Países do Sul global se destacam na mobilização de políticas públicas de moradia

Estudo realizado na USP mostrou que os tribunais de países do Sul global demonstram um cuidado maior com as causas estruturais que levam pessoas à situação de rua, ao invés de solucionar pontualmente a questão

 21/02/2024 - Publicado há 9 meses     Atualizado: 23/02/2024 às 11:05

Texto: Camilly Rosaboni*

Arte: Gabriela Varão**

População sem moradia recebe diferentes cuidados judiciais nos países dos hemisférios Norte e Sul – Foto: Freepik

A presença de pessoas em situação de rua é um problema social que afeta não só o contexto brasileiro, mas também mundial. Em geral, cabe aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de cada país providenciar os direitos dessa população. No entanto, um estudo feito na Faculdade de Direito (FD) da USP mostrou que a mobilização de políticas públicas de moradia se diferenciam entre os hemisférios Norte e Sul, principalmente pela condição de bem-estar social do país e o tratamento das cortes nas decisões judiciais.

Publicada em novembro de 2023, a pesquisa é intitulada A Litigância Constitucional dos Direitos da População em Situação de Rua: Uma Contribuição para a ADPF 976 e foi realizada pelo Grupo de Estudos Terceiro Setor e Empreendedorismo Social (G3S), liderado pelo professor Carlos Portugal Gouvêa e pelos alunos de pós-graduação Arthur Sadami e Lucas Víspico, da FD.

O estudo analisa a atuação do Judiciário sobre as condições de vida da população em situação de rua a partir de 60 decisões judiciais de 27 países distintos, avaliando as diferentes abordagens institucionais adotadas por cortes constitucionais estrangeiras ao lidar com a temática. Entre os Estados avaliados estiveram: África do Sul, Albânia, Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Barbados, Canadá, Chile, Colômbia, Dinamarca, Eslováquia, Estados Unidos, França, Hungria, Índia, Inglaterra, Irlanda, Israel, Itália, Japão, Malawi, Quênia, Suíça, Uganda, Venezuela e Zimbábue.

Apesar de o estudo não incluir a análise do contexto brasileiro, a observação dos demais países ajudou a identificar discussões semelhantes ao Brasil e propor recomendações ao Supremo Tribunal Federal (STF), levando em consideração seus dados locais e características institucionais específicas. “Trata-se de uma perspectiva comparada de como as cortes ao redor do mundo, cada vez mais, estão sendo chamadas para lidar com os direitos dessa população e quais foram suas respostas institucionais”, conta Víspico.

Lucas Víspico - Foto: Arquivo Pessoal

Lucas Víspico – Foto: Arquivo pessoal

A pesquisa mostrou que, nos países nos quais não se tem um estado de bem-estar social consolidado, isto é, onde a desigualdade social e o abandono estatal são marcantes, as cortes se tornam mais preocupadas com o desenvolvimento de políticas públicas para a população sem-abrigo. De acordo com os pesquisadores, isso acontece porque, diante da falta de ação estatal pelos Executivo e Legislativo, o Judiciário se torna o último recurso para se alcançar algum tipo de política pública ou proteção contra a negligência e discriminação da população de rua.

Arthur Sadami - Foto: Arquivo Pessoal

Arthur Sadami - Foto: Arquivo pessoal

“A riqueza do estudo é quebrar um pouco com o eurocentrismo. Essa ideia de copiar tudo que está sendo feito na Europa infelizmente sempre foi uma tradição do nosso Direito. Agora temos a perspectiva de países que são mais parecidos com o Brasil para ver os desenvolvimentos jurídicos que estão acontecendo nele”, afirma Gouvêa. “O constitucionalismo como um todo, especialmente como matéria social e econômica, é um fenômeno muito complexo e tem recortes entre jurisdições ricas e pobres, desenvolvidas e subdesenvolvidas”, pontua Sadami.

Além disso, pesquisa exibiu o potencial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de número 976 – ação proposta ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela sociedade civil, com o objetivo de evitar ou reparar as condições desumanas de vida da população em situação de rua em nosso país, decorrentes de omissões estruturais de todos os poderes e níveis federativos. Segundo os pesquisadores, “a ADPF 976 pode encontrar soluções judiciais razoáveis e eficazes por meio da litigância constitucional – processos judiciais para a defesa de direitos – diante de um cenário de negligência das demais instâncias do Estado”.

Norte x Sul global

As abordagens judiciais entre os dois grupos de países se diferenciam em questões como: criminalização da mendicância – por exemplo, criminalizar catadores de lixo ou pessoas que costumam pedir esmolas -, ocupação do espaço público, programas sociais (de seguridade social, habitação e saúde) e participação política. Nos gráficos a seguir, veja a comparação entre o Norte e o Sul global nessas categorias.

Comparação entre a participação política do Norte e Sul global sobre questões de moradia -Fonte: Elaborado pelos autores

“A maior parte dos países do Norte vai ter jurisprudência – conjunto de decisões judiciais – para tentar evitar que o Estado tome atos de violência, isto é, que criminalize a população em situação de rua. Ao analisar o Sul, no qual você tem um déficit de políticas sociais muito mais significativo, há uma preocupação maior com o desenvolvimento delas”, afirma Gouvêa. 

Segundo o professor, nos países do Sul global, há uma atenção maior às causas que levam pessoas a estar em situação de rua (falta de assistência psicológica, empregabilidade, saúde etc.) e a necessidade de implementar ações que combatam essas questões. Nos demais países, em que se tem um estado de bem-estar social mais consolidado, acontece apenas o controle das políticas já existentes. 

O estudo mostrou que os tribunais assumem três funções diferentes na proteção dos direitos da população em situação de rua: a protetiva, empregando intervenções para defender os direitos constitucionais desses indivíduos; a propositiva, para estabelecer o desenvolvimento de políticas públicas a essas pessoas; e comunicativa, com intervenções que informam à sociedade civil e ao Estado que o direcionamento da situação de rua integra os objetivos constitucionais. Segundo a análise, os países do Norte adotam mais medidas protetivas, enquanto os do Sul, propositivas e comunicativas nos tribunais. 

Em um exemplo prático analisado na pesquisa, houve um caso na Colômbia, país do Sul global, em que a corte constitucional questionava a situação de rua de uma mulher que não tinha acesso a produtos de higiene pessoal para sua saúde menstrual. A corte, além de recomendar que o Estado deveria prover esses produtos para a pessoa, exigiu a elaboração de uma política pública, em até seis meses, para a população na região como um todo. “Então, essa dimensão propositiva, muitas vezes, ultrapassa a dimensão individual e exige o engajamento do poder público na solução da questão”, afirma Víspico. 

Nos gráficos a seguir, veja a comparação entre o Norte e o Sul global quanto a medidas protetivas, propositivas e comunicativas, além da relação entre decisões favoráveis e desfavoráveis às pessoas em situação de rua nos hemisférios.

Relação entre medidas protetivas, propositivas e comunicativas do Norte e Sul global -Fonte: Elaborado pelos autores
Relação entre decisões favoráveis e desfavoráveis aos moradores de rua do Norte e Sul global -Fonte: Elaborado pelos autores

Mobilização da sociedade civil

A proposta da ADPF 976 foi feita pela Rede Sustentabilidade, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), juntamente ao Movimento Nacional de População de Rua (MNPR), com a justificativa de que a população em situação de rua vivencia condições precárias em razão de omissões estruturais dos três níveis federativos do Executivo e do Legislativo.

“O terceiro setor assume uma característica muito importante de ser um instrumento de defesa e acesso à justiça. Não foi a defensoria que propôs a ADPF, nem os órgãos estatais que propuseram ações constitucionais em outros lugares do mundo, foram os partidos e associações de pessoas em situação de rua e movimentos nacionais. Isso mostra que o Judiciário e talvez o constitucionalismo contemporâneo assumem, cada vez mais, um aspecto de defesa da sociedade civil. Ela, por sua vez, se mobiliza para adentrar nesses canais e buscar seus direitos, especialmente em situações de extrema fragilização social, como é o caso da população em situação de rua”, afirma Sadami.

*Estagiária sob supervisão de Antonio Carlos Quinto e Tabita Said
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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