Samson Flexor, Sem título, 1963, Galeria de Arte Frente - Foto: Karina Bacci

Samson Flexor está de volta a São Paulo

O pintor russo que se dizia paulistano é homenageado na exposição do Museu de Arte Moderna com obras de 1922 a 1970

 05/04/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 08/04/2022 as 17:12

Texto: Leila Kiyomura

Arte: Adrielly Kilryann

Samson Flexor está na cidade com a emoção de suas cores expressas sob o rigor da razão. Sua arte, essencial para o abstracionismo brasileiro, pode ser apreciada na mostra Samson Flexor: Além do Moderno, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Com a curadoria da crítica de arte Kiki Mazzucchelli, a exposição reúne cerca de uma centena de obras produzidas entre os anos de 1922 a 1970. “O foco da mostra é o desenvolvimento da arte de Flexor a partir de 1957, quando passa a rejeitar as formas estáticas com pinturas onde gradualmente predominam o gesto, a opacidade e a transparência”, diz Kiki Mazzucchelli. 

A curadora apresenta Samson Flexor (1907-1971) ao público em uma narrativa que reúne as imagens mais marcantes de suas diferentes fases. “Flexor nasceu no interior da atual Moldávia, então Império Russo. Iniciou sua carreira em Paris, para onde se transferiu em 1924”, explica. “Ele participou ativamente do contexto cultural parisiense, realizando inúmeras exposições e frequentando o ateliê de mestres como André Lhote, Fernand Léger e Henri Matisse. Até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, seguiu trabalhando assiduamente em encomendas de painéis de temática sacra e em inúmeros retratos que conciliam o notável domínio técnico e a intuição psicológica. Após a invasão de Paris pelos alemães, em 1940, foi duplamente perseguido, pela sua origem judaica e pela militância na Resistência.”

Kiki Mazzucchelli - Foto: Reprodução/Instagram

A curadora Kiki Mazzucchelli - Foto: Reprodução/Instagram

A história de Flexor recomeça em São Paulo. Outras paisagens, outras pessoas em cores e formas. “Realizou sua primeira exposição em São Paulo, em 1946, e nesse mesmo ano teve os primeiros contatos com críticos brasileiros como Sérgio Milliet, Luiz Martins e Lourival Gomes Machado”, conta Kiki. Transferiu-se definitivamente para São Paulo, em 1948, momento de dinamismo inédito no contexto artístico brasileiro, que contrastava drasticamente com a França devastada do pós-guerra.

“Flexor contribuiu para a formação de vários artistas.  A mostra Samson Flexor: Além do Moderno traz uma produção que teve grande visibilidade entre os anos de 1950 e 1970, mas que provavelmente as novas gerações conhecem pouco.”

“Samson Flexor é um artista fundamental para o desenvolvimento da arte abstrata no Brasil, principalmente quando abriu em sua casa, em São Paulo, o Atelier Abstração, na década de 1950”, comenta Cauê Alves, curador-chefe do MAM, mestre e doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Flexor contribuiu para a formação de vários artistas. A mostra Samson Flexor: Além do Moderno traz uma produção que teve grande visibilidade entre os anos de 1950 e 1970, mas que provavelmente as novas gerações conhecem pouco.”

Cauê destaca que a trajetória de Samson Flexor está entrelaçada com a história do Museu de Arte Moderna de São Paulo. “Além de ter participado da mostra inaugural do museu, em 1949, Do Figurativismo ao Abstracionismo, marcou presença em  várias outras. No início do Ateliê 

Cauê Alves - Foto: Reprodução/Instagram

Cauê Alves, curador-chefe do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo - Foto: Reprodução/Instagram

Abstração, em 1951, estimulado pelo então diretor artístico do MAM, Léon Degand, o artista integrou a 1ª Bienal Internacional de São Paulo. Participou também, entre os artistas brasileiros, da 2ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1953, uma das mais importantes de todos os tempos. Também marcou presença na terceira edição, em 1955, na quarta, em 1957, e na sexta, em 1961, todas realizadas pelo MAM de São Paulo.”

Cauê Alves lembra que o MAM, entre 1954 e 1956, realizou duas importantes exposições coletivas, articuladas por Flexor, com obras dos artistas do Ateliê Abstração. “Foi uma ação  fundamental para a consolidação da arte abstrata e geométrica no Brasil. Em 1961, Flexor apresentou uma exposição individual no MAM que contou com texto crítico de Mário Pedrosa. Participou também da primeira e da segunda edição da exposição Panorama da Arte Atual Brasileira, em 1969 e 1970, mostras emblemáticas para a relação do museu com a arte contemporânea.”

“Sua obra é completamente parte de sua vida, do mundo que viveu e de seu momento histórico, mas também pode ser compreendida a partir da vida de cada um de nós e do momento atual.”

O movimento da cidade de São Paulo que o pintor tanto apreciava está em Samson Flexor: Além do Moderno. Sua pintura, nos anos 1950, reflete, através da linguagem do Concretismo, o período de modernização, industrialização e crescimento urbano. Na época, o crítico de arte Sérgio Milliet analisou: “Para Flexor, a orientação decisiva a favor da abstração não decorre apenas de um processo intelectual, mas também da contemplação cotidiana do espetáculo que oferece o desenvolvimento frenético de São Paulo, onde tudo tende para o futuro e clama seu desprezo pelo passado colonial”.

Samson Flexor: Além do Moderno resgata o brio de sua trajetória.  “A seleção de trabalhos feita por Kiki Mazzucchelli permite aos visitantes uma experiência com um artista que nunca seguiu uma única linha e sempre soube se reinventar. Sua obra é completamente parte de sua vida, do mundo que viveu e de seu momento histórico, mas também pode ser compreendida a partir da vida de cada um de nós e do momento atual”, observa Cauê Alves.

Atualmente 12 obras de Samson Flexor pertencem à coleção do museu. “Além de um conjunto de oito desenhos dos anos 1940, doado por Erik Svedelius, o MAM possui trabalhos abstratos de 1957 e 1959, cedidos pela sua esposa, Margot Flexor, e a obra Parto, de 1969, doada pelo próprio artista”, ressalta Alves. “No acervo do MAM há ainda um retrato geometrizado de Carlo Tamagni, de 1951, que foi entregue pelo próprio Tamagni para a retomada das atividades do museu, em 1967.”

Depois da morte do artista, em 1971, o MAM também realizou uma exposição individual póstuma de Flexor, em 1975, na sede do Parque Ibirapuera.

A exposição Samson Flexor: Além do Moderno está em cartaz até 26 de junho, de terça-feira a domingo, das 10 às 18 horas (com a última entrada às 17h30), no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo (Avenida Pedro Álvares Cabral, s/nº, portões 1 e 3, Parque Ibirapuera, em São Paulo). Ingressos: R$ 25,00. Grátis aos domingos. É preciso agendar a visita no site www.mam.org.br/ingresso. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 5085-1300.

“Eu sempre preferi procurar a encontrar”

Com essa frase, Samson Flexor definiu o seu desassossego nos caminhos da arte

O reencontro com Samson Flexor é instigado pela exposição Samson Flexor: Além do Moderno, que o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo apresenta. “É um artista pouco estudado na atualidade”, observa a professora Ana Gonçalves Magalhães, diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. Mas, se os jovens artistas, estudantes e pesquisadores quiserem travar o desafio de tentar compreender o pensamento do artista, vão enveredar por um caminho em que irão se deparar com o trabalho de dedicados estudiosos. “O MAC possui 64 obras do artista, quase todas doadas pela viúva do artista, entre 1977 e 1979”, observa a diretora. “Além das obras, o museu é depositário do fundo pessoal arquivístico do artista, que está em nosso arquivo histórico.”

Ana Gonçalves Magalhães - Foto: Reprodução/FAPESP

Ana Gonçalves Magalhães - Foto: Reprodução/FAPESP

Carmen Aranha - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Carmen Aranha - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

”Em 2015, o MAC organizou a exposição Samson Flexor: Traçados e Abstrações, com curadoria da professora Carmen Aranha. “A mostra foi uma oportunidade de pensar a produção do artista, com grande parte de sua obra calcada na abstração geométrica”, explica Carmem. “Os desenhos indicam relações evidenciadas na própria trajetória de Flexor e, como decorrência, o título da mostra nasceu da observação desse segmento que, por meio de muitas aparências do seu pensamento, multiplicaram formas, planos e espaços em diagramas que se projetaram em muitos outros. Os traçados e as decorrentes abstrações constituem a própria essência da estética abstrato-construtiva-expressiva do trabalho de Flexor, principalmente entre os anos 50 e 60, quando conduziu o Ateliê Abstração.”

A  exposição versou sobre o processo do artista, no qual a maior parte das obras são estudos: desenhos a lápis grafite e tinta nanquim, um recorte do trabalho de ateliê que, normalmente, fica à sombra do público. “Ao observá-lo, somos levados a perceber que a arte é resultado de trabalho meticuloso, da dedicação ao exercício do fazer, uma busca constante por uma linguagem que se dá ao longo do tempo.”

O desassossego de sua pintura – que o visitante vai perceber nas pinceladas que vibram entre movimentos e técnicas que surpreendem em paisagens ora abstratas, ora concretas, ora geométricas, ora figurativas – é justificado na entrevista que o artista concedeu em 1965 ao jornalista Jean-Luc Daval, do Journal de Genève: “Eu sempre preferi procurar a encontrar”.

“Apesar de indicar o trágico,  sobrevém uma suspensão, uma leveza, por meio da fatura, da impermanência do indivíduo no mundo que o artista aqui está querendo sublinhar.”

Carmen explica que Flexor faz parte do grupo de artistas estrangeiros radicados no Brasil durante a década de 1950 que, por sua atuação e participação nos meios artísticos do País, criou uma geração de pintores voltados para as questões dos movimentos abstracionistas, formal e informal. Ela procurou se ater, naquela mostra, a uma análise de obras da fase brasileira do artista, entre 1948 e 1970, ano anterior à sua morte.

Carmen Aranha descreve: “Os óleos sobre tela Cristo na Cruz, de 1949, e A Coroa de Espinhos, de 1950, fazem parte dos estudos que Flexor realiza na busca da construção da abstração que constituirá sua linguagem futura. Nesse momento, o artista realiza esquemas geometrizantes sobre uma figuração. Modulação é a pintura de um espaço-síntese com os poucos elementos que o ordenam: espelhamentos e iridescências. Geométrico Grande, de 1954, realiza a abstração, a geometria, o diagrama da matemática que calcula espaços e, pela forma, soma pentagramas, hexágonos, quadrados, círculos e losangos. E Pintura, de 1960, é uma grande tela com pinceladas e gestos vigorosos, de aparente liberdade expressionista abstrata do artista. Na verdade, é uma construção com o ‘empasto’, técnica que deixa a tela com materialidade e peso, mas, no caso dessa fatura, a diluição da tinta e os gestos produzem outros efeitos diáfanos. Os grandes movimentos

Samson Flexor em seu ateliê, na década de 1960 - Foto: Arquivo de família/reproduzida do livro Flexor, de Alice Brill

circulares, em tons negro e azul, situam a profundidade, em contraposição aos artistas abstratos que exaltavam a planaridade da pintura naquele momento da história da arte”.

Carmen Aranha cita também a pintura Carrasco, de 1968, que o MAC recebeu em 2015 para compor seu acervo, como doação da família Flexor. “Essa obra revela uma arqueologia da forma humana nas transparências, limites diáfanos e grandes frestas”, analisa. “Os estudos que nos permitiram compreender a estrutura de pensamento do artista Samson Flexor mostram a aproximação de certas simbologias construídas a partir de séries sobre pássaros e pedras, cujos grafismos dão, aos poucos, lugar a formas abertas que irão se transformar na figuração que Flexor realiza nessa obra. Apesar de indicar o trágico,  sobrevém uma suspensão, uma leveza, por meio da fatura, da impermanência do indivíduo no mundo que o artista aqui está querendo sublinhar.” 

“Desde a primeira Bienal de São Paulo,  organizada justamente pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, Flexor é figura presente não apenas como integrante, expondo sua produção, mas também nos bastidores.”

Marina Barzon Silva - Foto: Reprodução/Cecília Bastos-USP Imagens

A doutoranda Marina Barzon Silva - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Em busca da compreensão da arte de Flexor, a doutoranda Marina Barzon Silva, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, investigou a vida e a obra do artista numa disciplina de pós-graduação. “O artista escolhe São Paulo como morada em 1948, ano de fundação do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo, por iniciativa de Francisco Matarazzo Sobrinho, e um ano depois da inauguração do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Naquela época, a arte moderna iniciava sua institucionalização na cidade e os dois novos museus dividiam um andar no prédio dos Diários Associados, na Rua 7 de Abril, no centro da cidade”, lembra Marina, que é orientanda de Ana Magalhães. “Desde a primeira Bienal de São Paulo, organizada justamente pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, Flexor é figura presente não apenas como integrante, expondo sua produção, mas também nos bastidores, participando da montagem, que contava com ajuda importante de jovens artistas brasileiros naquele momento.”

Marina destaca a fundação do Ateliê Abstração, que atraiu jovens artistas que se sobressaíram na década de 1950. “Nomes como Leopoldo Raimo, Jacques Douchez, Maria Antonia Berlinck, Leyla Perrone-Moisés e Norberto Nicola passaram pelo ateliê, expondo juntos em São Paulo, inclusive nas Bienais, no Rio, e em Nova York. Além do impacto de sua produção em particular, Flexor contribuiu como professor para o ambiente artístico brasileiro. Sua trajetória é muito rica, suas obras podem ser entendidas como um espelho dos diferentes momentos de produção artística no País, e mesmo internacionalmente, e estudos a respeito de sua vida e obra estão longe de estarem esgotados.”

Alice Brill conta as paisagens da história do artista no livro Flexor

Na exposição Samson Flexor – Além do Moderno, em exposição no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, está à venda o livro Flexor, da artista, fotógrafa e pesquisadora Alice Brill (1920-2013). Nele, a autora conduz o leitor aos caminhos da história do artista. Lançado pela Editora da USP (Edusp) em 2005, o livro é uma referência e importante fonte de pesquisa. A autora surpreende ao contar os detalhes da trajetória e analisar as pinturas e desenhos do artista.

Nascida na Alemanha, Alice Brill, com mestrado e doutorado na USP, também se destacou como pintora, gravurista e jornalista. Frequentou o Grupo Santa Helena. E escreveu Flexor com o seu rigor de pesquisadora e o olhar sensível de uma das fotógrafas mais respeitadas do País. Não usa a câmera, mas foca, em sua análise, a nitidez dos detalhes de suas paisagens.

“Neste ensaio, Alice Brill mostra ao leitor a densa instigação que Samson Flexor cultiva ao elaborar sua produção abstrata, acompanhando a tentativa de conciliação da efusão emocional com o rigor da razão, tanto na práxis como no pensamento”, escreve a professora Lisbeth Rebollo, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, na apresentação do livro.

Capa do livro Flexor - Foto: Reprodução/Marcos Santos

Capa do livro Flexor - Foto: Reprodução

Em um dos capítulos, O Abstracionismo Lírico, a autora traz o artista na execução, em 1958, dos afrescos para a Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, que atraem turistas de várias partes do mundo. Uma execução que levou seis anos de trabalho até completar os 300 metros quadrados. “A ideia mestra dos afrescos é a convergência de toda a humanidade em Nossa Senhora do Perpétuo Socorro”, explica Alice Brill. “Percorrendo as cenas notamos o próprio artista como representante de sua profissão no ato de pintar a mãe de Deus. Continuando sua marcha na nave principal, desenvolve o movimento dos personagens a caminho da salvação e do auxílio, mostrando a velhice, a miséria, a enfermidade e a guerra – esta última cena evoca os sofrimentos do artista durante a guerra, numa composição expressionista, glorificando a fé.”

Samson Flexor, Afresco (1958-1964), Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro - Foto: Angela Garcia, extraída do livro Flexor, de Alice Brill


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