Atletas trans e intersexo não são “mulheres legítimas” para o mundo do esporte

Às vésperas dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, pesquisadora da USP discute as influências discriminatórias do padrão binário de gênero nas normas olímpicas

Fotomontagem Jornal da USP com imagens de: Freepik
 25/07/2024 - Publicado há 4 meses

Texto: Maria Trombini*
Arte: Diego Facundini**

Apesar de uma maior abertura da sociedade para questões de inclusão social de minorias, o mundo do esporte ainda se baseia em fatores binários para determinar quais mulheres podem ou não participar de competições. Waleska Vigo Francisco, pesquisadora no Grupo de Estudos Olímpicos da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP, alerta para os riscos de se reduzir os resultados esportivos – influenciados por uma ampla gama de fatores biológicos e sociológicos – a apenas um fator. Seja ele a testosterona ou não. 

“Isso faz parte do modo como a ciência foi projetada desde os séculos 18 e 19. Ocorre um reducionismo: você reduz um corpo inteiro a partes. Você tem características que melhoram isso ou aquilo. Mas eu vejo como muito pobre a gente pegar um único fator biológico, que é o que acontece hoje com a testosterona, e dizer que foi por ele que o atleta ganhou. Existe um monte de variáveis. O esporte trabalha com a diversidade corporal ou, ao menos, deveria.”

Waleska é autora da tese de doutorado A norma de gênero olímpica: mulheres legítimas e o tensionamento da bicategorização por atletas trans e intersexo, desenvolvida na EEFE sob orientação da professora Kátia Rúbio. 

Na pesquisa, ela explora a construção histórica da categoria feminina no esporte e o lugar ocupado pelos corpos considerados divergentes do padrão olímpico estabelecido. A pesquisadora conta que o recorte temático da tese veio após começar os trabalhos de resgate histórico. A princípio, ela pensava em estudar a experiência de atletas lésbicas no esporte. 

Waleska Vigo Francisco - Foto: Arquivo pessoal

“Durante uns três anos e meio — foram quatro no total —, eu estava preocupada com a questão social, pensando a categoria feminina como um todo. As mulheres têm menos oportunidades esportivas, desde crianças, e são colocadas em certas modalidades marcadas socialmente como femininas. Conforme eu começo a estudar, vejo que tem algo que é muito mais profundo e muito mais discriminatório. Não que esse ambiente não seja discriminatório para pessoas lésbicas, ele é. Mas ele me parecia muito mais agressivo para atletas trans ou com variação intersexual, que se tornaram as duas sujeitas da minha pesquisa. Eu fui vendo que a questão biológica desenhava uma verdade absoluta, colocava um destino para as atletas”, explica.

Waleska destaca a descoberta sobre os testes de verificação de gênero como fator marcante para a escolha do novo assunto de seu doutorado: “Eu já tinha passado por uma graduação e até por uma pós-graduação, e nunca tinha ouvido falar dos testes de verificação de gênero. Isso me espantou bastante. Comecei a ler alguns materiais e fui vendo que todas as mulheres, sejam cisgêneras, trans ou com variação intersexual, tiveram que passar por investigações para provar que eram mulheres. Os testes de verificação de gênero aconteceram durante décadas. Eles foram extintos nos anos 1990, mas não acabaram. Na verdade, ficaram específicos para o público trans ou com variação intersexual”.

Jogo de empurra

Durante os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, a neozelandesa Laurel Hubbard marcou a história ao se tornar a primeira atleta transgênero competindo em uma olimpíada. Laurel fez a transição de gênero aos 30 anos, em 2013. Seguindo as exigências em vigor à época, ela precisou manter os níveis de testosterona no sangue abaixo de 10 nanomoles por litro durante 12 meses, para se tornar apta a competir.

Desde 2021, o Comitê Olímpico Internacional (COI) delega a cada uma das federações desportivas internacionais a responsabilidade de estabelecer critérios específicos para que mulheres transgêneros ou com variação intersexual possam competir em eventos em nível de elite de cada esporte. Federações esportivas como as de rugbynatação e atletismo foram algumas das primeiras a enrijecer suas diretrizes. 

Em junho deste ano, a Corte Arbitral do Esporte julgou improcedente o recurso movido pela nadadora Lia Thomas contra a World Aquatics (WA) — entidade internacional responsável pelos esportes aquáticos. Lia, uma mulher trans, questiona certos parâmetros estabelecidos pela WA que restringem a participação de atletas trangêneros em competições femininas de elite. Com a decisão, a atleta não pôde participar das seletivas olímpicas e, consequentemente, não estará presente nos Jogos Olímpicos de Paris, que começam nesta sexta-feira, 26 de julho.

“Hoje, as decisões ficam girando entre as federações, porque o COI distribuiu essa tarefa. Parece que existem órgãos que estão esperando as decisões de federações maiores para acatá-las. Quem está à frente disso, por exemplo, é a Associação Internacional das Federações de Atletismo, justamente porque é a federação que mais tem poder econômico e é uma das modalidades com mais prestígio e reconhecimento dentro do movimento olímpico”, comenta Waleska. 

Mulheres trans ou com variação intersexo

Monica Helms idealizou a bandeira que representa a comunidade trans em 1999. Ela é composta por cinco faixas horizontais: duas em azul claro, duas em rosa e uma em branco, ao centro - Foto: Foto: Monica Helms/Wikimedia Commons/Domínio público

Pessoas transgênero são aquelas que não se identificam com a classificação de gênero atribuída a elas ao nascer. Comumente abreviado apenas para trans, é considerado um termo guarda-chuva, pois representa todo um conjunto de diferentes identidades de gênero, como homem trans, mulher trans ou pessoas não binárias. 

Criada em 2013, a bandeira intersexo apresenta um fundo amarelo com um círculo roxo - Foto: Morgan Carpenter/Wikimedia Commons/Domínio público
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Pessoas intersexo são indivíduos cujas características sexuais congênitas (como cromossomos, genitália, gônadas e hormônios) não se enquadram na categorização da medicina para corpos femininos ou masculinos. Existem vários estados intersexo, que podem ou não ser identificados antes ou logo após o nascimento. Em alguns casos, as variações intersexuais são percebidas somente após a puberdade. 

Ambos os grupos fazem parte da sigla LGBTQIAPN+, sendo a letra “T” para transgênero e “I” para intersexo. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal concluiu que atos ofensivos praticados contra pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ poderiam ser enquadrados na Lei do Racismo. Assim, a LGBTfobia tornou-se crime imprescritível e inafiançável. 

“Eu acho que falta conhecimento. Existe muita exotização sobre os corpos trans ou com variação intersexual. Inclusive, acho que às vezes esquecem que são pessoas. Eu reafirmo toda hora ‘pessoa, pessoa, pessoa’. E essas pessoas vêm como uma bomba, tumultuando essa separação de gênero, esse muro que separa homens e mulheres”, aponta Waleska.

Bio-lógica

Waleska explica que o padrão binário foi construído dentro da medicina moderna. A ciência, sob a premissa da neutralidade, buscou construir a figura de um corpo humano universal e atemporal, fundamentado na biologia. Cientistas passaram a explorar o corpo buscando classificar diferentes marcadores biológicos entre duas categorias distintas e opostas — feminino e masculino —, criando, assim, um padrão binário.  

“Mas essa é uma ciência muito marcada e localizada. A ideia de mulher biológica que a gente tem é construída em países europeus, com a mesma versão nos Estados Unidos. O padrão binário é ocidental. Quando a gente pensa na ‘mulher verdadeira’, estamos pensando em um corpo branco, das classes sociais mais abastadas. Com o processo de colonização, esse referencial vai se espalhando pelo mundo”, alerta. Waleska aponta que, nesse processo, a variabilidade biológica dos seres humanos foi reduzida e negligenciada em função da manutenção do modelo a ser construído. 

“O binarismo só pôde existir porque as pessoas com variação intersexual foram apagadas. A medicina foi dizendo: este é o modelo normal, o homem é de um jeito e a mulher é de outro, a partir de vários marcadores biológicos. Foi preciso apagar essas pessoas com variação intersexual para dizer que só existem esses dois tipos. E apagar é um sinônimo de corrigir.”

A pesquisadora ressalta ainda que a construção do esporte não está apenas no campo das ciências biológicas, mas também das ciências humanas. “A gente costuma olhar para o esporte isoladamente, como se ele não tivesse qualquer influência sociológica. Mas isso é algo muito complexo. Não dá para explicar como alguém chegou a ser atleta olímpico só pela biologia e nem só pelas questões sociais; é um conjunto. O corpo tem sua materialidade, mas vai se construindo sobre ele um discurso que o engessa. Em especial, um discurso a partir da genitália.”

Sexo frágil

Em sua pesquisa de doutorado, Waleska descreve como o esporte também contribui para a manutenção das estruturas sociais vigentes, a partir da reprodução das performances de gênero. “Judith Butler diz que o gênero se forma a partir da repetição performativa. A nossa sociedade é estruturada assim. A gente fica performando o feminino e o masculino e assim a sociedade te reconhece como mulher ou homem. O esporte é muito importante porque é um lugar de formação do gênero.”

“Uma das autoras que eu usei muito foi a Oyèrónkẹ Oyěwùmí. Ela diz que na sociedade yorubá não existe organização social binária. Eles não vão olhar para a genital de alguém e afirmar que nasceu homem ou melhor e, portanto, tem essa ou aquela função. A sociedade yorubá se organiza a partir da cronologia. Então, a hierarquia é de acordo com a idade, estando os mais velhos acima.”

No estudo, a pesquisadora resgata o período histórico da Revolução Francesa, durante o qual o slogan “liberdade, igualdade e fraternidade” provocou um questionamento não só da ordem política, mas também dos papéis sociais atribuídos a diferentes grupos. “As mulheres estão ouvindo dizer que elas têm igualdade. Então, elas poderiam fazer o que quisessem. Para não deixar a mulher fazer o que ela bem entender, é colocado que existe uma biologia. A biologia desenha um destino. E, se é biológico, não tem o que fazer”, aponta. 

Zhang Shan é uma atleta pós-olímpica de tiro esportivo. A chinesa foi a primeira e única mulher a conquistar uma medalha de ouro na disputa mista dos Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992 - Foto: Wiki.china.org.cn

Nessa lógica, os homens são biologicamente mais fortes, rápidos e aptos ao esporte do que as mulheres. Assim, a separação do esporte nas modalidades feminina e masculina serviria para manter a equidade dentro das competições. “No trabalho, eu procuro sair um pouco da pauta LGBT para mostrar que mulheres cisgêneras vencem homens cisgêneros. Quando eu falo isso, as pessoas dizem: ‘imagina isso acontecer, nunca aconteceu’. Mas a gente tem a Zhang Shan, uma atleta chinesa de tiro, vencendo nas Olimpíadas de 1992 em uma modalidade que era mista.”

Depois do resultado de Shan, a International Shooting Union (renomeada International Shooting Sport Federation em 1998) proibiu que mulheres competissem contra homens. Assim, nenhuma das mulheres participou da competição em 1996, nos EUA. Para as Olimpíadas de 2000, em Sydney, uma competição na modalidade feminina foi adicionada ao programa. Zhang, que saiu de sua aposentadoria temporária para voltar a competir, ficou em oitavo lugar. 

“A separação ocorre porque os homens são ensinados que no esporte eles são sempre melhores que as mulheres. Se eles perdem, é quase uma humilhação pública. A biologia diz que eles têm sempre que ganhar. É interessante pensar as masculinidades no esporte”, observa Waleska.

A professora Gabrielle Weber, da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP, é travesti e pratica kung-fu desde antes de seu processo de transição. Ao Jornal da USP, ela relata sua experiência com o tratamento hormonal e com a mudança na abordagem do esporte em relação às mulheres: “Sobre o desempenho, eu senti na pele: sei que diminuiu bastante. Talvez a única vantagem que eu tivesse perante uma mulher cisgênera, que tenha treinado pelo mesmo tempo que eu, seria pela qualidade do treino que os atletas masculinos têm e as atletas femininas não têm. Existe toda uma misoginia no esporte, um desprestígio do esporte feminino. Isso acaba acarretando às atletas femininas que tenham uma qualidade de treino inferior e, naturalmente, um desempenho técnico e físico pior”. 

Waleska acrescenta: “A categoria feminina foi criada como uma subclasse. Por mais que hoje a gente tenha melhores condições de treinamento e melhores salários, a gente sabe que não se equipara à masculina. Dependendo do esporte, nem de longe. Ela reflete justamente essa relação [hierárquica] ao masculino. A masculina é a categoria que tem mais destaque e melhores oportunidades. Mas, claro, ela também tem muitos problemas de gênero, raça e classe, não é maravilhosa”. 

A era da testosterona

Entre as décadas de 1960 e 1990, os testes de verificação de gênero estavam ligados a exames cromossômicos. A presença dos cromossomos XX, definidos biologicamente como femininos, era o que permitia a associação de atletas com o gênero e a categoria femininos. “Para não causar nenhum tipo de constrangimento, em especial com a imprensa, pediam para atletas que não tivessem passado nos testes de verificação de gênero para que fingissem uma lesão”, conta Waleska.

Hoje, a pesquisadora analisa que as discussões de gênero no esporte vivem a “era da testosterona”. Ela menciona o caso da atleta María José Martínez-Patiño como marco para essa mudança. Em 1985, María se recusou a retirar-se de uma competição de atletismo após reprovar no teste de verificação de gênero, que revelou a presença dos cromossomos XY, biologicamente definidos como masculinos, em seu DNA. A atleta espanhola teve seus resultados publicamente expostos e passou a travar uma luta por seus direitos. 

“A equipe médica que acompanhou o caso insistiu pela inclusão dela como atleta com variação intersexual. Eles defenderam que a única coisa que diferenciaria as atletas com variação intersexual seria a testosterona. Ao mesmo tempo em que derrubaram, entre aspas, os testes de verificação de gênero, eles começaram a afirmar com muita clareza que era a testosterona que realmente provocaria a necessidade de separar essas atletas”, diz Waleska. 

No final da década de 1990, o Comitê Olímpico Internacional determinou o fim dos testes de verificação de gênero. Porém, a pesquisadora afirma que isso não aconteceu. “A verificação fica específica para atletas que, segundo eles, teriam uma aparência masculinizada, entendida socialmente, mas em especial pelos dirigentes. Ela é completamente arbitrária e as decisões variam conforme os casos”, revela.

Waleska busca questionar também a história social dos hormônios sexuais: “Eles são marcadores biológicos, mas a ideia da testosterona foi construída socialmente, a partir do modelo binário”.

Durante os estudos desenvolvidos nos anos 1930, os hormônios sexuais foram isolados quimicamente e classificados como sexual masculino (testosterona) ou sexual feminino (estrogênio e progesterona). “Mas, na verdade, eles têm outras inúmeras funções no corpo além da sexual, como função hepática, óssea e muscular. Hoje, qualquer pessoa que estude sabe que a testosterona existe em qualquer um dos corpos. Inclusive, isso foi encontrado já na própria década de 1930. A reação foi ‘como assim, a testosterona existe em outros corpos que não os socialmente marcados como masculinos?’”, explica Waleska. 

E eu não sou uma mulher?

A pesquisadora afirma que a necessidade de correção de corpos para que se encaixem no padrão binário é uma forma de apagamento da variabilidade biológica e sociocultural. “Na década de 1950, em especial nos Estados Unidos, as pessoas começaram a ter os corpos corrigidos, segundo o que era proposto por John Money, para serem encaixadas no binarismo. Esse tratamento é colocado como uma salvação dessas atletas. ‘Nós descobrimos que você tem uma Diferença de Desenvolvimento Sexual, como é chamada pelas federações e pela medicina, e nós vamos salvar você. Estamos fazendo o bem’. Parece até bonito. Mas, muitas vezes, o que a gente vê são atletas ficando doentes”. 

Waleska faz uma ressalva para os casos em que a condição de desequilíbrio hormonal traz risco de morte, como é o caso da hiperplasia adrenal. Porém, em muitos casos, indivíduos saudáveis também são submetidos a tratamentos hormonais, principalmente no caso das atletas com variação intersexo, que devem obedecer aos parâmetros estabelecidos pelas federações esportivas.

“Essas atletas, mesmo com os níveis altos de testosterona no sangue, não têm nenhum problema funcional. Elas vivem bem. Não há qualquer tipo de sintoma. Muitas vezes, elas descobrem [a variação] só no momento da competição, porque tiveram que fazer o exame. Essa correção feita a partir da pílula anticoncepcional para baixar a testosterona, como as federações têm colocado como parâmetro, muitas vezes faz com que as atletas que não tinham problema nenhum fiquem doentes”, explica. 

Caster ganhou a medalha de ouro nos 800 metros nas Olimpíadas de 2012 e de 2016 - Foto: Citizen59/Wikimedia Commons/CC BY-SA 2.0

Waleska menciona a atleta Caster Semenya como símbolo de resistência. Em 2023, a corredora sul-africana reafirmou sua posição como mulher legítima, em entrevista ao The Guardian, em meio às polêmicas que a envolviam por conta de seu diagnóstico com hiperandrogenia – uma taxa de testosterona particularmente elevada.

Bicampeã olímpica nos 800 metros, Semenya foi impedida de continuar correndo provas que estivessem entre 400 e 1.500 metros — segundo a World Athletics, os níveis elevados de testosterona conferem um melhor desempenho às atletas nesse intervalo de distância. Assim como Lia Thomas, Caster não participará dos Jogos Olímpicos de Paris.

Algumas atletas trans não chegam ao pódio ou não chegam sequer ao esporte de alto rendimento. A questão é que essas atletas não podem vencer. Se elas estiverem lá no ambiente olímpico e tiverem posições ruins, está tudo certo. Elas só não podem vencer. É quando elas chegam ao pódio que são julgadas como trapaceiras, como alguém que tem vantagem”, opina Waleska.

*Estagiária sob supervisão de Tabita Said
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado


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