Paul Cézanne abriu caminhos para a arte do século 20

Carmen Aranha – MAC

 22/06/2016 - Publicado há 9 anos     Atualizado: 24/06/2016 às 14:43

Paul Cézanne é um tronco fruidor da arte da primeira metade do século 20. Impulsionou as pesquisas de artistas como Matisse, Picasso e Braque. Mesmo antes das duas mostras em memória a Cézanne, em junho e outubro de 1907, já haviam reconhecido a potencialidade de sua pintura. Matisse, por exemplo, faz referências, em sua obra A Janela Azul, aos elementos de solidez e leveza do Vaso azul, de Cézanne. Para Picasso e Braque, o espaço analítico cezanniano, tratado em sucessões rítmicas de formas e cores, será motivo de pesquisa sobre o novo estilo que consideraram revolucionário e que pode ser visto claramente em Casas e Árvores, de Braque.

Nas pinturas de Cézanne dos anos 1880 há, muitas vezes, diagramas de eixos verticais e horizontais de árvores e colinas para atingir divisões que antecipam certos estudos de Mondrian de seu período pré-abstração.

Cézanne nasceu em 1839 e morreu em 1906 em Aix-en-Provence, região do sudeste da França. Segue para Paris, com o sentido de estudar pintura, em 1861. Ali conhece Monet, Sisley, Renoir e Pissarro, que o influencia largamente. Graças a este último, deixa sua primeira fase, em que pintava cenas imaginadas e extroversão de sonhos, para conceber a pintura como o estudo preciso das aparências, abandonando a fatura barroca e o empaste da tinta.

Uma Olímpia Moderna, 1873
Uma Olímpia Moderna, 1873

Os primeiros temas de Cézanne (anos 1860) versam sobre retratos do pai (Retrato do Pai do Artista, 1866), de Émile Zola e Paul Alexis (Paul Alexis Lê Manuscrito a Zola, 1870), do poeta e crítico Valabrègue, assim como de Achille Emperaire, seu amigo de juventude, e também auto-retratos, naturezas-mortas, cenas imaginárias e estudos feitos, principalmente, no museu do Louvre, diante de obras de artistas como Tintoretto, Caravaggio, El Greco, Michelangelo, Murillo, Paul Rubens, Delacroix, Courbet e Daumier, entre outros.

Retrato do Pai do Artista, 1866
Retrato do Pai do Artista, 1866
  Paul Alexis Lê Manuscrito a Zola, 1870
Paul Alexis Lê Manuscrito a Zola, 1870

Preparação para um Funeral (1868) pode ter sido motivada pelos estudos sobre Ribera e Zurbarán realizados em torno de 1865.

Preparação para um funeral, 1868
Preparação para um Funeral, 1868

O estudo dos procedimentos e técnicas pictóricas clássicas faz Cézanne compreender que a obra possui um “núcleo expressivo, uma estrutura profunda” (Giulio Carlo Argan, Arte Moderna, Companhia das Letras, 1992, p. 110). “Núcleo expressivo” para o artista, será, em sua pintura, o de captar o “espaço aglomerado”. Esse “motivo”, uma vez apreendido, torna-se a possibilidade de realização do ato de pintar como tessitura, ou seja, como uma movimentação que permite dispor os elementos pictóricos, das coisas vistas no mundo, num entrelaçamento para compô-los como obra. Uma face dessa construção está nas pinceladas do pintor, que deveriam, como dizia Bernard, “satisfazer inúmeras condições, ou seja, conter o ar, a luz, o objeto, o plano, o caráter, o desenho, o estilo” (Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, em O Olho e o Espírito, Cosac & Naify, 2004, p. 131). Então, o núcleo expressivo está no motivo da pintura e numa ordem de movimentações dos elementos pictóricos num sistema de equilíbrio dinâmico. A natureza, para o artista, realiza esse “equilíbrio perfeito”: estudá-la, compreendê-la e expressá-lo foi seu projeto de vida.

 

Montanha de Saint-Victoire 1900                           1902-06               1904-06
Montanha de Saint-Victoire   1900                                      1902-06                                                              1904-06

Paul Cézanne constrói uma série de conexões formais e colorísticas para buscar uma “ordem nascendo por uma organização espontânea” (Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, p. 131).

Dentre as conexões formais cezannianas, é bastante difundida a ideia de que o artista tratava a natureza em pinceladas cilíndricas, esféricas e cônicas, provocando uma perspectiva específica, de modo que cada lado de um objeto ou de um plano construído fossem dirigidos a um ponto central. Muitos críticos apontam essa afirmativa de Cézanne como uma possibilidade de antecipação do advento do Cubismo e da arte abstrata. Mas, se quisermos ampliar essa reflexão, vemos que suas pinceladas são modos de apreensão da pasisagem que se formava num instante diante dos seus olhos.

Cézanne é do tempo dos Impressionistas, mas achava que o intercâmbio luminoso entre formas e atmosfera dos seus pares fazia desaparecer a densidade dos objetos (Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, p. 126). Ao recuperar essa densidade, o objeto, para Paul Cézanne, aparece “como que iluminado secretamente do interior, a luz emana dele, e disso resulta uma impressão de solidez e materialidade” (Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, p. 126-127). E, para aqueles que acreditam que Cézanne destituiu a humanidade dos seus modelos por pintá-los como uma coisa, o pintor afirma: “Pintar um rosto ‘como um objeto’ não é despojá-lo de seu ’pensamento’ (…). Se eu pintar todos os azuis e todos os pequenos marrons, faço-o olhar como ele olha (…). O espírito se vê e se lê nos olhares, que no entanto são apenas conjuntos coloridos.”  ((Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, p. 13

Mulher Velha com um Rosário, c. 1896
Mulher Velha com um Rosário, c. 1896

O final do século 19 é o momento em que os artistas impressionistas, ao desenvolverem seus estudos sobre as vibrações da luz atingindo a retina, traduzem-nos numa “fragmentação” de relações de cores complementares (vermelho e verde, por exemplo), para criar uma “verdade geral da impressão do visível”.

Junto à filosofia e à ciência da época, o que está sendo interrogado é o “visto”. Entretanto, não somente o “visto” diante de nós, mas que vistas parciais não sejam tomadas como pedaços que se somam e formam uma totalidade sem tensões visuais. Compor o todo, para o pensamento moderno, passa por um sistema de vibrações de presenças das partes e ausências das “entre-partes”. Isso está muito longe do olhar naturalista: a estrutura de conhecimento da época vê a abstração do visível como imanente à sua própria “visualidade”.

Cézanne é desse tempo e procura demonstrar que “essas relações abstratas deviam intervir no ato do pintor, reguladas a partir do mundo visível”  (Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, p. 132). O artista busca uma lógica para a vibração do visível ao restituir, por um lado, cada parte em relação ao todo e, por outro, cada parte é restituída, também, em seu significado. Em Paisagem em Aix (1905), vemos, desse modo, um desenho de movimentações de pinceladas em formas volumétricas e coloridas que, igualmente à proposta dos pares impressionistas, criam um organismo vibrante. Diferentemente, entretanto, em Cézanne, o que vemos é o desenho da vibração presente, entrelaçando volumes de cores sem perder nenhuma densidade do objeto que está sendo pintado. Seria como dizer que a materialidade do material também pertence à “ordem nascente”. A busca de uma estrutura lógica para situar esse novo impressionismo é seu projeto: é como se Cézanne “desfragmentasse” o Impressionismo numa volumetria de formas e cores, sem perder a abstração, já então imanente à própria “visualidade”.

Paisagem em Aix, 1905
Paisagem em Aix, 1905

Carmen Aranha é professora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP.


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