Paul Cézanne é um tronco fruidor da arte da primeira metade do século 20. Impulsionou as pesquisas de artistas como Matisse, Picasso e Braque. Mesmo antes das duas mostras em memória a Cézanne, em junho e outubro de 1907, já haviam reconhecido a potencialidade de sua pintura. Matisse, por exemplo, faz referências, em sua obra A Janela Azul, aos elementos de solidez e leveza do Vaso azul, de Cézanne. Para Picasso e Braque, o espaço analítico cezanniano, tratado em sucessões rítmicas de formas e cores, será motivo de pesquisa sobre o novo estilo que consideraram revolucionário e que pode ser visto claramente em Casas e Árvores, de Braque.
Nas pinturas de Cézanne dos anos 1880 há, muitas vezes, diagramas de eixos verticais e horizontais de árvores e colinas para atingir divisões que antecipam certos estudos de Mondrian de seu período pré-abstração.
Cézanne nasceu em 1839 e morreu em 1906 em Aix-en-Provence, região do sudeste da França. Segue para Paris, com o sentido de estudar pintura, em 1861. Ali conhece Monet, Sisley, Renoir e Pissarro, que o influencia largamente. Graças a este último, deixa sua primeira fase, em que pintava cenas imaginadas e extroversão de sonhos, para conceber a pintura como o estudo preciso das aparências, abandonando a fatura barroca e o empaste da tinta.
Os primeiros temas de Cézanne (anos 1860) versam sobre retratos do pai (Retrato do Pai do Artista, 1866), de Émile Zola e Paul Alexis (Paul Alexis Lê Manuscrito a Zola, 1870), do poeta e crítico Valabrègue, assim como de Achille Emperaire, seu amigo de juventude, e também auto-retratos, naturezas-mortas, cenas imaginárias e estudos feitos, principalmente, no museu do Louvre, diante de obras de artistas como Tintoretto, Caravaggio, El Greco, Michelangelo, Murillo, Paul Rubens, Delacroix, Courbet e Daumier, entre outros.
Preparação para um Funeral (1868) pode ter sido motivada pelos estudos sobre Ribera e Zurbarán realizados em torno de 1865.
O estudo dos procedimentos e técnicas pictóricas clássicas faz Cézanne compreender que a obra possui um “núcleo expressivo, uma estrutura profunda” (Giulio Carlo Argan, Arte Moderna, Companhia das Letras, 1992, p. 110). “Núcleo expressivo” para o artista, será, em sua pintura, o de captar o “espaço aglomerado”. Esse “motivo”, uma vez apreendido, torna-se a possibilidade de realização do ato de pintar como tessitura, ou seja, como uma movimentação que permite dispor os elementos pictóricos, das coisas vistas no mundo, num entrelaçamento para compô-los como obra. Uma face dessa construção está nas pinceladas do pintor, que deveriam, como dizia Bernard, “satisfazer inúmeras condições, ou seja, conter o ar, a luz, o objeto, o plano, o caráter, o desenho, o estilo” (Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, em O Olho e o Espírito, Cosac & Naify, 2004, p. 131). Então, o núcleo expressivo está no motivo da pintura e numa ordem de movimentações dos elementos pictóricos num sistema de equilíbrio dinâmico. A natureza, para o artista, realiza esse “equilíbrio perfeito”: estudá-la, compreendê-la e expressá-lo foi seu projeto de vida.
Paul Cézanne constrói uma série de conexões formais e colorísticas para buscar uma “ordem nascendo por uma organização espontânea” (Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, p. 131).
Dentre as conexões formais cezannianas, é bastante difundida a ideia de que o artista tratava a natureza em pinceladas cilíndricas, esféricas e cônicas, provocando uma perspectiva específica, de modo que cada lado de um objeto ou de um plano construído fossem dirigidos a um ponto central. Muitos críticos apontam essa afirmativa de Cézanne como uma possibilidade de antecipação do advento do Cubismo e da arte abstrata. Mas, se quisermos ampliar essa reflexão, vemos que suas pinceladas são modos de apreensão da pasisagem que se formava num instante diante dos seus olhos.
Cézanne é do tempo dos Impressionistas, mas achava que o intercâmbio luminoso entre formas e atmosfera dos seus pares fazia desaparecer a densidade dos objetos (Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, p. 126). Ao recuperar essa densidade, o objeto, para Paul Cézanne, aparece “como que iluminado secretamente do interior, a luz emana dele, e disso resulta uma impressão de solidez e materialidade” (Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, p. 126-127). E, para aqueles que acreditam que Cézanne destituiu a humanidade dos seus modelos por pintá-los como uma coisa, o pintor afirma: “Pintar um rosto ‘como um objeto’ não é despojá-lo de seu ’pensamento’ (…). Se eu pintar todos os azuis e todos os pequenos marrons, faço-o olhar como ele olha (…). O espírito se vê e se lê nos olhares, que no entanto são apenas conjuntos coloridos.” ((Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, p. 13
O final do século 19 é o momento em que os artistas impressionistas, ao desenvolverem seus estudos sobre as vibrações da luz atingindo a retina, traduzem-nos numa “fragmentação” de relações de cores complementares (vermelho e verde, por exemplo), para criar uma “verdade geral da impressão do visível”.
Junto à filosofia e à ciência da época, o que está sendo interrogado é o “visto”. Entretanto, não somente o “visto” diante de nós, mas que vistas parciais não sejam tomadas como pedaços que se somam e formam uma totalidade sem tensões visuais. Compor o todo, para o pensamento moderno, passa por um sistema de vibrações de presenças das partes e ausências das “entre-partes”. Isso está muito longe do olhar naturalista: a estrutura de conhecimento da época vê a abstração do visível como imanente à sua própria “visualidade”.
Cézanne é desse tempo e procura demonstrar que “essas relações abstratas deviam intervir no ato do pintor, reguladas a partir do mundo visível” (Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, p. 132). O artista busca uma lógica para a vibração do visível ao restituir, por um lado, cada parte em relação ao todo e, por outro, cada parte é restituída, também, em seu significado. Em Paisagem em Aix (1905), vemos, desse modo, um desenho de movimentações de pinceladas em formas volumétricas e coloridas que, igualmente à proposta dos pares impressionistas, criam um organismo vibrante. Diferentemente, entretanto, em Cézanne, o que vemos é o desenho da vibração presente, entrelaçando volumes de cores sem perder nenhuma densidade do objeto que está sendo pintado. Seria como dizer que a materialidade do material também pertence à “ordem nascente”. A busca de uma estrutura lógica para situar esse novo impressionismo é seu projeto: é como se Cézanne “desfragmentasse” o Impressionismo numa volumetria de formas e cores, sem perder a abstração, já então imanente à própria “visualidade”.
Carmen Aranha é professora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP.