Azis Ab´Saber – Foto: Reprodução -Fotomontagem Jornal da USP

Preservar a Amazônia é o desafio que Aziz Ab´Saber deixou para os brasileiros

Há dez anos, o mestre passou a razão de sua vida para as futuras gerações. Um legado que é referência para os geógrafos, ambientalistas e cientistas da biodiversidade

 18/03/2022 - Publicado há 2 anos

Por: Leila Kiyomura

Arte: Simone Gomes

“Aziz Ab’Saber fez da Amazônia uma razão de vida, causa permanente e linha incessante de sua pesquisa. Seu destacado estilo, a seriedade de suas análises e a robustez dos seus textos conquistaram seus contemporâneos e deixaram um legado duradouro para as gerações futuras”, observa Jacques Marcovitch, Professor Emérito e ex-reitor da USP. “Na literatura brasileira e internacional sobre a região amazônica, sua obra-prima Amazônia, do Discurso à Práxis constitui uma das reflexões mais abrangentes e precisas. Todas as questões em debate, o desmatamento, a riqueza biológica, o zoneamento ecológico-econômico e o dramático quadro social, estão naquelas páginas antológicas.”

Lembrar o mestre Aziz Ab’Saber é refletir sobre os desafios que travou até a morte, em 16 de março de 2012. Daí a necessidade de resgatar o pensamento e a trajetória do geógrafo e ambientalista. Nesta década sem a sua sabedoria, conhecimento, coragem e humanidade, o desmatamento na Amazônia bate recorde. No último dia 11, o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) alertou para uma devastação de 199 km², 62% maior em relação ao mesmo período de 2021 e o pior índice desde 2016. Os alertas de janeiro e fevereiro indicam desmatamento em 629,11 km² de floresta, tragédia três vezes maior que o mesmo período do ano passado, quando foram desmatados 205,68 km².

Hoje com 93 anos, José Goldemberg – Professor Emérito da USP, físico, ex-reitor da USP e ex-ministro da Educação – acompanhou o trabalho do geógrafo. “A importância do trabalho do professor Aziz Ab’Saber decorre do fato de que ele foi um pioneiro em estudos sobre a Amazônia, não apenas do ponto de vista teórico, mas como um geógrafo com os ‘pés no chão’ em suas inúmeras viagens àquela região do Brasil, ao longo dos anos.”

Como o próprio geógrafo comentou, Ab’Saber admirava a atuação política do físico na defesa da tecnologia adequada para proteger o ambiente. “Quando observo o trabalho de professores como Paulo Vanzolini e José Goldemberg, acredito na força da ciência”, dizia. O geógrafo gostava do diálogo científico com o físico, também de sua geração. “Aziz Ab’Saber foi um dos primeiros geógrafos brasileiros a alertar a sociedade para a gravidade do desmatamento predatório na Amazônia e sobretudo a propor medidas para reduzi-lo”, destaca Goldemberg.

José Goldenberg foto: IEA/USP - divulgação

José Goldemberg - Foto: IEA/USP - divulgação

“Falta-nos a sua voz poderosa, que ecoava a consciência nacional, mas resta-nos intacto o seu pensamento, que é a melhor resposta contra os perigosos equívocos atuais.”

Jacques Marcovitch lembra a atuação do professor na criação do Floram Amazônia – Florestas para o Meio Ambiente, focado na Amazônia. “A sua presença foi decisiva para que o projeto alcançasse a dimensão científica e o prestígio internacional que veio a conquistar. Sem renunciar aos princípios que sempre orientaram a sua conduta política, esse brasileiro crítico e indignado dedicou-se a construir uma ponte entre a universidade e as lideranças partidárias, a sociedade civil e com os empresários. Com isso, fomentou um diálogo difícil, mas não necessariamente condenado à inviabilidade.”

Importante lembrar que o Projeto Floram foi premiado pela União Internacional das Associações de Prevenção da Poluição do Ar e pela Academia Internacional de Ciências.

Jacques Marcovitch – Foto: Arquivo pessoal

Ab’Saber sempre respeitava, como ele mesmo acentuava, “a visão internacional e multidisciplinar de Jacques Marcovitch”. O professor e amigo retribui: “Homem do seu tempo e dos dias vindouros, o geógrafo elabora uma ética ecológica indispensável em qualquer programa voltado para o futuro. Ausente fisicamente há dez anos, as recomendações deixadas em sua ampla produção científica orientam qualquer estratégia que tenha a Amazônia como alvo e referência”. E destaca: “Falta-nos a sua voz poderosa, que ecoava a consciência nacional, mas resta-nos intacto o seu pensamento, que é a melhor resposta contra os perigosos equívocos atuais”.

“Aziz Ab’Saber foi um grande pesquisador que atuou em várias lutas sociais e ambientais do País. Por isso foi reconhecido tanto por criar teorias quanto por seu engajamento político e institucional.”

“Quando deixou São Luiz do Paraitinga (SP), cidade onde nasceu em 24 de outubro de 1924, Aziz Ab’Saber chegou a São Paulo e começou uma trajetória rara que combinou sua história de vida com as descobertas no campo científico no Brasil, entremeada a uma prática institucional e política”, conta o geógrafo Wagner Costa Ribeiro, professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“Aziz Ab’Saber foi um grande pesquisador que atuou em várias lutas sociais e ambientais do País. Por isso foi reconhecido tanto por criar teorias quanto por seu engajamento político e institucional”, assinala o professor. “Essa condição deveu-se, também, à sua elaborada capacidade de síntese e de expressão oral.”
Na avaliação de Ribeiro, o maior legado, entre tantos, que Ab’Saber deixa aos geógrafos é a sua postura humana de cientista. “A atitude do professor inspirou e continua inspirando os pesquisadores. Sempre esteve envolvido com temas contemporâneos, polêmicos, mas se posicionava de forma muito clara a partir de suas pesquisas, conhecimento e também de sua intuição. Ele conseguia com muita clareza, e uma certa veemência, se posicionar no debate público.”

Wagner Costa Ribeiro -Foto: IEA/USP

Ribeiro lembra: “Seu engajamento político ocorreu em diversas ocasiões. Quando foi presidente do Condephaat, de 1982 a 1983, inovou ao propor o tombamento da Serra do Mar no Estado de São Paulo, ampliando o conceito de tombamento para além do caráter histórico e social. Também foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de 1992 a 1995, onde promoveu encontros que combinavam discussão científica e política”.

Entre os sonhos que Ab’Saber deixou no horizonte, o professor Wagner Costa Ribeiro pontua: “O Projeto Floram, de 1990, que apresentava as possibilidades de reflorestamento para fins ambientais, sociais e econômicos, acredito que pode ser recuperado e implantado”.

Antiga vila dos milagras - Foto: Aziz Ab´Saber
Catedral Sé - Foto: Aziz Ab´Saber
Alepo - Síria Foto: Aziz Ab´Saber
Grande Cairo -Egito - Foto: Aziz Ab´Saber
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A natureza que o mestre Aziz Ab’Saber ensina

“A minha vida é o trabalho. A energia, a saúde e o coração. Tudo funciona com a cabeça no trabalho.” Com a tranquilidade de sempre, o mestre Aziz Ab’Saber conversou com o Jornal da USP em sua última entrevista, em maio de 2011, repercutida em diversos jornais e revistas do País. “Qual o meu grande sonho? Eu quero ouvir de novo o sino da igreja matriz de São Luiz do Paraitinga, onde nasci.”

Quando caminha pelas ruas históricas de São Luiz do Paraitinga, a professora e vice-reitora da USP Maria Arminda do Nascimento Arruda ouve a placidez do sino da matriz. É entre a paisagem das colinas arredondadas do “Mar de Morros”, como Ab’Saber definiu, que a professora descansa e contempla a história e a natureza. “Um dos últimos projetos do professor Aziz foi a restauração de São Luiz do Paraitinga, que nos primeiros dias de 2010 foi devastada pela inundação”, conta. “Quando foi presidente do Condephaat do Estado de São Paulo, instituiu o tombamento da cidade em 1982 e também o da Serra do Mar.”

 “O professor Aziz Ab’Saber é um mestre notável. Nasceu em 24 de outubro de 1924. Década de 1920. É interessante perceber que esse período produziu intelectuais importantes. Florestan Fernandes, Celso Furtado, Paulo Freire, José Goldemberg e vários outros”, pondera a vice-reitora. “Esses anos 20 significaram a crise da República oligárquica. Foram anos modernizadores, de uma grande efervescência cultural. Um exemplo é a Semana de Arte Moderna.”

Maria Arminda do Nascimento Arruda – Foto: Cecília Bastos

“Ele entrou na USP para fazer Geografia. Seu primeiro emprego no campus foi como jardineiro.”

Ab’Saber é filho de imigrante libanês, Nacib, com a brasileira Juventina, de ascendência portuguesa, vinda do sertão florestal do Nordeste brasileiro. “Ele entrou na USP para fazer Geografia, o curso era, na época, junto com História. Seu primeiro emprego no campus foi como jardineiro”, conta Maria Arminda. Uma história que o professor lembrou para o Jornal da USP com muito orgulho: “Eu queria tanto trabalhar na USP, que, na época, era muito fechada. O professor de Geografia e História Kenneth Caster me chamou, dizendo que gostaria muito de me contratar como seu assistente sênior, mas só tinha vaga como jardineiro.”

Aziz Ab’Saber, bacharel, pós-graduado, aceitou o cargo e os salários de jardineiro. Mas, depois de três meses, surgiu a oportunidade de ser prático de laboratório, que foi o cargo que ocupou até defender a livre-docência, em 1965. E foi assim, semeando de sol a sol nos campos da geografia, que o jardineiro se tornou o cientista considerado referência no Brasil e no mundo na preservação ambiental. Ganhou, entre outros, o Prêmio Internacional de Ecologia e o Prêmio Unesco para Ciência e Meio Ambiente, além do Prêmio Jabuti pelos livros publicados.

Imagens da cidade - Fotos: Atilio Avancini
Aziz Ab'Sáber nos muros da cidade - Foto: Atilio Avancini
São Luís do Paraitinga, tombada pelo Condephaat - Foto: Atilio Avancini
Imagens da cidade - Fotos: Atilio Avancini
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“Eu me lembro da primeira palestra do professor na SBPC, que assisti no início dos anos 1980. Fiquei impressionada com a sua placidez e a sua capacidade de se comunicar. Depois, acompanhei um congresso em Manaus promovido pelo CNPq sobre as potencialidades da Amazônia. Revelava o seu conhecimento notável de ecologia, ambiente, geografia, biodiversidade. Mas o que mais me impressionou foi a familiaridade com que falava da população ribeirinha, a empatia tanto do ponto de vista humano como também pelo respeito à diversidade.”

Maria Arminda lembra de uma definição que guardou: “Ele dizia que São Paulo era uma Mesopotâmia. Falava daquele conjunto dos rios e riachos que desembocava nos caudalosos Tietê, Tamanduateí e Pinheiros. Estamos pisando sobre rios e riachos canalizados e escondidos, inclusive o Tamanduateí”.

“O professor não viu a igreja restaurada. Mas sabia que os luizenses iriam lutar para reconstruir a sua cidade.”

Tranquila como o próprio cidadão Aziz Ab’Saber, São Luiz do Paraitinga lembra e homenageia o professor todos os dias. Pelas ruas, há um mural com o seu retrato desenhado por uma artista anônimo. Na fachada da biblioteca atual – a antiga foi levada pela enchente – há uma placa de agradecimento ao professor por reconstruir a cidade.

“O geógrafo fez questão de observar pessoalmente o projeto de reconstrução da  sua cidade. Mesmo com a saúde debilitada ele fez questão de ir várias vezes até São Luiz”, explica João Rafael Coelho Cursino dos Santos, historiador com mestrado e doutorado na USP. A tese de João Rafael, orientada pela professora Marina de Mello e Souza, registra a cultura como protagonista do processo de reconstrução de São Luiz do Paraitinga.

O auditório da biblioteca da cidade leva o nome de Aziz Ab’Saber. “Ele foi um grande doador de livros”, comenta o historiador. “Há um movimento dos moradores que reivindica a  implantação do Centro Cultural Aziz Ab’Saber.”

João Rafael Coelho Cursino dos Santos – Foto: Arquivo pessoal

 “O professor Aziz Ab’Saber não viu a igreja restaurada. Mas sabia que os luizenses iriam lutar para reconstruir a cidade”, observa o historiador. “Às 6, 12 e 18 horas, o sino da matriz toca pontualmente e há quem fique esperando ao redor da igreja.”


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