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Instituto de Psicologia da USP avança na pauta do pertencimento por meio do diálogo com coletivos
Em paralelo à mudança no perfil dos estudantes, comissão recém-inaugurada busca atuar nas violências presentes no cotidiano do instituto que abriga o segundo curso mais concorrido da Fuvest
Evento Primavera Indígena, realizado pelo Instituto de Psicologia com participação do coletivo Rede de Atenção à Pessoa Indígena - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
No vestibular de 2023, cada vaga oferecida pelo Instituto de Psicologia (IP) da USP era disputada por cerca de 70 pessoas. Segundo curso mais concorrido da Fuvest — e quarto colocado na relação candidatos por vaga, perdendo apenas para Medicina nos campi da USP em São Paulo, Ribeirão Preto e Bauru, respectivamente —, a Psicologia tem, atualmente, cerca de 85 alunos que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas. Além destes, 30% das vagas do curso são reservadas a estudantes provenientes de escolas públicas. O novo perfil dos estudantes tem inspirado novas iniciativas de inclusão no instituto, e o pertencimento, que sempre foi uma prioridade no IP, agora se torna institucional: a unidade acaba de inaugurar uma Comissão de Inclusão e Pertencimento (CIP), que atuará como um braço da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP, promovendo políticas de permanência na unidade.
Criado em 1969, o Instituto de Psicologia (IP) da USP tem um histórico de mulheres no comando: dos 14 diretores à frente do instituto desde a sua criação, sete foram mulheres — incluindo Ana Maria Loffredo, atual gestora. No programa de gestão, elaborado em 2020, Ana Maria reafirma o compromisso com as lutas sociais dentro do IP. “Concomitantemente à abertura da Universidade a estudantes oriundos das camadas populares, novos temas e novas questões surgirão no seio do próprio instituto”, afirma a diretora, explicando que a defesa das políticas de inclusão social é um compromisso do instituto. Para ela, uma negligência nesse sentido seria incoerente com os ideais defendidos pela Psicologia.
Ana Maria Loffredo - Foto: IP-USP
Adriana Marcondes Machado – Foto: Reprodução
Adriana Machado, vice-presidente da nova Comissão de Inclusão e Pertencimento, destaca a importância dos coletivos, muito consolidados no instituto. “Eles normalmente dão aula para a gente, porque estão muito adiante na discussão dessas temáticas”, relata. Segundo a docente do IP, o letramento nas questões sociais é uma prioridade da gestão, que planeja organizar eventos e debates com os movimentos sociais para promover maior conscientização no instituto. “A gente tem uma proposta de fomentar encontros”, resume Adriana, que também planeja organizar reuniões com estudantes que habitam o Conjunto Residencial da USP (Crusp) para entender as demandas desse grupo.
A comissão recém-empossada busca combater as violências cotidianas e, atualmente, trabalha em parceria com o coletivo trans Transtornar para implementar banheiros inclusivos na unidade — uma orientação da PRIP para toda a Universidade.
Além das iniciativas pontuais, Adriana localiza uma mudança estrutural necessária: a presença de mais pessoas negras e indígenas nos cargos de poder no instituto — e em toda a USP. “Essas pessoas deveriam estar nos espaços que majoritariamente são ocupados por pessoas brancas”, afirma a docente, que ressalta a importância de repensar as relações de poder no campus.
Mesmo antes da criação da PRIP e da CIP, o Instituto de Psicologia já tinha um histórico de inclusão, explica Adriana, que destaca a importância da Casa de Culturas Indígenas, um espaço localizado no IP e criado em 2017 pela Rede de Atenção à Pessoa Indígena (Rede) para acolher os indígenas que frequentam a Universidade. “A casa faz com que a USP afirme a presença desses povos no campus”, completa Adriana.
Casa de Culturas Indígenas - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Construção da Casa de Culturas Indígenas - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Um porto seguro
Quando fazia graduação em Letras, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Leandro Karaí Mirim passava por um momento de muita tristeza. “Eu não me sentia parte da instituição”, relata e acrescenta que sofria muito pela falta de contato com outros indígenas e pelo distanciamento das práticas culturais. Em 2018, estava quase desistindo do curso, mas decidiu continuar na Universidade, e o IP teve um papel fundamental na sua decisão.
Leandro conheceu a Casa de Culturas Indígenas por meio de Danilo Silva Guimarães, o único docente indígena da USP — que leciona no Instituto de Psicologia. Na Casa, Leandro encontrou a motivação para permanecer na USP. “Quando vi a Casa, pela primeira vez, eu comecei a atribuir sentido em estar na universidade, me possibilitou ver um caminho possível de trilhar sem adoecer”, conta. Com uma bolsa PUB que durou três anos, Leandro assumiu a responsabilidade de cuidar da manutenção da Casa, receber pessoas e organizar eventos culturais.
A Casa de Culturas Indígenas foi financiada pela Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes) e pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) da USP, e foi construída por voluntários, em parceria com arquitetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Além de objetos da cultura guarani e presentes recebidos de outras comunidades — Leandro destaca uma lembrança dada pelo povo Maori, da Nova Zelândia —, a Casa oferece um ponto de encontro para indígenas da Universidade e da cidade de São Paulo, onde podem exercer práticas culturais e religiões indígenas. Lá, são realizadas oficinas, como aulas de língua guarani e de artes marciais, e atendimentos psicológicos de indígenas da região. “É um espaço de concentração espiritual”, relata Leandro.
Leandro Karaí Mirim – Foto: Rede Indígena-IPUSP
Apresentação musical no Instituto de Psicologia - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
A luta por inclusão, contudo, permanece. A implementação das cotas para Pretos, Pardos e Indígenas (PPI) não tem tido um resultado positivo no acesso de pessoas indígenas à Universidade, segundo Leandro. “As cotas geram uma concorrência dos indígenas com os pretos e pardos, que tiveram uma educação mais alinhada ao vestibular tradicional”, explica o pós-graduando do IP, defensor do vestibular indígena para ingresso na USP — semelhantemente ao que a Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) vêm fazendo desde 2022.
Sem o sentimento de pertencimento, a gente não consegue se manter na Universidade como pessoas indígenas"
Transformação
“O instituto está muito diferente”, afirma Cadência Casemiro, aluna travesti e cofundadora da Coletiva Transtornar. A mudança tem sido positiva, segundo a estudante; a comunidade é acolhedora, o acesso aos banheiros é inclusivo e os pronomes são respeitados pela maioria dos frequentadores.
Cadência Casemiro - Foto: Reprodução/codigonaobinario
O acolhimento é impulsionado pela Coletiva Transtornar, iniciativa estudantil criada em 2022 para conscientizar a comunidade do IP e amparar alunos LGBTQIA+. A ideia surgiu a partir de um levantamento organizado por Cadência e pelo Centro Acadêmico Iara Iavelberg (CAII) para mapear gênero e sexualidade no Instituto de Psicologia. Após o levantamento, Cadência percebeu que havia necessidade de acolhimento desses grupos dentro do instituto. “Tinha gente que queria transicionar, mas não conseguia; tinham medo da reação da família”.
Além disso, Cadência notou que havia muita desinformação. “As pessoas frequentemente confundiam identidade de gênero com sexualidade”, relata. O coletivo busca conscientizar por meio de palestras e também questionando a visão de gênero binária presente nas bibliografias do curso.
Evento realizado no Instituto de Psicologia em parceria com a Coletiva Transtornar para discutir questões de gênero e sexualidade - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Apesar de ser respeitado pela comunidade, o nome social institucionalizado ainda é uma luta. “Nós já adotamos o nome social, mas às vezes há demoras burocráticas desnecessárias”, conta Adriana Machado, que pretende investigar métodos para agilizar esse processo. Além das questões burocráticas, Cadência também localiza uma deficiência na representatividade do corpo docente. “Por conta da falta de professores trans no instituto, nós sempre ficamos na posição de algo a ser explicado”, relata a estudante de graduação.
A colaboração é o eixo central nas práticas de inclusão e acolhimento do Instituto de Psicologia, e a Transtornar é um exemplo bem-sucedido desse esforço coletivo. Além do diálogo com a Comissão de Inclusão e Pertencimento sobre os banheiros inclusivos, o movimento também tem um contato histórico com o coletivo feminista Aurora Furtado — que teve um papel fundamental na consolidação da Transtornar como um coletivo. Confira os principais coletivos do IP:
A Coletiva Transtornar é um grupo de acolhimento a pessoas LGBTQIA+ do Instituto de Psicologia. Além de rodas de conversas, o coletivo também propõe debates para a conscientização dos estudantes, funcionários e docentes, bem como palestras e manifestações de denúncia. O grupo é aberto a todas as pessoas LGBTQIA+ e não tem encontros periódicos; reuniões são marcadas de acordo com as demandas trazidas.
Criado em 2019, o coletivo negro do IP organiza debates e eventos no Instituto para questionar a bibliografia branca e europeia predominante no curso em busca de uma formação antirracista dos estudantes de psciologia. Entre os temas debatidos pelo coletivo estão a permanência universitária, as cotas, racismo e como as pessoas brancas podem ajudar o movimento antirracista.
A Rede de Atenção à Pessoa Indígena é um serviço ligado ao Departamento de Psicologia Experimental do IP. O objetivo da rede é articular pessoas e perspectivas que envolvam as comunidades indígenas e grupos acadêmicos na construção de práticas psicológicas que considerem as experiências concretas desses povos. A Rede propõe somar-se à luta indígena por reconhecimento, soberania e participação nas instituições e políticas públicas brasileiras, e é coordenada pelo professor Danilo Guimarães, do IP.
O serviço é responsável pela Casa de Culturas Indígenas, denominada Xondaro kuery Xondaria kuery onhembo’ea ty apy – espaço de aprendizado de saberes ancestrais da USP. O local concentra indígenas de diversos povos e apoiadores, estudantes da graduação e pós-graduação, bem como indígenas que não integram a comunidade universitária, mas se somam às pautas de ingresso diferenciado. Para participar, é necessário manifestar interesse por meio do site.
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*Estagiária sob supervisão de Antonio Carlos Quinto e Tabita Said
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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