadores católicos e evangélicos.
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“A família é um não conceito teórico. É um discurso do senso comum. Por isso, é um discurso muito útil politicamente, né? Todo mundo tem família, todo mundo tem uma relação com uma ideia de família. É uma coisa presente nos valores das pessoas, seja de direita, de esquerda, LGBTs ou não. A família tem um papel moral na nossa sociedade que é muito importante e é muito forte para as pessoas. Até para o movimento LGBT, (que) reivindica o direito de poder fazer parte desse tipo de formação institucional”, diz Marília.
A docente da FFLCH destaca que, no Brasil, a inclusão da pauta LGBTQIAPN+ nos direitos humanos se deu a partir do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), aprovado no final de 2009. Até então, as políticas públicas para a população LGBTQIAPN+ ficavam ligadas à saúde, muito vinculadas ao enfrentamento da epidemia de HIV. Com o PNDH-3, entraram de vez para a agenda pública questões como o casamento igualitário e a educação contra a homofobia. No entanto, a reação de grupos conservadores cristãos foi imediata – a polêmica do “kit gay”, por exemplo, começou nas eleições de 2010.
“A gente não tinha, antes do governo Dilma, essas políticas pensadas de modo global, para a sociedade toda, sobre questões LGBT. E quando começou, ela já foi atacada. Também o próprio governo na época cedeu nesse ponto, então não era um ponto tão inegociável assim. Isso só foi se aprofundando. Então, a gente tem um país em que as pessoas não têm educação com uma perspectiva de gênero, não têm uma educação pensada para direitos humanos bem resolvida e esses fatos fragilizam a democracia”, reflete a professora.
Lei, jurisprudência: faz diferença?
Marília Moschkovich - Foto: Arquivo Pessoal
Paulo Casella, por outro lado, discorda que seja necessário aprovar uma lei específica para o casamento igualitário, uma vez que a jurisprudência já protege os direitos dos casais homoafetivos. Além disso, ele pontua que a atual composição do Congresso Nacional inviabiliza a aprovação de uma lei nesse sentido, uma vez que, mesmo com o fim do governo Bolsonaro, as pautas de costumes continuam se impondo no Legislativo.
“Acho muito importante também deixar claro que as uniões homoafetivas não podem ser avaliadas do ponto de vista de convicção religiosa de ninguém, porque isso diz respeito a direitos civis, direitos patrimoniais, à organização da vida, organização de família, organização de laços afetivos entre pessoas, e só diz respeito àquelas pessoas que se encaixam nessa situação de uniões homoafetivas”, afirma o professor da FD. “O Estado não pode impor um ou outro modelo de convicção religiosa. O Estado tem que dar parâmetros para as pessoas poderem organizar as suas vidas pessoais”, completa.
Para ele, os deputados federais perdem tempo e energia com uma questão que já está resolvida no direito civil brasileiro, em vez de se dedicarem a assuntos mais urgentes – como, por exemplo, os assustadores números da violência de gênero. Segundo monitoramento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e não binárias no mundo. Entre 2017 e 2022, foram 912 assassinatos. As vítimas eram majoritariamente jovens e negras.
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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