De origem periférica, jovem talento da música se torna professor de regência na Alemanha

Nascido em Mogi das Cruzes, em São Paulo, Luiz de Godoy se graduou na USP e agora integra o Departamento de Música Sacra da Hochschule, em Hamburgo; músico já escutou de professor que não tinha futuro no palco

 30/11/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Isabel Briskievicz Teixeira*
Arte: Carolina Borin**

Em 2019, Godoy se tornou diretor artístico do coral Meninos Cantores de Hamburgo – Foto: Reprodução/Facebook Hamburger Knabenchor

O músico e maestro Luiz de Godoy foi nomeado professor de regência orquestral do Departamento de Música Sacra da Escola Superior de Música e Teatro de Hamburgo, uma das maiores universidades da Alemanha. O ex-aluno de música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP é o terceiro professor brasileiro na Hochschule, precedido por Yara Bernette e Marco Antonio de Almeida.

Aos 35 anos, o pianista de formação assume uma cadeira na instituição alemã. Para ele, estar no cargo significa firmar um compromisso com uma postura pedagógica socialmente comprometida. “É bom ter a possibilidade de interferir no sistema por dentro dele”, afirma. Luiz conta já ter ouvido de um professor no Brasil que ele não tinha futuro no palco, e acredita que comentários como esse exibem o despreparo pedagógico dos professores de música, que executam a arte com maestria, mas nem sempre estão bem preparados para ensinar.

Quanto às expectativas para o cargo, Luiz demonstra animação: “O ano letivo aqui começou agora em outubro e tem sido uma experiência muito enriquecedora”. O reconhecido Departamento de Música Sacra da Hochschule está sediado na cidade de Hamburgo, que foi visitada pelo compositor Johann Sebastian Bach durante seus estudos.

Luiz de Godoy - Foto: Arquivo Pessoal

O professor reconhece que o curso de música ainda é bastante restrito a poucas pessoas,  “tanto pela necessidade de uma formação prévia à graduação, quanto pela dedicação em tempo integral requerida”, mas vê espaço para a atuação docente. “Dando apenas uma matéria, a de regência orquestral, não posso fazer muito, mas espero fazer tudo o que estiver ao meu alcance para valorizar a vontade e o empenho dos alunos, neutralizando como possível a influência de suas origens sociais — a partir do reconhecimento delas, claro, e não da sua negação”.

Luiz de Godoy em uma apresentação enquanto criança - Foto: Arquivo Pessoal

Luiz de Godoy e turma de crianças em ensaio do Hamburger Knabenchor - Foto: Reprodução/Facebook/Hamburger Knabenchor

De Mogi para o Carnegie Hall

Os estudos formais de música de Luiz tiveram início na Escola Municipal de Música de São Paulo, onde participou das aulas de Renato Figueiredo, também ex-aluno da USP. Quando ingressou no bacharelado em piano na ECA, em 2006, era morador de Mogi das Cruzes e enfrentava uma viagem diária nos trilhos dos trens até a Universidade. Seu primeiro contato com o idioma alemão ocorreu num curso de idiomas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP . Em 2009, foi bolsista pelo programa de bolsas Fulbright, patrocinado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, e, a convite do departamento, visitou o país para estudar e se apresentar em Boston, Nova Iorque, Washington e Tanglewood.

Após graduar-se em piano pela ECA, Luiz concluiu seu mestrado em piano solo em Castelo Branco, Portugal, e em Colônia, Alemanha. Foi vencedor do Prêmio Erwin Ortner como destaque da música coral austríaca (2016) e do Prêmio de Honra da Academia de Música de Viena, em 2019. Em 2013, foi admitido no Diplomstudium, curso de pós-graduação que garante o grau de mestre, em regência orquestral e regência coral na Universidade de Música e Artes Performáticas de Viena. Mudou-se para Hamburgo em 2019 para trabalhar na Ópera Estatal com o objetivo de criar um departamento de coros infanto-juvenis e dirigir produções de ópera.

Luiz de Godoy no Prêmio de Honra da Academia de Música de Viena, em 2019 - Foto: BachSempreBach/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0

Em 2021, Luiz dirigiu um concerto junto à Orquestra da NDR Elbphillarmonie e se apresentou ao rei Charles da Inglaterra. Desde então, o pianista e regente é diretor artístico dos Meninos Cantores de Hamburgo. Em 2022, realizou uma turnê em São Paulo com a Orquestra Sinfônica da USP (Osusp). Atualmente, trabalha com Kent Nagano, renomado regente estadunidense, em uma turnê por diversos países, iniciada no palco do Carnegie Hall de Nova York em abril de 2023.

Condução brasileira

Para Luiz, a vivência na Alemanha evidencia as diferenças estruturais entre o país europeu e o Brasil. Ser músico em cada um deles é “absolutamente diferente”, segundo o docente, e tudo começa na educação básica. “Em Hamburgo, existem dois jardins da infância públicos que, já para esta faixa etária, são especializados em música. Eles ainda dividem as classes entre classes vocais e classes instrumentais, de acordo com os interesses das crianças”, conta. Além disso, há escolas de ensino médio especializadas em música.

A diferença entre os países também é notada pelo enaltecimento geralmente feito à música produzida no continente europeu, que seria “supostamente mais educada e culta”, segundo o músico, e isso exige uma postura de luta por reconhecimento por parte dos músicos não europeus.
Comprometido com a luta antirracista na música clássica, Luiz acredita que, enquanto artista negro, isso não é uma escolha, e sim uma necessidade. Ele trabalha com poucos colegas não-brancos e vê que é impossível negar a existência de barreiras impostas pelo racismo no meio da música de concerto e da ópera. “Aqui é comum que muita gente ainda use o fato de ‘se tratar de música europeia’ para deslegitimar a nossa atuação no campo, como se não fosse natural que nós fizéssemos essa música”. Ele até já ouviu que os brasileiros fazem uma “apropriação cultural” da música europeia, mas discorda: “um povo colonizado não tem a escolha da apropriação, já que foi obrigado a abdicar das próprias culturas originárias e ‘mimificar’, como diz o autor indiano Homi Baba, a cultura do dominador”.

Luiz de Godoy em apresentação da Osusp na Sala São Paulo Foto: Arquivo Pessoa/Luiz de Godoy

No Brasil, os enfrentamentos também não são poucos. A visão de que os músicos clássicos são “colonizados” também é frequente. “A gente vai se tirar o direito de fazer algo que aprendemos a gostar, num ciclo de castração perpétua? A arte europeia já não é uma arte nossa?”, questiona.

Como um estrangeiro fazendo música clássica no berço desta arte, o pianista e regente sabe, no entanto, que suas origens raciais e culturais jamais podem ser ignoradas. “Ou a gente escolhe fingir que é europeu ou a gente permanece brasileiro. No meu caso, negro, não tenho outra opção – e jamais desejaria outra coisa”.

*Do LAC – Laboratório Agência de Comunicação da ECA. Editado por Tabita Said

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

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